CREDITO: ANA CARTAXO_2020
Bastidores de 1 poema e 6 em andamento
Armando Freitas Filho | Edição 170, Novembro 2020
BASTIDOR DE 1 POEMA E 6 EM ANDAMENTO
Andando a pé, pensando na passagem do tempo.
No jornal, a foto de página inteira da cara de Miles Davis.
Meu filho fez 10 anos: “entrar na casa de dois dígitos para sempre.”
Esta linha entre aspas acima veio inteira, pronta.
Sem caneta, pedi emprestada a do jornaleiro.
E escrevi na testa cinza-preta de Miles o que pensei.
O resto do poema veio vindo ou eu fui a ele
durante a caminhada, escrito com outras canetas de empréstimo.
Em cores diversas: azul, preta, vermelha.
A testa lisa de antes foi se franzindo.
E Miles Davis foi envelhecendo à força
à medida do que ia sendo escrito, com rasuras.
10 ANOS*
para Carlos
Flor masculina do meu bosque
seu cheiro começa a ser íngreme
árduo – de cabelo e músculo –
de dias ardidos de escalada.
Subsiste o primeiro suor da noite
inodoro porque em repouso
a pele lisa que a barba e a acne
ainda não contrariam, o ar de entrega
se mantém embalsamado
pelo sono ou por algum sonho
de maldade, com mulher de celofane.
Mas a infância já se feriu, inevitável
ao entrar na casa de dois dígitos para sempre.
A dor de alterar-se, de altear-se
estala, e a inocência também é de sangue.
Uma e outra se quebram e reanimam-se:
têm o mesmo comportamento, prazo
bravio e breve, das ondas no mar.
*In: Máquina de Escrever. Nova Fronteira, 2003.
SURDEZ
Socorro! Por escrito
perde o som da exclamação
do uivo da imagem
tampando os próprios
ouvidos, embaixo
do pincel pesado
de tinta do grito
no quadro de Munch!
ENCONTRO
“Kauka”, como entendeu
Carpeaux, frente a ele
em Berlim. O outro encontro
uns cinco anos depois
foi em livros empilhados.
Todos, O Processo
sem venda alguma, lixo puro
de Kafka, e começou a ler:
então era aquele de 1921?
CERTEIRA
Ana matou a morte
antes que ela decidisse por isso.
Estava certa de que viveria
melhor se fosse por escrito
em plena glória e paz.
BREU/ BRANCO
A dor não dorme
a noite avança.
Conter com quê
sem remédio à mão?
Despido de socorro
a voz gagueja na mudez
a mão treme sozinha
o silêncio amarra!
No quadrado do quarto
no negro quadro sobre fundo
branco “eu sentia apenas a noite
dentro de mim, foi então que concebi
a nova arte, que chamei de suprematismo”
que numa outra hipótese podia ser
branco sobre branco.
Assinado – Malevich. Verso e frente.
P.S. Perdi a terceira estrofe
a genuína, a melhor delas
onde no papel da memória
foi escrita perdida esquecida
TEMAS E METAS
O mar repetitivo como as marinhas
ininterruptas pintadas por Pancetti
tal e qual as sucessivas mensagens
das garrafas de Morandi, que cintilam
diferentes, dependendo das ondas.
Como as incessantes maçãs de Cézanne
também capaz de pintar vezes sem conta
o ar livre que cerca a montanha de Sainte-Victoire
em toda ocasião em que a viu, visitou, dura
durante a vida, pintada e meditada.
Leitmotiv adesão identidade decorado
pelas inúmeras declinações do olhar e do mar.
A mão o leva do chão
às telas no cavalete, não molha
ao seu redor, nada – de mar a mar:
mancha pictórica, com a colaboração do céu
onde o tempo de um sonho é o tempo de uma nuvem.
AINDA PANCETTI, MORANDI E DE QUEBRA GUIGNARD
Pancetti mimetiza o mar
pintando sucessivas marinhas.
A paleta de cores
tem o formato da baía, do mar
que o polegar de Pancetti detém.
Parecem uma só, mas vistas de perto
os matizes as diferenciam, a posição
do sol, da luz é quase a mesma, e não é.
Se vistas de longe quem anda na praia
aparentemente paralisada
passa vencendo o marasmo
deixa pegadas como prova
antes que as ondas as apaguem.
*
O sol batendo no alvo
das garrafas equilibradas de Morandi
em cima do muro do maralto.
Reparava que de acordo
com a estação, com o seu sol particular
com sua disposição, elas variavam: eram outras.
Naturezas mortas por um instante apenas.
*
O mar vertical de montanhas
o sino que sai de si e soa
sobre os telhados de Guignard
não é o que se reflete no mar
feito de horizonte em Pancetti, ou então
é o mesmo em dois estágios:
a) levanta brusco em ondas paradas
b) e alisa ao reencontrar a praia
depois do tormento do maremoto.
De novo pensando e andando: Oscar Wilde dizia que quem inventou a neblina tão constante em Londres foi Turner. Se é assim, quem levantou a montanha piramidal de Sainte-Victoire tantas vezes foi Cézanne, pintando-a, pensando, comendo uma maçã.
Os poemas fazem parte do livro Arremate, a ser lançado neste mês pela Companhia das Letras.