“Uma garota que vê um cara sem camisa não pensa necessariamente: ‘Uau! Quero te lamber todinho!’ Já para os homens, o corpo feminino é erótico em qualquer circunstância” FOTO: ROBERTA VAZ
Bela, engajada e do laiá-laiá
No Carnaval, com seios nus
Armando Antenore | Edição 127, Abril 2017
Enquanto se observava no espelho pela última vez antes de ganhar a rua, Andréia de Matos Rocha ainda sentia certa apreensão, mas já não tinha dúvidas: iria, sim, correr o risco de se misturar à multidão. Era sábado de Carnaval. Faltavam vinte minutos para o meio-dia e um mar de foliões se espalhava por toda a cidade, em blocos ora gigantescos, ora paroquiais. Mignon, de pele clara e traços marcantes – os olhos castanhos e reluzentes, as sobrancelhas grossas, a boca sinuosa, o pescoço comprido –, a cientista social de 27 anos, que trabalha como pesquisadora de imagens e tendências comportamentais numa agência publicitária, gosta de metamorfoses. Vira e mexe, muda radicalmente o corte dos cabelos negros. Houve uma época em que os deixou à beira da cintura. Depois, os encurtou e alterou de tantos modos que, às vezes, parecia uma índia e, outras, uma egípcia ou uma melindrosa. Naquele sábado, exibia a cabeça raspada, à maneira da atriz Natalie Portman no filme V de Vingança. Usava botas de cano curto, um short cor de vinho, bastante apertado, e uma camiseta branca com o rosto estilizado da drag queen Ivana Wonder. Também portava dois piercings no nariz e vistosos brincos triangulares de acrílico. O batom preto e os longos cílios postiços lhe acentuavam a personalidade do rosto, salpicado de glitter.
O visual carnavalesco se distinguia muito pouco do look que a jovem costuma ostentar em baladas noturnas. Apenas um detalhe tornava o conjunto inusual: sob a camiseta, sustentados pela parte superior de um biquíni, seus pequenos seios reluziam. O mesmo glitter dourado que lambuzava o rosto lhe cobria os mamilos. É que a moça pretendia desfilar nos blocos de São Paulo com os peitos nus. Se tudo corresse como planejara, sacaria a t-shirt e o biquíni em pleno asfalto e se juntaria à massa de corpos suados. Queria viver uma experiência semelhante à dos homens que se divertiam sem camisa.
Quando saiu do apartamento que divide com uma amiga, lembrou mais uma vez que nunca fizera topless na praia ou num clube. Já protagonizara ensaios fotográficos em que mostrava os seios, mas as imagens resultavam invariavelmente de sessões privadas. Expor-se nas ruas e avenidas, sem a proteção de seguranças ou cordões de isolamento, seria bem diferente. Mesmo sob o peso de tais reflexões, não recuou. Sozinha, caminhou até a estação Fradique Coutinho do metrô, no bairro de Pinheiros, e embarcou rumo à Praça da República, no Centro.
“Lobisomem! Lobisomem!” Os gritos dos meninos ainda reverberam em Andréia Rocha, menos como um trauma e mais como um norte. Ela morava com os pais, o irmão e a irmã no Portal da Vila Prudente, condomínio paulistano de classe média. Caçula da família, herdou dos antepassados portugueses o excesso de pelos e uma cabeleira tão farta quanto repleta de caracóis. O legado em nada a incomodava até a chacota dos moleques. Uma menina cabeludíssima, com braços e pernas cobertos por uma penugem escura? Cruz-credo! Lembrava um homem. Pior: um lobisomem! O coro impiedoso a perseguiu durante meses e só findou depois que a garota seguiu o conselho da irmã: “Chute o saco dos babacas! Se gritarem bobagens, acerte um deles nos ‘países baixos’ e saia correndo.”
O episódio poderia ter se diluído entre as infindáveis crueldades que a infância nos obriga a sofrer e praticar, mas virou um marco por duas razões. “Foi meu primeiro contato íntimo com o sexo oposto”, ironizou a jovem uma semana após o Carnaval, na sala de seu espaçoso apartamento. Foi também quando ela começou a tomar consciência do abismo que separa os gêneros. Claro que, antes, já havia percebido o óbvio: garotos e garotas não habitam propriamente o mesmo planeta. No entanto, até aquele momento, as discrepâncias só lhe despertavam curiosidade. Não a rebaixavam nem engrandeciam os meninos. O bullying no condomínio fez a balança pender para um dos lados. Revelou que, em determinadas situações, diferenças são sinônimo de desvantagens. Ou melhor: que, publicamente, o corpo das mulheres amarga mais limites que o masculino. “Meu irmão tinha pelos nos braços e nas pernas, mas ninguém o xingava de lobisomem.”
