ILUSTRAÇÃO_ANDRÉS SANDOVAL_2018
Batman recua
Das ruas aos quartos de hospital
Luigi Mazza | Edição 148, Janeiro 2019
“Batman de novo?”, disse a enfermeira, assim que as portas do elevador se abriram no 5º andar do Hemorio, instituto de referência em hematologia, no Centro do Rio de Janeiro. “Beleza pura?”, saudou o homem de jaleco branco, calça jeans, tênis e maquiagem preta ao redor dos olhos. Cobrindo o rosto, uma máscara de borracha do super-herói, um tanto gasta.
Naquela tarde de dezembro, Doutor Batman – alter ego do protético Eron Morais Melo, de 37 anos – fazia sua visita rotineira aos pacientes do hospital, onde vai quase toda semana. A ação voluntária de cosplay é hoje a principal atividade desse carioca de classe média, morador de Marechal Hermes, que virou um símbolo das manifestações de Junho de 2013. Foi chamado de “Batman DOS Protestos”, depois que viralizou na internet um vídeo em que ele discute com um homem que criticava os manifestantes e acusou o super-herói de ser um “símbolo do capitalismo americano”.
Nos corredores do hospital, Melo distribui mensagens motivacionais a pacientes e seus familiares. Em dias mais frescos, costuma usar a fantasia completa. Quando faz calor ou ele está com pressa, adota a “persona médica” de Batman, que exige apenas a máscara, o jaleco e um estetoscópio de brinquedo. Aos enfermos, costuma passar o que chama de “receituário para a alma”.
O primeiro paciente do dia a receber a prescrição foi um menino de 13 anos que se recuperava de uma lesão no pé esquerdo. Ao lado da maca, Melo deu início ao script que repetiria ao longo do dia. “O Batman no Brasil é pobre, então tenho que trabalhar como médico para pagar a gasolina do Batmóvel”, disse. Ao pressionar o estetoscópio contra o peito do menino, o apetrecho tocou batidas de funk. “Ih, tu ouve funk, mermão? Teu coração tá bombando.”
Concluído o número, Doutor Batman ateve-se à receita, agora em tom grave: uma gota de fé, uma gota de esperança e uma gota de perseverança, “as maiores armas que um herói pode ter”. Por fim, presenteou o menino com um bumerangue preto no formato de morcego, produzido com folha de E.V.A. (material emborrachado feito de copolímeros de etileno e acetato de vinila ), com a inscrição “Deus é fiel”, em letras douradas.
Criado em uma família evangélica, Eron Morais Melo quis ser pastor da Igreja Presbiteriana quando era jovem. Aos 28 anos, começou a frequentar eventos de anime e encarnou, pela primeira vez, seu super-herói favorito. Com as habilidades desenvolvidas no ofício de esculpir próteses, passou a fabricar as próprias fantasias usando fibra de vidro e materiais de papelaria.
Quando explodiram as históricas manifestações de 2013, inicialmente motivadas pelo aumento da passagem de ônibus, o protético viu no Facebook uma imagem em que o então prefeito do Rio Eduardo Paes aparecia como Coringa, o arquirrival do homem-morcego. Melo passou a perceber o Rio como sua Gotham City – “é corrupta e violenta”, disse. Em 20 de junho, quando uma multidão estimada em 300 mil pessoas tomou o Centro da cidade, ele encarnou Batman pela primeira vez nas ruas. Nos meses seguintes, a atividade virou rotina. Posou para fotos sobre os Arcos da Lapa e chegou a ser detido pela polícia por estar com o rosto coberto.
A performance foi o gatilho de uma breve vida política. Em algum momento entre junho de 2013 e os atos pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff, dois anos depois, Melo passou de ícone dos protestos a apoiador de Jair Bolsonaro. Nas eleições de 2016, candidatou-se a vereador pelo PSC, Partido Social Cristão, que então reunia o clã bolsonarista, anunciando-se aos eleitores como “Eron Batman dos Protestos”. Fez vídeos ao lado de Jair e Flávio Bolsonaro, prometeu “endireitar o Rio” e acabar com a “erotização infantil”. Teve apenas 473 votos.
A lua de mel com o bolsonarismo acabou poucos meses depois. Em fevereiro de 2017, o protético criticou Flávio Bolsonaro nas redes sociais, após o parlamentar ter votado em Jorge Picciani, cacique do MDB, para o seu sexto mandato como presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. “Tem coisa mais velha política do que isso?”, reclamou Melo. Cinco dias mais tarde, Flávio Bolsonaro revidou. O deputado publicou no Instagram uma foto do Batman dos Protestos ao lado de manifestantes que pediam o fim da Polícia Militar. A legenda ironizava o “sonho dos militantes do PSOL”. Melo, que nem concordava com a reivindicação, foi atacado na internet e taxado de esquerdista. “Você só é amigo enquanto reza pela cartilha deles”, lamentou.
Em junho passado, publicou na sua página Batman dos Protestos, no Facebook (com mais de 46 mil seguidores), um post em que explica sua ruptura com os antigos camaradas. Sem a máscara de Batman, com o cenho franzido e as longas costeletas à mostra, diz que mudou de lado após ter visto um vídeo em que o ex-capitão, num comício no Rio de Janeiro, em 2017, defende o salário de 33 mil reais dos deputados federais. “Infelizmente [Jair Bolsonaro] não é um mito, é uma farsa”, sentencia Melo. Em seguida, pede desculpas pelo que defendeu no passado. “Socialismo é uma merda, mas não posso apoiar quem está há trinta anos na política e nunca fez nada.”
Apesar da nova tomada de posição, Batman decidiu não ir às ruas durante a última campanha eleitoral. Tem se dedicado sobretudo ao voluntariado, que alterna com o trabalho de protético – como é autônomo, sua renda e carga horária variam conforme a demanda. Eventualmente, faz bicos em festas infantis ao lado de outros super-heróis.
Abriu exceção em 29 de novembro, um mês depois do segundo turno. Com a fantasia completa de Cavaleiro das Trevas, foi à sede da Polícia Federal acompanhar a prisão do governador do Rio, Luiz Fernando Pezão, investigado na Operação Lava Jato por suposto recebimento de propina. Em fotos na imprensa, o Batman carioca aparece segurando uma cartolina com os dizeres “Pezão ladrão seu lugar é na prisão”. Ao seu lado, um homem ostenta a camisa da Seleção. São os dois únicos manifestantes no local. “Na verdade, aquilo foi uma festa”, disse Melo. “É de lei. Depois de tanto protesto, a gente teve que comemorar.”