CRÉDITOS: ANDRÉS SANDOVAL_2022
A balada de Melque
O jovem pianista que nunca viu um concerto ao vivo
Ana Clara Costa | Edição 187, Abril 2022
O cearense Melquizedeque Pereira Silva decidiu que seria pianista ao ver o vídeo de uma garota interpretando Gorjeio da Primavera, do compositor norueguês Christian Sinding (1856-1941). Ele tinha 13 anos e havia aprendido, um ano antes, a ler cifras musicais e a tocar teclado eletrônico num curso em Fortaleza, sua cidade natal. O padrasto de Silva notou o forte interesse do menino por música e começou a procurar cursos gratuitos. Encontrou o da Casa de Vovó Dedé, que inicia crianças nas artes.
Ao tentar se inscrever, em 2015, Silva teve uma notícia desanimadora: não havia vagas para o curso de piano. Ele resolveu falar com a professora, Regina Barbosa, fundadora da instituição filantrópica. “Vi aquele menininho vindo em minha direção, com aquele olhar, dizendo que queria estudar comigo, mas que não tinha vaga… Então eu perguntei a ele se tinha muita vontade mesmo. Ele disse que sim. Prometi dar um jeito”, conta a professora de 78 anos, que conduz a entidade com Wagner Barbosa, seu filho.
Regina Barbosa propôs que Silva fizesse o curso teórico até aparecer uma vaga no prático. O adolescente, que nunca tinha se aproximado de um piano, topou. Seis meses depois, quando chegou a hora de estudar no próprio instrumento, ele ficou exultante. Mas também se assustou: as teclas do piano exigiam um toque mais forte dos dedos que as do teclado. Ele tinha pela frente uma tarefa bem mais difícil do que imaginava.
Silva – que os mais próximos chamam de Melque – passou a treinar cerca de seis horas por dia, de segunda a sábado e às vezes no domingo. De manhã estudava piano na Casa de Vovó Dedé, à tarde ia para a escola e à noite praticava em casa, no teclado elétrico. Ao final do primeiro ano, fez seu recital de estreia na escola. Tocou Melodia em Fá, do russo Anton Rubinstein (1829-94).
O curso de piano de Regina Barbosa dura de sete a oito anos. Silva concluiu em quatro apenas, em 2020. Estava com 18 anos e prestou vestibular para o curso de música, com habilitação em piano, da Universidade Estadual do Ceará. Foi aprovado em primeiro lugar. “Mas na verdade ele já estava pronto para prestar a prova de bacharelado”, diz Barbosa. “Não aprendi muito nesses dois anos, o curso é fraquinho”, conta Silva.
A Casa de Vovó Dedé foi criada em 1993 pelo empresário Mansueto Barbosa, marido de Regina. Começou como uma escola regular para trezentas crianças e era mantida integralmente pelo empresário. Quando ele morreu, em 2002, sua mulher não pôde arcar com todos os custos e resolveu converter o local em uma escola de música. Graças a doações, o ensino era gratuito. Pouco a pouco, outras artes foram integradas no programa da instituição, cujo nome homenageia uma benemérita local que inspirou o trabalho da família Barbosa.
Há quatro anos, a Casa de Vovó Dedé recorre à Lei Rouanet para manter os cursos. Em 2021, captou cerca de 1,5 milhão de reais. Neste ano, 800 mil reais. O valor não cobre todos os gastos, de cerca de 120 mil reais por mês, mas resolve grande parte do problema.
Até o fim de março, entretanto, o valor captado neste ano permanecia bloqueado pela Secretaria Especial de Cultura – e a Casa de Vovó Dedé estava funcionando desde o início do ano graças a empréstimos. “Não se consegue falar com ninguém na Secretaria de Cultura. É tudo por sistema. Em quatro anos, sempre prestamos contas, recebemos fiscalização e tudo corre sem problemas. Agora é que degringolou. Eles também demitiram muitos pareceristas, e desconfio que isso possa ter atrasado ainda mais o processo”, diz Wagner Barbosa. Ele revela quem está mantendo os cerca de novecentos alunos e pagando os salários dos professores: “Nós e Deus.”
Em março de 2020, a mãe de Melquizedeque Pereira Silva morreu, vítima de um AVC. Sua irmã acabara de se casar e se mudara para o interior. Seus avós, que precisavam de cuidados, foram viver com duas filhas. Silva tem pouco contato com o pai e viu-se desamparado durante o lockdown.
Foi salvo, outra vez, por Regina Barbosa, que o hospedou por um ano e dois meses. “Na minha casa, ele não parava de estudar. Praticava até nove horas por dia. Em seguida, ouvia música no computador”, recorda a professora, que também pagou um curso online de inglês para o rapaz.
Depois da pandemia, Barbosa alugou para Silva um pequeno apartamento em frente à Casa de Vovó Dedé. “Tudo que tem aqui foi ela que comprou. Só o violão é meu”, diz ele, que recebe uma pensão de um salário mínimo deixada pela mãe. Os seus compositores prediletos são o polonês Frédéric Chopin e os alemães Johann Sebastian Bach e Robert Schumann. Entre os intérpretes, a argentina Martha Argerich, o brasileiro Nelson Freire, o polonês Krystian Zimerman, o canadense Glenn Gould e o norte-americano Leonard Bernstein. Seu objetivo é tocar os cinco concertos para piano de Beethoven e as quatro baladas e os dois concertos para piano de Chopin. “São peças muito desafiadoras para as quais eu ainda não estou preparado”, comenta. “Eu já toquei algumas. Mas uma coisa é tocar, outra é tocar bem”.
No Festival Internacional de Música Instrumental do Ceará Mansueto Barbosa, realizado pela Casa da Vovó Dedé em março de 2020, o jovem interpretou a Balada nº 1 em Sol Menor, Op. 23, de Chopin. Ele avalia que tocou mal no dia. Mas chamou a atenção de uma jurada, a pianista brasileira Sylvia Thereza, que o convidou para ingressar na Luca Escola de Artes, onde ela leciona, no campus da cidade de Leuven, na Bélgica. A bolsa de estudos, porém, não incluía os custos de estadia. Como nada é impossível para Regina Barbosa, ela conseguiu um patrocínio com duas famílias benfeitoras que já haviam contribuído com os estudos de duas alunas – Michelle Lucena e Karina Toledo – no Conservatório Internacional de Música de Paris.
Os novos planos levaram Silva a interromper as aulas online de francês – que ele estava aprendendo para ler no original seu livro favorito, Madame Bovary, de Gustave Flaubert – e a centrar esforços no estudo do holandês, idioma que prevalece na cidade belga de Leuven.
Silva, que tem hoje 20 anos, está animado e apreensivo. Diz que só acreditará que tudo não passa de um sonho quando estiver embarcando para a Bélgica, no segundo semestre deste ano. Ele nunca saiu do Ceará, nunca viajou de avião e nunca viu um concerto de piano e orquestra ao vivo.