À zombaria da molecada somou-se, logo em seguida, a rejeição insinuada pela mídia. “Caiu a ficha de que, como meus vizinhos, as revistas femininas e a publicidade não toleravam cabelos abundantes e enrolados.” A menina iniciou, então, uma batalha contra os cachos. Xampus, cremes, tesouras, escovas, secadores e chapinha entraram em ação e, à custa de muita insistência, lograram domar a juba. Cada vez menos elásticos, os fios rebeldes acabaram se tornando lisos e pouco volumosos. Mantê-los assim demandava uma disciplina espartana. “Minhas aulas na escola começavam às sete e meia da manhã. Eu acordava bem mais cedo, às cinco e cinquenta, só para arrumar os cabelos.”
No princípio da adolescência, desgostosa com as olheiras (será que a tachariam de urso panda?), a garota descobriu a maquiagem. Passar base, sombra e afins se transformou em obrigação. “Fiquei dependente de máscaras, sabe? Não conseguia sair de casa sem esconder as imperfeições do rosto, por menores que fossem.” Espichada no sofá, interrompeu as recordações e, após um breve silêncio, emendou: “Não conseguia e não consigo. Até hoje preciso de maquiagem para enfrentar o mundo.”
Naquela noite de quinta-feira, enquanto conversávamos, a jovem usava rímel, corretivo e batom vermelho, além de esmalte cinza-azulado nas unhas das mãos. “Quando raspei o cabelo, me senti totalmente liberta. Pensei: ‘Acho que botei um fim naquela preocupação toda com alisamento e cortes.’ Da maquiagem, porém, continuo escrava.” E da depilação, idem. Mal despontam, os pelos são prontamente eliminados. “Vê? Apesar dos meus esforços, sigo mordendo a isca das revistas e dos publicitários. Já desconstruí um bocado de coisas na tal da feminilidade hegemônica, mas… It’s a long way.”
Abdicar dos padrões significa, em última instância, abrir mão da vaidade? “De jeito nenhum! Significa encontrar em mim outro tipo de vaidade, menos subserviente às convenções. Por que só as mulheres devem parecer angelicais? Por que precisamos sempre exalar aroma de flor? O que há de errado com o nosso cheiro natural? Por que os pelos de nossas axilas causam tanto nojo?”
A cabeça raspada confere ares francamente masculinos à jovem. No entanto, não lhe obscurece os atributos que, em geral, classificamos como femininos. Com 1,60 metro de altura e 44 quilos, a moça tem movimentos graciosos, voz fina e um sorriso frequente, que lhe adoça as frases e não raro deságua numa gargalhada curta. “Se me julgo bonita? Sim, mas sei que uma porção de gente me considera apenas estranha.”
A ambiguidade, apesar dos pesares, lhe cai muito bem – e não se manifesta somente em termos estéticos. No convívio social, a jovem mostra-se extrovertida. Papeia com todo mundo, brinca e gesticula sem rédeas. “Faço a política da boa vizinhança.” Em contrapartida, é capaz de ensimesmar-se prazerosamente. “Aprecio o silêncio e a solidão.” Quando discorre sobre assuntos que lhe interessam, emprega jargões característicos dos “fefeleches” – aqueles que estudam ou estudaram na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, a FFLCH: objetificação, heteronormatividade, cisgênero, lugar de fala, statement. Por outro lado, tempera o discurso quase professoral e bastante veloz com expressões adolescentes, como “de boa” e o inescapável “tipo”: “Eu as conheci tipo há uns cinco anos” ou “Nunca participei tipo de nenhum grupo que…” Cosmopolita, menciona artistas e intelectuais de diversos países ao longo das conversas, mas não abandona o sotaque do interior paulista. Embora originária da capital, emula dos pais, nascidos em Andradina, o erre puxado: “vendedorrr”, “irrrmã”, “elevadorrr”, “verrrdade”.
As ambiguidades da moça invadem igualmente a seara afetiva. “Sou bissexual. Quer dizer: talvez seja pansexual. Entende?” Mais ou menos… “Normalmente, saio com meninas e meninos. Só que não descarto a possibilidade de sair também com transexuais. Nunca rolou. Se um dia rolar, vou me definir como pansexual, ainda que não ligue para rótulos. Entendeu agora?”
