IMAGEM: JANE KORMAM_AP_IMAGEPLUS
Bailar em Auschwitz
Quem disse que é proibido dançar em ritmo de discoteca no local em que milhões foram mortos?
Dorrit Harazim | Edição 47, Agosto 2010
O filmete de quatro minutos e meio estava postado no YouTube há sete meses. Mantinha um perfil meramente vegetativo, nada além de irrisórios bits perdidos em meio às mais de vinte três horas de conteúdo novo que deságua no site a cada minuto do dia. Seus personagens e ação-enredo não poderiam ser mais banais: quatro jovens e um idoso, todos desconhecidos e absolutamente comuns, arriscando movimentos toscos de uma coreografia simplória. Parecem mal-ensaiados, ou talvez estejam improvisando, não se sabe ao certo. Dançam ao ar livre, em locações diversas, indiferentes ao compasso da tonitruante I Will Survive, de Gloria Gaynor – glória das discotecas dos anos 80, hino dos que dão a volta por cima.
A sensação inicial de quem assiste às imagens do idoso em desengonçada folia é de constrangimento, logo suplantado pela estranheza quando se constata que a performance acontece diante do campo de concentração de Auschwitz, onde morreram mais de 950 mil judeus. Mas é justamente ali, sob a inscrição de 5 metros em ferro forjado, de Arbeit Macht Frei (O Trabalho Liberta), que o jovial quinteto começa a cativar o espectador. À medida que o grupo leva o seu extravagante número para as locações seguintes – o campo da morte de Dachau, o gueto de Lodz, a sinagoga onde Hitler pretendia instalar o Museu da Raça Extinta – emerge algo inesperado, forte, comovente e definitivo. Emerge a vida.
A história por trás do vídeo é de uma grande simplicidade. O idoso se chama Adolek Kohn, tem 89 anos, mora na Austrália e é um dos sobreviventes dos fornos crematórios de Auschwitz. No verão passado, sua filha Jane Korman, uma artista plástica residente em Melbourne, convidou o pai para uma viagem com os netos à Polônia, terra dos ancestrais da família.
Foi de Jane a ideia de registrar em vídeo a singular celebração dançante de três gerações de Kohn. Hesitante no início, o patriarca Adolek vai se soltando ante a naturalidade dos netos e cede à alegria de estar vivo. Boné torto na cabeça, agasalho maior que o figurino e calçando um sensato par de sapatos ortopédicos, seus braços se erguem com alguma leveza e as pernas adquirem algum ritmo. Pé de valsa Adolek não é. A julgar pela cadência pouco garbosa do corpo, duvida-se que tenha deslizado por salões de dança na juventude, antes do horror. Ainda assim, no último minuto da gravação feita pela filha, ele pode ser visto com seus joelhos de octogenário dobrados, abrindo e fechando as pernas num clássico movimento do melhor charleston, circa anos 20, em sintonia absoluta, senão com o ritmo, decerto com as palavras de Gloria Gaynor: “Eu tenho minha vida toda para viver/ Eu tenho meu amor todo para dar e/ Eu vou sobreviver, eu vou sobreviver!/ Hey! Hey!”
Hey! Hey!, de fato. “Escapei das cinzas e danço por estar aqui com meus netos que poderiam nem existir”, explica o ancião aos muitos que lhe perguntam se não considerava o vídeo ofensivo à memória dos judeus mortos.
Embora postado em janeiro, o clipe só se disseminou pela rede depois que grupos neonazistas o colocaram em seus websites no mês passado, acompanhado de comentários selvagens. “Vejam como os judeus continuam dançando por todos os cantos. Ainda não acabamos com eles. No próximo Holocausto não falharemos”, dizia um post.
No início de julho, já em meio à febre, mais de meio milhão de visitantes procuraram os quatro minutos e meio de I Will Survive – Dancing in Auschwitz. Esse número só não foi maior porque o vídeo foi retirado do ar por exigência do órgão regulador de direitos autorais da Austrália. Junto à comunidade judaica, as imagens revolveram feridas que levarão bem mais do que três gerações para se aquietar. Críticas contundentes brotaram de todos os cantos. “É a banalização do horror”, escreveu Kamil Cwiok, de 86 anos, no próprio YouTube. “Não consigo ver nestas imagens qualquer homenagem aos milhões que morreram nem aos que escaparam com vida.” Michael Wolffsohn, um historiador alemão de Munique, qualificou o vídeo de “constrangedora autopromoção da artista”. Para o rabino Andreas Nachama, diretor de um museu judaico erguido sobre a antiga sede da Gestapo, em Berlim, o problema está na exibição pública do vídeo. “Se tivesse permanecido junto aos álbuns de fotografia da família, a questão sequer existiria”, sustenta ele.
A julgar pelo resultado das pesquisas feitas por jornais e sites que veicularam o clipe, a aprovação tem sido maior do que as críticas. Entre os leitores do Los Angeles Times, a proporção é de dois para um. Entre os ouvintes da BBC, também. “Ninguém pode dizer a um sobrevivente como lidar com o seu passado”, disse o estudante alemão Falk Ebert, de Stuttgart, ecoando a opinião da maioria dos jovens. “Lamento não ter estado lá para poder dançar com eles. Sou grata por mostrarem que é possível libertar-se das amarras da Shoah”, sustentou uma filha de sobrevivente do Holocausto. “Espero que a próxima reunião de famílias resgatadas dos campos da morte seja em Auschwitz, e que todos nos vejam dançar.”
No verão de 1958, um cidadão americano teve ideia semelhante, só que ninguém filmou. Julius Henry Marx estava com 68 anos e fazia uma viagem pela Europa acompanhado da esposa, da filha de 11 anos e de dois amigos quando decidiu visitar Dornum, o vilarejo alemão em que nascera sua mãe. Chegando lá, descobriu que os nazistas haviam destruído o cemitério judeu local e apagado os registros de várias gerações arquivados na antiga sinagoga. Segundo relato da documentarista Judith Dwan, que participou daquela viagem e tinha 16 anos à época, Julius Marx ficou em silêncio. Sem indicar o que faria, alugou um carro e instruiu o motorista a levar o grupo até Berlim Oriental – mais precisamente, ao local do bunker onde Hitler se suicidara em 30 de abril de 1945.
Chegando lá, viu-se diante de destroços que chegavam a 6 metros de altura. “Vestindo a boina que fazia parte do seu figurino, mas sem o indefectível charuto, ele escalou sozinho o morrote. Ao alcançar o topo, ficou imóvel. Em seguida, e sem esboçar qualquer sorriso, começou a dançar um frenético charleston. A cena durou um ou dois minutos. Ninguém aplaudiu. Ninguém riu”, conta a documentarista.
Naquele dia, Julius Henry foi apenas o filho da judia Minnie Schoenberg, não o genial, anárquico e brilhante comediante Groucho* Marx.
*Correção em relação à edição impressa
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