ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2017
Aterrissagem forçada
Sem dinheiro, o melhor computador do país pode parar
Bernardo Esteves | Edição 132, Setembro 2017
O mais potente computador do Brasil está instalado num bairro residencial de Petrópolis, na serra fluminense, à margem da BR-040. Vista de longe, a cobertura metálica que o protege tem a aparência familiar de um grande chapéu amarelo: é o adereço distintivo do inventor Alberto Santos Dumont, que viveu na cidade – e que dá nome à máquina.
O Santos Dumont parece mais com Hal, o computador de bordo da nave de 2001 – Uma Odisseia no Espaço, do que com um PC doméstico. É uma máquina na qual se pode entrar, com um corredor central que dá acesso a grandes compartimentos verticais protegidos por portas metálicas. Só de processadores há mais de 18 mil – um laptop caseiro costuma ter um ou dois –, dispostos sobre racks e conectados por uma profusão de fios coloridos. A memória RAM é de 53 terabytes, treze mil vezes maior que a de um computador comum.
Numa tarde de agosto, o engenheiro eletricista Augusto Cesar Gadelha Vieira, um homem grisalho de 69 anos com os cabelos partidos de lado, disse que a capacidade de processamento do Santos Dumont é de 1,1 petaflop/s, o que significa que ele é capaz de fazer um quatrilhão de operações matemáticas por segundo. “É o primeiro computador no Brasil – e, por enquanto, o único – com essa capacidade”, afirmou Gadelha, que é diretor do LNCC, o Laboratório Nacional de Computação Científica. Tal atributo coloca o Santos Dumont entre os 500 computadores mais velozes do mundo (o número 1, na China, tem vel ocidade de cerca de 100 petaflop/s).
O Santos Dumont foi montado há mais de um ano, a um custo de 60 milhões de reais do governo federal. Pode ser usado por todos os cientistas brasileiros – os candidatos devem submeter projetos de pesquisa, e aqueles que tiverem suas propostas aprovadas podem usar a máquina (o acesso, remoto, pode ser feito sem a necessidade de ir a Petrópolis).
Gadelha contou que há cerca de setenta projetos em execução – incluindo a busca de medicamentos e vacinas contra dengue e zika e o desenvolvimento de novos materiais para a geração de energia renovável, mas também estudos sobre a evolução das galáxias ou a circulação das águas oceânicas. Todos eles dependem da alta capacidade de processamento do Santos Dumont. Um único projeto de modelagem de materiais realizado ali por pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos demoraria 465 anos para ser executado num laptop de última geração; no supercomputador de Petrópolis, a tarefa foi concluída em pouco menos de um mês.
De cenho franzido, Augusto Gadelha estava preocupado com o futuro do Santos Dumont. O diretor não sabe se o LNCC terá dinheiro em caixa para garantir seu funcionamento até o fim do ano. O laboratório, bem como outros centros de pesquisa vinculados ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações – ou MCTIC –, foi pego de surpresa quando a verba prevista para a pasta no orçamento de 2017 foi reduzida em 44%, no âmbito de um corte de despesas de 42 bilhões de reais pelo governo federal.
“Você começa o ano com a expectativa de gastar 16 milhões e no meio do percurso descobre que só terá 9 milhões”, queixou-se Gadelha, referindo-se ao orçamento do LNCC para 2017 antes e depois do contingenciamento. O diretor explicou que só a conta de luz fica na casa de 400 mil reais por mês, sem contar o suporte das máquinas e as despesas administrativas. Gadelha colocou os custos de operação do LNCC na ponta do lápis e constatou que a conta não fecha. “Se não houver a complementação do orçamento vamos ter que desligar ou reduzir dramaticamente o uso do supercomputador a partir de setembro”, disse.
Outros institutos ligados ao MCTIC estão em situação parecida. O Inpe, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, avisou que o corte de verbas deve adiar o lançamento de satélites e pode até interromper o serviço de previsão do tempo, feito em outro supercomputador. O CBPF, Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, avisou que seus recursos para este ano se esgotarão no início de setembro, e que “pagamentos essenciais ficarão impraticáveis”.
Para os pesquisadores, os sucessivos cortes de verbas destinadas à área sinalizam a falta de visão estratégica do governo federal. Na avaliação do físico Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências, é tudo uma questão de prioridade. “O argumento de que não há verba para a ciência e tecnologia morreu com os 15 bilhões de reais distribuídos recentemente no Congresso”, disse Davidovich, referindo-se aos recursos para emendas e projetos liberados pelo governo Temer a fim de livrar o presidente da denúncia por corrupção (as contas são do jornal O Globo).
A um pedido de entrevista, o MCTIC respondeu com uma nota afirmando que o ministério está dando prioridade a seus institutos de pesquisa e atuando para liberar mais recursos para a ciência junto aos ministérios da Fazenda e do Planejamento. Não esclareceu, porém, quais esforços estão sendo feitos e qual é a perspectiva concreta de resultados.
Na avaliação de Augusto Gadelha, setembro é o ponto de não retorno para o LNCC. Sem um aceno concreto de que vai receber mais recursos, o diretor afirma que ao longo do mês deve começar a cancelar os contratos com as empresas que prestam serviços ao laboratório, além de interromper progressivamente o funcionamento do Santos Dumont.
Suspender as dezenas de projetos de pesquisa em curso seria apenas um dos prejuízos decorrentes do desligamento do supercomputador. Gadelha explicou que vários componentes podem se deteriorar se ele não estiver funcionando. Lembrou ainda que seria um contrassenso deixar parada uma máquina cara que rapidamente vai se tornar obsoleta. “É como deixar um automóvel de luxo na garagem tomando maresia”, comparou.
Gadelha disse que o orçamento do LNCC para 2017 já estava no limite antes dos cortes – não previa, por exemplo, o upgrade anual do Santos Dumont. Acrescentou que a vigilância foi reduzida ao mínimo necessário, e que alguns banheiros estão fechados, para economizar a limpeza. “Sei que o governo precisa reduzir as despesas, mas uma redução dessas acaba matando o paciente.”