No sábado de Carnaval, assim que chegou à Praça da República, Andréia Rocha se encontrou com um amigo. Os dois andaram rumo à esquina mais famosa da cidade: a das avenidas Ipiranga e São João, celebradas por Caetano Veloso em Sampa. Era ali que se concentrava o bloco Tarado Ni Você, fundado justamente para homenagear o compositor baiano. Àquela altura, milhares de pessoas já se aglomeravam ao redor dos músicos, que percorreriam o centro histórico. Com o amigo, a jovem procurou outros dez conhecidos. Pretendia ficar perto deles todo o tempo. Formado por duas moças e oito rapazes, a maioria gays, o grupo poderia intervir caso a flagrasse em perigo quando estivesse com os seios à mostra.
Ela tomou ainda uma segunda precaução: não ingeriu nenhuma gota de álcool antes de se aventurar pelas ruas. Fã de cerveja, vinho e gim-tônica, iria se manter abstêmia o dia inteiro. Receava que a bebida a tornasse mais vulnerável às eventuais ameaças.
Até onde seu olhar alcançava, não havia ninguém de topless no bloco. Várias foliãs, porém, levantavam as mesmas bandeiras que a mobilizavam. Aguerridas, inscreveram no próprio corpo palavras de ordem contra o assédio. “Não é não!”, avisava uma das tatuagens provisórias. “Deixa ela em paz”, exigia outra. “Não sou obrigada”, proclamava uma terceira. Afirmações idênticas ou similares pipocavam pelo resto do Brasil, no rosto, pernas, braços, costas e barriga de incontáveis carnavalescas.
“Tiro agora? Será?”, perguntou a jovem para o amigo. O bloco mal saíra da concentração, e o calor já se fazia insuportável. “Tire!”, atiçou o garoto. Sentindo-se à vontade, ela se livrou da camiseta, soltou a parte superior do biquíni e finalmente libertou os seios. “Amigaaaa! Sua louca!”, festejou o rapaz.
Era branco, de cetim e com borboletinhas cor-de-rosa. A irmã de Andréia Rocha o usou primeiro, na adolescência. Depois o passou para a caçula: “Mais tarde, você poderá usar também.” Mas a menina não aguentou. Tinha 6 anos quando pôs o sutiã. Ficou largo, mal-ajambrado. Mesmo assim, a pequena adotou a lingerie extemporânea por um período, debaixo de umas blusinhas muito infantis.
O jogo inverteu completamente tão logo a garota viu os seios desabrocharem. “Chegou a hora. Use o sutiã”, recomendou a irmã. A caçula se negou. Rejeitou não apenas o de borboletinhas como qualquer outro. “Usar por quê? Meus peitos são minúsculos.” A irmã insistiu: “Porque seus mamilos aparecem toda vez que você bota uma camisa mais transparente.” A caçula se manteve irredutível: “Só por isso? Que ridículo!” Tempos depois, acabou cedendo. Precisava que a irmã, hábil no manejo da chapinha, lhe alisasse os cabelos. “Combinado. Mas, em troca, você terá de usar sutiã.”
Hoje, a jovem continua arredia à lingerie. “Reconheço que certas mulheres necessitam dela. Quando os peitos são grandes, o sutiã faz diferença. Evita que pesem ou balancem excessivamente. Agora, no meu caso… Qual a funcionalidade da peça para a galera de seios menores? Sutiã incomoda, aperta, esquenta. Por que me sujeitar às desvantagens daquele negócio se não vou desfrutar de nenhum benefício? ‘Ah, é indecente deixar entrever os mamilos sob a roupa…’ É mesmo? Qual o problema de exibir uma região do corpo tão característica do feminino? Eu só visto sutiã quando quero. Jamais por imposição.”
A moça acredita que, se parassem para refletir sobre o gesto condicionado de “amarrar os seios”, diversas mulheres abdicariam dele. “É como aquela história de dormir nua. ‘Não pode, não! Ponha pelo menos a calcinha’, dizia minha mãe. Nunca entendi o motivo. Higiene? Compostura? Minha mãe não conseguia explicar.”
A jovem tampouco consegue explicar por que fixou um piercing no mamilo direito. Não seria igualmente uma convenção, ainda que restrita à tribo dos alternativos? “Xiii… Não faço ideia. Botei por impulso.”
