Esculturas dos Beatles no Museu de Cera de Madame Tussaud, em Londres. FOTO: © GETTY IMAGES_WILLIAM THOMAS CAIN
Beatles
As contradições entre o apaulíneo e o johnisíaco ajudam a explicar a permanência da música do grupo inglês
Marcelo O. Dantas | Edição 3, Dezembro 2006
Ainda outro dia, um amigo me mandou um e-mail contando que havia presenciado uma cena saída diretamente do seriado Túnel do tempo. Encostados no balcão do BB Lanches, no Rio, dois garotos, de no máximo 13 anos, conversavam assim: “Você sabe por que eles fizeram taxman? Porque na Inglaterra tinha imposto pacas. Eles fizeram uma música de protesto!”. Ao que o outro aquiesceu, acrescentando mais um caminhão de informações sobre o hino antitributário do álbum Revolver.
Meu amigo ficou estupefato. Era como se nós dois estivéssemos ali, 30 anos antes, tomando um suco depois do colégio. Nessas três décadas, o mundo virou do avesso. Acabou a guerra fria, o regime militar, a paz no Leblon. Sérgio Dourado faliu, Star Wars cansou, Joey Ramone morreu. Foi-se tudo e mais um pouco. Mas os garotos ainda estão lá, falando dos Beatles.
Alguns historiadores do rock atribuem o fenômeno às vantagens do pioneirismo — os Beatles foram as pessoas certas no momento certo. Tinham o talento, o visual e a ousadia necessários para ocupar o vazio deixado pelo esgotamento criativo de Elvis, Chuck Berry, Little Richard e companhia. Mal despontaram para o estrelato, entenderam a importância de se posicionarem na vanguarda de uma década revolucionária. E foram assim pavimentando o caminho para a explosão internacional do rock, a difusão da contracultura e a grande revolução musical e comportamental dos anos 60.
Embora sensato, o argumento se refere apenas ao passado. Não explica nada sobre a permanência dos Beatles. Nenhum moleque vai sair da sua casa e ir até o camelô da esquina comprar um CD por conta do papel histórico de uma banda na formação do mundo moderno. Além do quê, sejamos objetivos: os anos 60 terminaram faz tempo. Permanece então a pergunta: como pode alguém se apaixonar pelos cabeludos de Liverpool em meio ao cinismo e à desesperança do século XXI? Como pode um jovem saudável contrair a febre da beatlemania em plena era do hip-hop e da cultura digital? O palpite é simples. A música — tudo se resume à música.
Os quatro nunca foram instrumentistas virtuosos. Ninguém encontrará um solo de 15 minutos num disco dos Beatles. Mas eles tocavam com convicção, com gosto. Num estilo próprio, inigualável. Utilizando até a última gota os recursos técnicos a seu dispor. Quando necessário, sabiam acolher a contribuição de amigos brilhantes. E, como num passe de mágica, o convidado era incorporado ao som da banda, tornando-se o quinto elemento: Clapton arrancando gemidos da sua Les Paul em While My Guitar Gently Weeps, Billy Preston incendiando Get Back com seus teclados endiabrados.
Outra virtude: eles cantavam bem. Talvez sem o virtuosismo de Ray Charles, Sam Cooke ou Aretha Franklin, mas com fabuloso esmero. Cantar não é apenas uma questão de extensão vocal e técnica apurada. É também possuir um bom timbre, e usar a voz com caráter, potência, precisão. Quem pode resistir ao suíngue vigoroso de Lennon em Twist and Shout ou ao charme nostálgico de McCartney em When I’m Sixty-Four? Quem consegue ser mais expressivo que John em I’m So Tired ou mais irado que Paul em Helter Skelter? Mesmo George e Ringo tinham seus momentos. A performance do homem dos anéis em Boys merece figurar em qualquer antologia de rockabilly. Os vocais de Something fizeram a cabeça até do exigente Sinatra.
Eles eram também mestres da harmonia. Sabiam como poucos combinar suas vozes, fazer arranjos, colorir as canções com impecáveis duetos e corinhos. De If I Fell a Because, John, Paul e George fizeram o diabo. Durante seus anos de formação, os três beberam na melhor escola da música negra americana, ouvindo muito rythm’n’blues e soul music. Eles se ligavam mais no som de gravadoras como a Motown, a Stax-Volt e a Atlantic do que propriamente no blues raiz da Chess Records, porém ainda assim curtiram, aprenderam e internalizaram uma música negra legítima. Cheia de balanço, alegre, contagiante. Que os influenciou até o final – especialmente ao blackman McCartney. Let It Be não é outra coisa senão um poderoso hino gospel cantado por um pastor de alma retinta.
