Bastilha!
Uma esquina solidária
Natacha Maranhão | Edição 12, Setembro 2007
“Tem uma televisão ali”, observou um transeunte. “Parece que vão quebrar”, conjeturou outro. E assim foi: sob o olhar atônito de passantes, Alemão levantou o televisor acima da cabeça e o arremessou com força no chão da Praça da Liberdade, no centro de Teresina. Voou transistor holandês para todo lado. À distância, um grupo de lavadores de carro se deu conta do conteúdo do protesto e chegou à conclusão que era um dever cívico dar uma mão aos insurgentes. Decidiram-se por tocos. Judiciosamente distribuídos entre Alemão e seus quatro companheiros, o que restava do monitor agonizante foi abatido a pauladas. Pontapés também entraram na ordem do dia. Isso tudo ao som exaltado de “Piauí, terra querida,/ Filha do sol do Equador,/ Pertencem-te a nossa vida,/ Nosso sonho, nosso amor”, o hino do estado. A multidão que comparecera ao ato público aplaudiu.
O sol de uma da tarde torrava os miolos de uma centena de sujeitos furiosos, que, além de porretes, desfraldaram lábaros do Piauí. Diante da Igreja de São Benedito, ainda havia duas vítimas a executar: um receiver e um aparelho de som três-em-um. Curiosamente, o líder do motim, o Alemão, não é piauiense – e muito menos alemão. Ele se chama José Eduardo Araújo Borges, tem 26 anos, e é gaúcho. Mas sua alma, bem como sua mãe, pertencem ao Piauí, onde mora desde os 12. Ele é o presidente da União da Juventude Socialista do Piauí. Geralmente, sai às ruas para defender a reforma agrária, denunciar o imperialismo ianque e maldizer o Consenso de Washington. Naquela sexta-feira, essas questões lhe pareciam menores. Provisoriamente, o inimigo agora era outro e levava o nome de Zottolo, ou “O Tolo”, como berravam todos em uníssono enquanto marchavam pela Avenida Frei Serafim.
Como o leitor piauiense está cansado de saber, Paulo Zottolo é o presidente da Philips e virou uma espécie de Asmodeu, Coisa-Ruim e Cão-Tinhoso depois de declarar ao jornal Valor, no dia 16 de agosto, que “se o Piauí deixar de existir ninguém vai ficar chateado”. Como estava enganado! Um bocado de gente se chateou. E não apenas jovens socialistas.
Experientes capitalistas também se aborreceram. João Claudino Jr., diretor do Grupo Claudino, foi um deles. O Grupo Claudino controla a principal rede de varejo do Piauí, o Armazém Paraíba, com 300 lojas em dez estados do Nordeste. É o quinto maior cliente da Philips. Ou melhor, era. No último dia 18, os três principais diários piauienses publicaram um anúncio de página inteira do Armazém Paraíba com a frase: “Respeito é bom e o Piauí merece”. No dia seguinte, as lojas da rede no estado pararam de vender produtos Philips. No dia 23 de agosto, uma rede concorrente aderiu ao boicote. A direção da Insinuante, com sede na Bahia, mandou retirar todos os aparelhos Philips das suas seis unidades no Piauí. Se Zottolo não ia sentir falta do Piauí, o Piauí não ia sentir falta da Philips.
O receiver abatido em praça pública não faria falta a um dos jovens quadros da UJS, que o trouxe de casa. O três-em-um, idem. Pertencia a outro companheiro de Alemão. Já a defunta TV de 29 polegadas foi conseguida graças a um funcionário socialista de uma oficina de assistência técnica. Estava abandonada numa prateleira. Já não vivia quando foi assassinada. Alemão tem um DVD Philips em casa. Não achou estratégico quebrá-lo.
No dia 26 de agosto, um grupo de sete deputados estaduais de São Paulo visitou o Piauí. Haviam sido escolhidos pela Assembléia Legislativa para “levar a solidariedade do Legislativo paulista e do povo do Estado de São Paulo àqueles Poderes [o Executivo e o Legislativo] e à população piauiense”. Há uma espécie de Piauí pride no ar. Nunca tantos saíram tão rápido do armário cívico. No mesmo dia 26, um bar da Vila Madalena, em São Paulo, promoveu o evento “Viva o Piauí!” Foram servidos pratos típicos piauienses, inspirando maciça solidariedade gastronômica. De todas as manifestações, talvez nenhuma tenha sido mais bizarra que a de Ivete Sangalo. Em show na madrugada de 24 de agosto, num espaço chamado Atlantic City Club, em Teresina, ela proclamou: “Se o meu corpo fosse um mapa, meu coração seria o Piauí”. A bizarrice não está apenas na imagem político-cartográfica. Ivete Sangalo é figura de ponta do movimento “Cansei”, cujo líder é Paulo Zottolo.
Zottolo não deixa o Piauí em paz. Quando era diretor da Nivea, achou divertido dizer que, antes dele, a marca era como Teresina, “que todo mundo sabe que existe mas ninguém sabe onde fica”. Zottolo agora está cansado de saber.
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