“Uma, duas, três…” Andréia Rocha perdeu as contas de quantas tatuagens possui. Precisa conferir. “Treze!” Para ela, corpo e arte se confundem. Durante dezesseis anos, dedicou-se intensamente às aulas de balé clássico. Também praticou sapateado, jazz, flamenco e butô, embora com menos regularidade. “Por causa da dança, enxergo os membros inferiores e superiores, o torso e a cabeça como matérias-primas, massas que devem ser moldadas e exibidas.” Não à toa, já se despiu para dez fotógrafos, alguns profissionais, outros diletantes. Os ensaios, muito bonitos, circularam pelas redes sociais. A ousadia lhe rendeu advertências e bloqueios por parte do Facebook e do Instagram, que proíbem a divulgação de nudez.
A primeira tatuagem da jovem reproduz uma frase de Isadora Duncan: Danser sa vie [Dançar a vida]. A revolucionária bailarina californiana, que morou na França, a registrou em sua autobiografia: “Desde o início, nada mais fiz do que dançar a vida. Criança, dançava a alegria espontânea dos seres em crescimento. Adolescente, dancei com uma felicidade que se transformava em apreensão diante das correntes obscuras e trágicas que começava a vislumbrar no meu caminho.” Andréia Rocha gravou a expressão acima do cotovelo. “Está à minha direita. Tenho uma regrinha para as tatuagens. As do lado direito remetem sempre à arte.” Encontram-se ali desenhos ou pinturas de Egon Schiele, Gustav Klimt e Hans Bellmer, além da inscrição “R. Mutt”, um dos pseudônimos de Marcel Duchamp.
Já o lado esquerdo abriga imagens de teor mais filosófico. “São as coisas em que acredito.” O braço, por exemplo, traz as consoantes “grl pwr”, de girl power, e doze flores de cerejeira. “Os japoneses cultivam uma tradição que me comove bastante. Eles se reúnem anualmente para observar o florescimento da cerejeira. A árvore produz flores lindíssimas, que duram apenas uma ou duas semanas. Então, convém olhá-las com o máximo de atenção, porque logo vão desaparecer. Gosto do ensinamento que deriva desse ritual: ‘Apreciar a beleza do efêmero.’”
Passava um pouco das 16 horas quando a jovem e seu grupo resolveram deixar o Tarado Ni Você e se dirigiram para outro bloco, o MinhoQueens, também no Centro. Depois, ainda engrossariam o Batekoo. Desde que se livrara da camiseta, a moça só cobrira os seios uma vez, numa lanchonete. A aventura estava saindo melhor que a encomenda. Ninguém tentara agarrá-la ou agredi-la nem a xingara. Houve quem lhe dissesse umas baixarias (“Delícia, vou te chupar todinha!”), lhe virasse a cara ou a tomasse por maluca (“Pirou, menina?”). Houve, ainda, uma garota que quebrou o pau com o namorado (“Pare de secar aqueles peitos!”) e o afastou da “periguete”.
Majoritariamente, porém, as reações se mostraram positivas. Homens e mulheres elogiaram a valentia da foliã: “Maravilhosa!”, “Empoderada!”, “Da hora!”, “Arrasou!” Alguns, mal a avistavam, berravam lemas feministas, como “Free the nipple” [Liberte o mamilo]. Uma turma de rapazes a abordou e, “veja bem, com o maior respeito”, pediu para tirar fotos perto dela. Mesmo os policiais militares que patrulhavam os blocos não a importunaram. Embora inexista no país uma lei específica que desautorize o topless em público, o artigo 233 do Código Penal possibilita enquadrá-lo como ato obsceno. Tudo depende de quem interpreta a legislação. A pena prevista soa um tanto despropositada: multa ou três meses a um ano de detenção.
“Livre, leve e solta.” Era assim, com um simpático clichê, que a jovem respondia quando lhe indagavam como estava se sentindo. Temores à parte, vivenciava uma espécie de epifania. Tinha absoluta consciência de que se encontrava num momento de exceção. Em breve, o experimento terminaria. Mas, enquanto durava, revelava-se belo, igualzinho à flor da cerejeira.
Nascida no Twitter, a campanha #MeuAmigoSecreto se disseminou pela web em novembro de 2015. Sob os ventos do neofeminismo, milhares de brasileiras lançaram mão da hashtag para denunciar atos que consideravam machistas, mesmo se partiam de homens à primeira vista tolerantes: “#MeuAmigoSecreto acha que, em briga de marido e mulher, não se mete a colher” ou “#MeuAmigoSecreto pensa que cantadas são elogios e não assédios.” Andréia Rocha aderiu à mobilização e se identificou com os depoimentos de outras internautas. Cerca de trinta delas, inclusive a jovem, decidiram formar um grupo para estudar questões de gênero. “A gente não só debate o assunto via Facebook ou WhatsApp como participa de marchas e promove reuniões presenciais.”