Eles tocavam tudo, ouviam tudo. Sabiam aprender e recriar. Poucos grupos, em toda a história do rock, conseguiram ser uma banda cover tão boa como os Beatles. Os quatro tocavam Please Mr. Postman, You Really Got a Hold on Me, Roll over Beethoven, Money (That’s What I Want), Rock and Roll Music ou Kansas City vários furos acima dos originais. Coisa que nenhum dos demais integrantes da invasão inglesa jamais chegou a fazer. Os Stones eram intérpretes sofríveis de Muddy Waters e Howlin’ Wolf. Os Beatles cantavam Smokey Robinson melhor que o próprio.
Eram também ousados, destemidos. Capazes como ninguém de desbravar novas áreas para o avanço da música popular. She Loves You, And I Love Her, Yesterday, Norwegian Wood, Day Tripper, Paperback Writer, Strawberry Fields Forever, Lucy In The Sky With Diamonds, A Day In The Life, All You Need Is Love, Lady Madonna e Here Comes The Sun alargaram o universo de possibilidades da música pop, trazendo novas formas de tocar, novos estilos, novas técnicas de gravação, novas estruturas de composição.
Atribuir tanta inventividade apenas ao produtor George Martin (como o fazem alguns críticos) é uma tolice que só pode ser cometida por quem nunca ouviu Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band — com Peter Frampton e os Bee Gees. Foi o maestro quem produziu o disco. E a genialidade nem passou por perto.
O amadurecimento musical da banda pode corresponder, facilmente, ao amadurecimento natural de qualquer pessoa que vai se descobrindo um amante da música. E, por isso, atrai, conquista, cria vínculos. Além do que, trata-se de um amadurecimento generoso, inclusivo, ponderado, que jamais pretendeu renegar a simplicidade dos primeiros anos. Os Beatles adicionaram novas veredas a sua trilha inicial, sempre com a convicção de que o simples e o complexo são duas formas distintas de se chegar à beleza. Penny Lane nunca será melhor que I Saw Her Standing There. Apenas diferente. Uma forma distinta de se chegar à perfeição.
A diversidade e a amplitude do som dos Beatles criam várias portas de entrada para quem está começando a se interessar por música. Conheço pessoas que se viram atraídas pelo balanço juvenil de I Should Have Known Better, pela viagem indiana de Within You and Without You, pela elegância clássica de Eleanor Rigby, pela lucidez enérgica de Revolution, pelo sabor folk de Blackbird e pela fantasia sing-along de Yellow Submarine. Cada um chegou ao quarteto por uma via diferente; e, a seu modo, todos acabaram por fazer o circuito completo.
Os Beatles eram um mecanismo de criação. Sempre olhando para a frente, sem jamais se escorar no êxito formulaico. A força propulsora desse mecanismo era (eis a minha tese central) a interação dialética de Lennon & McCartney. Uso a palavra sem pedantismo, em seu sentido mais amplo. Dialética é diálogo, embate, discussão. Mas também o jogo permanente e sem descanso. Adição e contradição; unidade e multiplicidade; identidade e diferença. Movimento e síntese. Dois compositores igualmente geniais, mas com inclinações distintas, por vezes opostas. Dois líderes cheios de idéias e talento. Um levando o outro a permanentemente se superar. Ambos avançando: ora juntos, ora separados. Nenhum permitindo ao outro se acomodar. Nenhum aceitando ser deixado para trás.
Em geral, as grandes parcerias musicais são compostas por um melodista e um letrista, que unem forças, formando uma perfeita unidade: Rodgers e Hart, George e Ira Gershwin, Tom e Vinícius, Lieber e Stoller, Page e Plant, Keith Richards e Mick Jagger, Elton John e Bernie Taupin. No caso de Lennon & McCartney tudo muda. Ambos eram compositores completos, autônomos. Mas entenderam, desde cedo, a importância de buscarem um ao outro. Muitas duplas de compositores somam. John e Paul multiplicam.
As narrativas mais comuns da trajetória dos Beatles levam a crer que a parceria Lennon & McCartney existiu apenas na fase inicial do conjunto, tornando-se mais tarde mera convenção. Trata-se de um engano. Eles foram parceiros até o final. Mesmo quando escreviam separados, John e Paul o faziam um para o outro. Pensavam, sentiam e criavam obcecados com a presença (ou ausência) do parceiro e rival.
Sem a contribuição decisiva de McCartney, jamais teríamos algumas das mais inspiradas canções de Lennon. Deve-se a Paul a abertura de Strawberry Fields Forever, o arranjo grandioso de All You Need Is Love, os efeitos de tape de Tomorrow Never Knows, a alucinação de I Am The Walrus, o ambiente sobrenatural de Come Together. Lennon era um purista musical, apegado a suas raízes, calcadas no rock’n’roll, rythym’n’blues e country & western. Quem embarcou de cabeça na vanguarda musical dos anos 60, quem verdadeiramente viajou na explosão sonora lisérgica foi Paul McCartney, um perfeccionista dado a experimentos, colagens, finais falsos, mudanças tonais e delírios orquestrais.
