ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Até o último tomate
Um molho ameaçado de extinção
João Pedro Soares | Edição 110, Novembro 2015
Às quatro da manhã do dia 20 de agosto, Cristofaro Pezzella já estava de pé, pronto para o trabalho. Era uma madrugada agradável de verão, no sul da Itália. Seu pai, Carlo, de 74 anos, havia se levantado meia hora antes. Embora tivessem deixado tudo pronto na noite anterior, era fundamental dar início ao processo pontualmente – Cristofaro explicou –, pois o sol forte poderia arruinar todo o esforço feito até aquele momento. Os outros três irmãos só chegariam mais tarde, quando a produção já tivesse iniciado. Mimí, o tio de 87 anos, estaria a postos, dali a pouco, por volta das 5 horas. Com boa parte dos parentes de pé antes mesmo de o sol nascer, começava a fabricação artesanal de molho de tomate numa das últimas famílias italianas a manter essa tradição.
Para Cristofaro Pezzella era também uma volta ao lar. Magro, mais alto do que a média da família – tem 1,90 metro –, ele foi o único de quatro irmãos a sair da pequena Cardito, uma cidadezinha com ares rurais de 20 mil habitantes, localizada no subúrbio de Nápoles, na Campânia. Deixou a região aos 28 anos, após concluir os estudos de ciências da computação na Universidade de Salerno. Mudou-se para Roma, onde vive com a mulher e duas filhas. Aos 44 anos de idade, não lhe restam muitos fios de cabelo. Ultimamente tem praticado ioga – e talvez por isso pareça bastante sereno. Para participar da produção do pummarola, interrompeu as férias familiares na província de Reggio Calabria, no extremo sul do país, e viajou por aproximadamente cinco horas, de carro, até Cardito.
No banco de trás, trazia a filha mais velha, a sonolenta Irene, que completava 7 anos naquele dia. A menina nunca havia acompanhado a produção do sumo de tomate. Em geral a família se reúne a cada ano, sempre no mês de agosto, para preparar o molho. É a melhor época para colher os tomates, e a seleção do fruto é fundamental para produzir um pummarola da melhor qualidade. O tomate ideal é o San Marzano, cilíndrico, comprido, com carne espessa e doçura natural. Por ter surgido e se espalhado na Campânia, terra da pizza e da muçarela de búfala, conferiu fama à região no preparo do molho.
Já faz alguns anos, contudo, que os San Marzano selecionados pelos Pezzella vêm de outras regiões da Itália. Desta vez, Cristofaro Pezzella comprou 400 quilos do fruto em Cerveteri, uma pequena cidade na província de Roma, e os transportou em seu carro por mais de 200 quilômetros até a casa do pai. As caixas viajaram no banco de trás do automóvel. O trabalho extra era necessário porque insistir em utilizar os tomates que são produzidos em sua terra, que sempre estiveram entre os melhores do país, representaria um grave risco à família Pezzella.
No início dos anos 90, a Camorra, grupo mafioso que controla a região, começou a oferecer o serviço clandestino de descarte de lixo tóxico. O negócio se expandiu rapidamente e também passou a atender outros países. Descartes de toda a Europa foram enterrados na Campânia, com consequências nefastas: a região figura como o lugar onde mais se morre de câncer na Itália, chegando a haver registros de famílias inteiras com a doença. O negócio de lixo tóxico foi descrito no livro Gomorra pelo jornalista Roberto Saviano, que nos últimos anos se tornou a principal autoridade nas atividades da máfia e foi ameaçado de morte pela Camorra.
Na noite anterior ao grande dia, Carlo, o patriarca da família, e sua cunhada Giovanna colocaram de molho, em água fria, os cerca de 4 mil tomates transportados desde Roma. O local onde vive a família já foi uma espécie de cortiço. Há mais de cinquenta anos, o avô de Cristofaro comprou o terreno e o dividiu em seis lotes, de modo que cada filho pudesse construir sua casa. Hoje apenas Mimí, o tio, e Carlo, pai de Cristofaro, moram ali. No centro das casas, há uma ampla área comum, onde os Pezzella se reúnem para produzir o molho de tomate.
No passado, o processo era compartilhado com a vizinhança, que hoje só assiste, curiosa, à reunião familiar. Às 4h30, Cristofaro e Carlo levaram os primeiros tomates para serem fervidos nos grandes caldeirões, com pouco mais de 1 metro de altura, apoiados num suporte metálico sobre lenha em brasa.
O dia despontava sobre o grande quintal, e o céu já apresentava esmaecidos tons de azul quando o quase nonagenário Mimí assumiu as rédeas da máquina artesanal que tritura os pomodori. O mais experiente do grupo não deixou ninguém ocupar seu lugar até que o último sumo fosse extraído. O molho que saía da máquina escorria diretamente para uma grande bacia de plástico. Em outro recipiente, menor, ficava o resíduo do tomate, que seria reespremido até o “bagaço”.
Rocco, o irmão mais velho e o último a chegar, fora encarregado de providenciar o café da manhã para todos. A pequena Irene tinha dormido na casa desse tio, para brincar com o primo, e não quis acordar. Cristofaro ficou visivelmente desapontado, mas manteve a serenidade habitual. Assim que a primeira bacia encheu, o conteúdo começou a ser engarrafado – a cada vasilhame, era acrescentada uma grande folha de manjericão.
Por volta das 11 horas, quando o sol começava a incomodar, a família já havia enchido cerca de 300 garrafas. Encerrado o ritual, todos se reuniram ao redor da mesa da cozinha, à espera de uma saborosa macarronada de frango preparada por Giovanna – sem pummarola. Na parede, como em muitas casas no sul da Itália, viam-se imagens do papa João Paulo II. A prova do molho foi adiada. Apesar de toda a alegria aparente, o momento também tinha um gosto amargo.
“Meu pai confessou que não sabe se terá disposição para uma próxima vez”, contou Cristofaro, mais tarde. Aquela talvez fosse a última reunião da família para fabricar pummarola. Pouco a pouco ele carregou o carro com três pesados engradados do produto, cada um com vinte garrafas. “Desta vez, fizemos molho suficiente para nos abastecer por uns dois anos”, avaliou, antes de se despedir da família e pegar a estrada.
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