Foi na Universidade de São Paulo, onde ingressou em 2007, que a moça conheceu as teorias feministas. Pôde, assim, compreender melhor o inconformismo difuso que a acompanhava desde cedo, quando se via diante de determinados padrões comportamentais. Justamente por estar próxima desse tipo de discussão, ela sabe que nem todas as correntes do feminismo apoiam integralmente a atitude que tomou no Carnaval.
Exibir os seios para reivindicar – e, de certa maneira, concretizar – a igualdade entre os sexos é uma tática que ativistas utilizam há pelo menos cinco décadas. Quem a desaprova avalia que a estratégia acaba incentivando aquilo que procura combater: a hipererotização do corpo feminino e o voyeurismo masculino. Não por acaso, várias negras recusam a prática. Alegam que o patriarcalismo as encara prioritariamente como objetos sexuais, mucamas fogosas à disposição do sinhô libidinoso. Ao se despirem nas ruas, mesmo sob o fervor da militância, reiterariam o papel que a escravidão lhes reservou.
“De fato, em relação às negras, a premissa faz todo sentido. Acontece que sou branca. E às brancas o patriarcalismo impõe o recato, principalmente fora ‘do lar’. Minha nudez pública tem o potencial de contrariar as regras do jogo.” Para a jovem, o machismo destinou às brancas um lugar paradoxal: o da pudica que, quando o homem deseja, se torna lasciva (“Dama na sala e puta no quarto”, reza o ditado). Atualmente, o paradoxo até tolera – ou mesmo estimula – alguma libertinagem da sinhá fora do âmbito doméstico, desde que em sintonia com as veleidades do macho. “Durante o Carnaval, agi como um ator político, não como um bibelô que tira a roupa na esperança de aguçar a fantasia dos homens.”
Ironicamente, a moça que compra briga em público encontra dificuldades para enfrentar a família. Seus pais – um representante comercial no setor de autopeças e uma dona de casa – desconhecem os posicionamentos da filha. “Não lhes contei que sou bissexual, que desfilei com os seios nus ou que apareci naqueles ensaios fotográficos. Vão descobrir lendo a piauí.” Ela própria lhes mostrará a revista. “Faz tempo que preciso ter uma conversa com os dois. Preciso, não. Eu quero…” E por que ainda não teve? “Boa pergunta. Não sei… Meus pais são conservadores, mas respeitosos, compreensivos, bacanas. Não reagem com violência às mudanças. Gostaria de lhes falar o que penso sobre o corpo, os gêneros, o feminismo. Só que até agora…”
Depois de pular no Batekoo, Andréia Rocha seguiu para o Vale do Anhangabaú, onde a prefeitura instalara um palco em que a funkeira MC Carol e outros músicos se apresentariam. Eram oito da noite. A jovem estava sem camiseta havia mais de sete horas. Enquanto assistia aos shows, notou que dois sujeitos não tiravam os olhos dela. “Esquisitos, né?”, comentou uma das foliãs que a acompanhavam. “Já escureceu. Melhor você se vestir.” Receosa, a moça concordou.
“Percebe a gravidade do que aconteceu?”, indagou em seu apartamento. “Uma experiência maravilhosa, libertária, interrompida por causa do medo. O mesmo medo que nós, mulheres, sentimos diariamente quando andamos pelas ruas. O fantasma da violência sexual nos assombra o tempo inteiro, às vezes com estardalhaço, às vezes de modo sutil. Sob a ótica do machismo, nossos corpos são eróticos em qualquer circunstância – no ônibus, no escritório, no supermercado. Se saio de jeans e casaco, me assediam. Se uso bermuda, também. E se mostro os seios, idem! As besteiras que ouvi nos blocos não diferem das que escuto na feira ou na padaria. Uma garota que vê o tórax nu de um cara não pensa necessariamente: ‘Uau! Quero te lamber todinho!’ O erotismo, para nós, depende de um contexto. Para vocês, não. Por quê? Culpa da biologia? Me poupem! Vocês ainda têm de aprender muita coisa.”
Ela parecia realmente indignada. Talvez preferisse que uma repórter, e não um homem, a entrevistasse. “Confesso que, quando você me procurou, hesitei: ‘Ih, um jornalista… O sujeito vai cair de paraquedas. Não está na pele de uma mulher para entender perfeitamente o que lhe direi. Vai deturpar tudo.’ Mas, o.k. Sou positiva. Resolvi apostar. Espero não me dar mal…”
Editor da piauí, é autor de Júlia e Coió, Rita Distraída e Sorri, Lia! (Edições SM)