Em contrapartida, sem o olhar crítico de Lennon, sem sua verve e sua wit britânica, os mais conhecidos standards de McCartney teriam sofrido perdas poéticas. A letra reflexiva de Yesterday (inicialmente intitulada “Scrambled Eggs” — ovos mexidos, quando Macca tinha na cabeça apenas uma melodia sem palavras) foi uma clara resposta de Paul ao amadurecimento da poesia de John em I’m A Loser, Help! e You’ve Got To Hide Your Love Away. Lennon emprestava às baladas e canções pop de McCartney uma lucidez e uma sobriedade fundamentais. Ele sabia reprimir o banal e fomentar o sublime. Foi sentando-se ao lado do companheiro que Paul ganhou confiança para manter na íntegra os versos mais ousados de The Fool On The Hill e Hey Jude. Duas letras de primeira grandeza.
Em algumas canções, um ligeiro toque de Lennon fazia a diferença entre o excelente e o genial. A melhor estrofe de We Can Work It Out é de John: “Life is very short / and there’s no time / for fussing and fighting my friend“. Sem a intervenção cirúrgica do autor de Being For The Benefit of Mr. Kite e Happiness Is A Warm Gun, tampouco haveria em Eleanor Rigby a estranheza surrealista dos versos: “Waits at the window / wearing the face / that she keeps in the jar by the door /Who is it for?“. Do mesmo modo, a entrada em cena de John – na voz dos pais desesperados – é indispensável a She’s Leaving Home, talvez a mais comovente e perene canção sobre o conflito de gerações e a juventude drop-out. Canção que inspirou o nosso Rubem Fonseca a escrever a obraprima Lúcia McCartney.
A sombra ameaçadora de Lennon fornecia ainda combustível para os ímpetos rockeiros de seu parceiro e rival. A visionária Back In The USSR traz o humor irônico de John estampado no rosto. Canções como I’m Down e Why Don’t We Do It In The Road foram feitas por Paul para mostrar a John que conseguia ser ainda mais primitivo que ele. E Get Back — o melhor rocker de toda a obra dos Beatles – nasceu da (compreensível) irritação de Paul com Yoko e do seu desejo de deixar bem claro quem continuava a ser o dono do pedaço.
Mas como a dialética é uma via de mão dupla, também o lado suave de Lennon se nutria da presença benfazeja de Paul. A belíssima melodia de In My Life é puro McCartney e gemas preciosas como Girl, Because ou Julia têm as impressões digitais do parceiro por todos os lados, ainda que tenham sido escritas na mais monástica solidão.
Nietzsche atribui o caráter dionisíaco aos nossos impulsos rebeldes, subjetivos, irracionais, apaixonados, lunares; forças do transe e da intoxicação, que questionam e subvertem a ordem vigente. Em contrapartida, designa como apolíneas as nossas tendências ordenadoras, objetivas, racionais, serenas, solares; forças do sonho e da profecia, que promovem e aprimoram o ordenamento do mundo. Ao se unirem, tais forças teriam criado, a seu ver, a mais nobre forma de arte que jamais existiu.
Como criadores, tanto o metódico Paul McCartney quanto o irrequieto John Lennon expressavam à perfeição a dualidade proposta por Nietzsche, que ouso traduzir pelos termos Apaulíneo e Johnisíaco. Lennon punha o mundo abaixo; McCartney construía novos monumentos. Lennon abria mentes; McCartney aquecia corações. Lennon trazia vigor e energia; McCartney impunha senso estético e coesão. Não raro, os papéis se alternavam, se complementavam, se fundiam.
Quando os Beatles se separaram, essa magia se rompeu. John e Paul se tornaram compositores com altos e baixos; intérpretes com falhas às vezes evidentes. Fizeram coisas boas. Deram material para compilações de peso. Mas raramente se aproximaram da perfeição alcançada pelo quarteto. Sem a presença instigante de Lennon, Paul começou a patinar em letras anódinas e baladas açucaradas. Seus rockers perderam a força vital e muitos arranjos deixaram de ser pautados pelo sentido da boa medida. A alma negra embranqueceu. Não se tornou um compositor ruim. Mas se aproximou perigosamente de Elton John e Burt Bacharach. Mesmo Band On The Run parece por vezes um Abbey Road sem dentes. É música de grande qualidade. Mas os Beatles faziam melhor.
Do mesmo modo, John sofreu com a falta de Paul. Plastic Ono Band, embora genial, é um verdadeiro festival de excessos idiossincráticos. Em Imagine, John ensaia um bem-sucedido retorno à estética Beatle, mas logo em seguida a presença de Yoko irá se impor, destruindo o equivocado Sometime in New York City.
Ironicamente, o grande disco dos ex-Beatles, a verdadeira obra-prima, acabou sendo All Things Must Pass, o álbum triplo em que George Harrison deglutiu os antigos companheiros de banda, abrindo as comportas de sua produção musical, represada durante uma década à sombra de John e Paul. E foi assim, por estranhos caminhos antropofágicos, que a dialética de Lennon & McCartney brilhou pela última vez.