ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2020
Bêbado como um peixe
As lições do paulistinha sobre o alcoolismo
Bernardo Esteves | Edição 170, Novembro 2020
Dê uma dose moderada de álcool a um peixe paulistinha e em vinte minutos ele vai começar a ficar animado e desinibido. Nadando rapidamente, vai explorar recantos escondidos do aquário e socializar com seus colegas. Se aumentar a dose, dali a pouco ele vai ficar depressivo, nadando devagar no fundo do tanque. Se tomar um pouco mais, vai acabar parado rente ao fundo, deitado de lado ou mesmo de cabeça para baixo. “Ele perde a percepção de equilíbrio e começa a virar”, disse a bióloga Ana Carolina Luchiari. “Esse aí tá bebaço.”
Embebedar peixes é parte do trabalho de Luchiari na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. A paulistana de 41 anos é a líder de um grupo de pesquisa que investiga os efeitos do álcool e de outras drogas no paulistinha, ou peixe-zebra – um peixe de aquário rajado estudado em muitos laboratórios de biologia mundo afora. Em seu laboratório na UFRN, há atualmente quase mil paulistinhas espalhados por cerca de duzentos aquários, além de peixes de outras duas espécies. “Como o comportamento desse peixe quando ingere álcool é similar ao dos seres humanos, eles são um bom modelo para estudar o alcoolismo”, afirmou a bióloga.
Para dar álcool aos paulistinhas é preciso dissolver a substância na água do aquário. Os peixes não têm escolha: absorvem o líquido pelas brânquias e logo a concentração de álcool em seu sangue é a mesma encontrada na água. Os experimentos concebidos por Luchiari começam com uma concentração de 0,1%, o equivalente a um copo de cerveja para um ser humano, e vão até 3%, comparável a uma garrafa de vinho.
Assim como os humanos, alguns paulistinhas são mais sensíveis que outros aos efeitos do álcool. Luchiari tenta entender se as diferenças de personalidade entre os indivíduos afetam sua tolerância ou sua dependência da substância. Quando bate o olho num grupo de paulistinhas, ela identifica de cara os dois ou três que podem virar alcoólatras. “Aquele que não se locomove tanto, que come por último, que é o dominado na hierarquia dos peixes, esse é o que tem maior tendência a desenvolver alcoolismo.”
O paulistinha é um peixe pequeno, de até 5 cm, fácil de criar. Tem ciclo de vida curto e não costuma viver mais que cinco anos. Como é uma espécie relativamente próxima dos seres humanos – compartilhamos cerca de 70% do nosso genoma com o Danio rerio –, virou um modelo para vários campos da biologia. Para os cientistas, uma vantagem adicional é que os ovos e embriões do paulistinha são transparentes, o que permite observar seu desenvolvimento. É possível investigar, por exemplo, se ele é afetado pela exposição ao álcool. “E isso não dá pra fazer com mamíferos, porque eles se desenvolvem dentro do útero”, disse Luchiari.
Para a bióloga, o mais importante é que os paulistinhas não ocupam muito espaço. Esse foi um fator determinante para ela decidir estudar a espécie quando teve apenas uma sala pequena para montar seu primeiro laboratório na Universidade Federal da Paraíba, em 2008. Até então, ela estudava peixes maiores, como a tilápia ou o pacu, que jamais conseguiria criar naquele espaço. “Fui ao pet shop, comprei um monte de paulistinhas, levei para o laboratório e comecei a observar”, contou.
O interesse pelo estudo do alcoolismo ela trouxe de uma temporada que passou na Universidade de Jyväskylä, na Finlândia, durante o doutorado. O país nórdico tem 180 mil lagos e um problema sério com o alcoolismo. Luchiari voltou de lá estimulada a estudar o efeito do álcool em peixes. Foi fazer um pós-doutorado com Robert Gerlai, um geneticista húngaro que estuda o alcoolismo em paulistinhas na Universidade de Toronto, no Canadá, e de volta ao Brasil montou seu grupo na UFRN, em Natal.
A equipe conta hoje com dezenove integrantes e este ano já publicou quatro artigos em revistas especializadas. Um deles, assinado por Luchiari e duas alunas de doutorado, confirmou que o álcool afeta diferentemente o comportamento dos paulistinhas mais tímidos e dos mais desinibidos.[1]
A bióloga está testando nos peixes o efeito do DMT, sigla do princípio ativo da ayahuasca, a bebida alucinógena derivada de um cipó amazônico que é consumida em rituais religiosos. Sua hipótese é que o composto pode ajudar a combater o alcoolismo, especialmente entre os indivíduos mais tímidos. Mas Luchiari alertou que qualquer resultado promissor teria que ser confirmado antes em animais mais próximos do Homo sapiens, como ratos e primatas. “Não vamos chegar a um tratamento saltando do peixe para o ser humano.”
Fora do laboratório, os peixes bêbados de Luchiari estimulam o público a refletir sobre sua relação com o álcool. Os pesquisadores vão regularmente a escolas, praças e parques de Natal para falar sobre seus estudos. Nesses encontros eles propõem que as pessoas identifiquem sua personalidade com a dos peixes e pensem sobre o risco de fazerem uso abusivo da bebida. “Tentamos mostrar que existem tendências para o alcoolismo que estão relacionadas com a personalidade de cada um e que todo mundo tem que tomar cuidado”, afirmou. “Álcool é uma droga muito perigosa.”
As pesquisas também abastecem o grupo com um arsenal inesgotável de piadas internas para quando eles bebem juntos. “Onde é que o cardume vai se reunir hoje?”, costuma ser a convocação para a festa, que às vezes acontece na casa de Luchiari. Nesses encontros, não faltam advertências para que os mais inibidos não se excedam com a bebida. “É claro que as comparações com o comportamento dos peixes vão aparecendo”, disse.
Em meio à pandemia, o cardume não tem podido se encontrar e tem que se contentar com as reuniões remotas quinzenais. Os experimentos foram paralisados em março, quando a UFRN interrompeu suas atividades (Luchiari e os alunos se revezaram para alimentar os peixes dia sim, dia não). O laboratório voltou a funcionar no fim de agosto. Alguns paulistinhas talvez estejam aliviados.
[1] Em 2017, a pesquisadora teve um projeto financiado pelo Instituto Serrapilheira, criado pelo editor fundador da piauí.