ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2008
Assassinas!
A Floresta da Tijuca caiu nas garras de alienígenas
Douglas Duarte | Edição 21, Junho 2008
“Olha que tristeza!”, diz o ecólogo Rodolfo Cesar Real de Abreu, apontando uma árvore que, para os desavisados, não passaria de uma jaqueira. Por sinal, uma bela, frondosa e inofensiva jaqueira que até daria para chamar de alegre, caso existisse uma classificação botânica para o estado de alma das plantas.
Mas Abreu não deixa por menos. Dá umas pancadinhas no tronco, avalia as frutas, examina a folhagem e, com um travo de melancolia, volta ao ataque: “Eu fico triste de ver isso. Acho que é a mesma sensação de quando o médico descobre um câncer no corpo do paciente.” Para ele, não há tanta diferença assim entre um pé de Artocarpus heterophyllus e um daqueles tumores igualmente impronunciáveis que crescem na sombra, ocultam por muito tempo os seus sintomas e só dizem a que vieram depois de atingir proporções letais.
A jaqueira, em seus primeiros tempos, também foi assintomática. É uma imigrante. Veio da Índia com os colonizadores portugueses, que antes de aportar no Brasil se aclimataram aos trópicos na África e na Ásia. Em menos de 200 anos, a árvore indiana estava solidamente enraizada aqui, parecendo brasileira da gema, nascida e criada no clima quente e úmido do litoral baiano. Acabou desembarcando oficialmente no Rio de Janeiro cinco anos antes da família real.
É invasora por natureza. Mas só na virada do milênio virou inimiga, depois que um censo vegetal do Parque Nacional da Tijuca revelou a presença de jaqueirais quase homogêneos na floresta urbana que os cariocas, com certa complacência, chamam de “mata atlântica”. Há pontos onde se contam 200 jaqueiras por hectare. É jaqueira à beça, mesmo para os padrões de uma reserva florestal ameaçada de invasão por treze favelas.
Dois engenheiros florestais – Luiz Fernando Lopes e Henrique Guerreiro – deram aos administradores do parque a receita para botar a jaqueira no devido lugar, ou seja: sob a hegemonia das árvores nativas. O remédio que recomendaram parecia simples e discreto. Cortava-se, com um facão, um anel de 15 centímetros de largura ao redor do tronco, secionando os vasos por onde corria a seiva entre as raízes e as folhas; a árvore morreria aos poucos, de inanição, e viraria um toco inerte da maneira mais natural possível, sem a estridência das motosserras. Tudo no melhor figurino do manejo florestal.
Assim foi. Mas, há dois anos, quando o programa já havia anelado mais de 2 mil árvores ainda jovens e extirpado cerca de 42 mil mudas, entraram na briga os defensores das indefesas jaqueiras, denunciando o extermínio como crime ambiental. Não adiantou alegar que a Artocarpus heterophyllus não é nativa. Ela se adaptou tão bem por aqui que, no século XVIII, um botânico a classificou como Artocarpus brasiliensis. “O fato de se encontrar também na Índia não significa que ela não seja brasileira”, argumentou Flávia Tavares, artista plástica e defensora intransigente do vegetal imigrante. Na condição de vizinha das jaqueiras na Floresta da Tijuca, Flávia levou o caso a um blog na internet, como tema de debate, e ao Ministério Público, como ação civil pública.
De lá para cá, a febre da indignação popular amainou. O domínio das jaqueiras prossegue, devagar e sempre, e este ano, em seu louvor, já foram arrancadas 4 mil mudas. Mas a refrega de 2006 deixou em Rodolfo de Abreu o ressentimento contra elas, como se um pé de jaca, além de invasor, fosse capaz de fazer intriga contra a boa-fé dos ecologistas. Ele caminha por alguns minutos pela borda do Parque Nacional, no Horto. De repente, pára e comanda: “Agora que você já sabe identificar uma jaqueira, olhe em volta.”
Olha-se em volta. Há plantas rasteiras e musgo no chão. Algum lixo também, mas felizmente pouco. O que há ali para achar estranho?
As jaqueiras. Só dá jaqueira. “Se a gente não fizer alguma coisa com essa peste, ela não deixa mais nada nascer”, diz Abreu. Não é difícil suspeitar de onde vem tanta jaca. Cada fruta que se esparrama no chão explode em no mínimo 200 caroços. Em média, mais de 70% das sementes germinam, adubadas pela própria fruta em decomposição. A jaqueira é uma eficientíssima máquina de reprodução. Abreu suspeita que as mudas tenham propriedades alelopáticas, ou seja: impedem qualquer outra coisa de vingar.
“Estamos começando a testar a hipótese”, comenta o ecólogo Daniel Raíces, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. “O mais provável é que se trate de uma guerra química. Algum componente nas folhas e nas raízes da árvore inibe o crescimento de outras espécies. Já medimos a quantidade de luz solar na base dos troncos de jaqueira e constatamos que ela faz mais sombra que a média das árvores de mesmo porte existentes na mata atlântica.” Em suma: “É provável que seja uma combinação de tudo isso.”
A jaqueira conta ainda com poderosos aliados na fauna. Não alimenta os pássaros, mas oferece banquetes para vários bichos, inclusive o Callithrix jacchus, um sagüi que veio do Nordeste para conquistar os morros do Rio de Janeiro. Trata-se do popular mico. De bigodes brancos e rabo listrado, parece feito sob encomenda para a vitrine de uma loja de brinquedos. Nem por isso convence a bióloga Helena Bargallo. “Ai, olha aqui essa foto: um mico agarrado numa jaca”, diz ela. “Que horror! Esse bicho transmite raiva, toxoplasmose, febre amarela! Está dizimando os ninhos de aves ameaçadas dentro do Parque Nacional!”
Estragos semelhantes podem ser imputados aos macacos-pregos e aos quatis, que proliferam na Floresta da Tijuca como os micos nordestinos. Mas os macacos-pregos e os quatis são nativos. E para Helena Bargallo isso faz toda a diferença. O problema é explicar à opinião pública a conveniência de manejar o sagüi tal como se deve fazer com a jaqueira: matando quantos forem necessários para controlar sua população. “Mas ele é fofinho, peludo, tem um rosto como o nosso e vem pegar comida no batente da janela com o filhotinho agarrado nas costas”, ela lamenta.
Ao expor suas idéias, gente como Helena Bargallo e Rodolfo de Abreu enfrenta a desaprovação até de colegas. Sentem-se vítimas de um paradoxo ambiental: para preservar a natureza, advogam a derrubada de jaqueiras e o abate de miquinhos. Não é à toa que, descendo do Horto para a cidade, Abreu não deixa passar em branco o toco na calçada onde alguém pregou um letreiro em favor da salvação do planeta: “Colabore! Deixe nossas árvores viverem!” No resto de madeira, ele reconhece os despojos de uma castanheira-do-maranhão, outra espécie exótica. E fecha questão: “Está vendo só? É duro, cara, é duro.”