Eram duas senhoras de meia-idade, loiras não naturais, uma viúva e a outra separada, ambas católicas, classe média, pessoas do bem CREDITO: MARIA ROSA@MARIAROSA.ART_2021
As três Marias
De repente, percebi que estava colocando futuro em quase tudo que planejava ou pensava
Ana Maria Gonçalves | Edição 181, Outubro 2021
Pertenço àquele tipo de gente para quem, nada, nunca, foi garantido. Ouvi essa frase em algum momento no fim da adolescência, e foi como se ela tivesse um código que não só decifrava o que eu tinha vivido até então, mas também abria caminho para um entendimento remoto do futuro. Aquele era o único tipo de previsão com que eu conseguia arcar, visto que o presente (Tem que trabalhar! Tem que comer! Tem que vestir! Tem que estudar! Tem que morar! Tem! Tem! Tem!) enrosca suas mãos em volta do meu pescoço e não me deixa olhar para mais do que alguns centímetros adiante. Tudo com que posso contar é o que já tenho ao alcance das mãos. Tenho 55 anos, criei dois filhos que, já adultos, não moram mais comigo. A mais nova saiu de casa pouco tempo antes do início da pandemia, e está sempre ameaçando ter que voltar. O mais velho liga domingo sim, domingo não. Nenhum dos dois tem a menor ideia de como ocupo meu tempo.
Profissionalmente, há mais de trinta anos reviso, edito, faço leituras críticas, corrijo textos e dou cursos de redação para vestibular. Nunca imaginei que tais atividades, de maneira indireta, realmente pudessem me levar a ganhar dinheiro, do tipo e do tanto que se pode pegar, contar, deixar de lado para o caso de. Ainda mais nestes tempos. Mas nunca deixei de ouvir, mesmo nos momentos de menor lucidez, aquele tipo de voz interior quase dissociada da minha própria vontade, usando alternadamente como força os recursos da dúvida e do medo: Cuidado, isso não é pra você.
Reportagens apuradas com tempo largo e escritas com zelo para quem gosta de ler: piauí, dona do próprio nariz
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