Bello fez do voar sua razão de desaparecer FOTO: CAMPBELL LAIRD_GETTY IMAGES
Bello e sua borboleta colorida
Quase um século depois de desaparecer no céu, o mistério do piloto continua a atiçar a imaginação dos chilenos
Graça Ramos | Edição 9, Junho 2007
O tenente Alejandro Bello Silva sumiu entre o céu, a terra e o mar no início de 1914. A tarde era de nuvens espessas, ventos turbulentos e bruma hostil quando o militar subiu às nuvens de Santiago do Chile, a bordo de um avião decorado com o número 13.
Nascido em 1890, ele era formado pela escola de aviação Mourmelon Le Grand, em Reims, na França, berço dos precursores da aeronáutica mundial. Bello fazia provas para obter o diploma de piloto militar, e deveria cumprir o trecho Aeródromo/Lo Espejo/Culitrin/Cartagena/Aeródromo. O seu aeroplano era do modelo Sánchez Besa, depois batizado pelo premiado poeta chileno Armando Uribe como Borboleta Colorida, por parecer ser feito de papel.
Naquele 9 de março, o próprio Bello já havia pilotado outro modelo de avião, um Bleriot, pela manhã, em companhia de um tenente e dois sargentos. Às 16h45 ele e seu camarada Ponce resolveram enfrentar outra vez o cinza chumbo do céu chileno. Ponce desistiu pouco depois. No caminho de volta, de dentro de seu biplano, ainda acenou para o colega, que perseverava na rota a bordo de sua Borboleta. Estima-se que o tenente Bello tenha voado 100 km. Então, sumiu. Evaporou. Jamais foi encontrada qualquer migalha de pista ou rastro, dele ou do avião. Deixou a vida para entrar no léxico.
No Chile, a expressão popular que simboliza o “misteriosamente perdido”, seja em equívocos mentais ou em termos espaciais e físicos, é más perdido que el Teniente Bello. Ela define o estado de confusão, perturbação ou perda da qual se apropriaram do artista plástico Ivan Godoy e o videoasta Yanko Rosenmann para criar um amplo projeto chamado Bitácora perdida del teniente Alejandro Bello Silva. Na América espanhola, a palavra “bitácora”, originalmente uma espécie de armário próximo ao timão de um barco, onde se guardavam objetos como a bússola, é sinônimo de diários ou de blogs.
Godoy e Rosenmann passaram quatro anos pesquisando a trajetória do tenente, que encarna o que seus compatriotas chamam de chilenismo, isto é, um modo de estar/ser chileno. Em março passado, no aniversário de 92 anos de desaparecimento do piloto, a dupla de artistas finalmente apresentou as diversas facetas do projeto no Museu Nacional de Belas Artes, em Santiago. “Bello e Pinochet dividem as duas faces de uma moeda: um fez do voar sua razão de desaparecer; o outro, do desaparecer, sua razão de governar”, resume Godoy, referindo-se ao rastro de políticos assassinados pela ditadura militar de Augusto Pinochet.
Nascido em uma linhagem de intelectuais e professores, entre eles seu bisavô Andrés Bello, humanista e fundador da Universidade do Chile, o tenente é homenageado por grande parte da intelectualidade chilena, os doravante chamados “belloamigos”. Exemplo dessa admiração é o livro O mito do tenente Bello, documento mítico e histórico sobre o começo da aviação chilena, com prefácio de Michelle Bachelet, a presidente chilena. Ela vê no aviador um valente, que ousou ir além do que aconselhava a prudência, e saúda o refrão popular que mantém viva a sua recordação. Além dela, participam do livro 25 intelectuais e acadêmicos.
Quando o megaprojeto foi lançado, o diário La Nación saudou o evento como o início de uma reconciliação de intelectuais e artistas com as forças armadas chilenas. Os militares haviam emprestado um avião Pillan para as filmagens do documentário Alejandro Bello de tus ojos, que também faz parte do projeto Bitácora, cuja primeira ação foi uma exposição multimídia sobre o tenente, no Museu Nacional de Belas Artes. A participação se deu apesar da exposição se referir, diretamente, à ditadura dos militares: ela mostra, além de objetos que Bello levou consigo (bússola, martelo, chaves inglesas, alicate, bombas para óleo, etc.), retratos de 93 desaparecidos, entre políticos e cidadãos anônimos, que saíram de casa e sumiram sem deixar rastros, como o piloto.
O sumiço de Bello suscitou nos últimos 93 anos infinitas histórias. Houve uma mulher que jurou ter encontrado o tenente com os chifres do diabo. Outra camponesa descreveu a visão de um pássaro enorme e raro que fazia bolhas no céu. Jornais de 1924, uma década depois da desaparição, ainda davam conta de um jovem pastor que declarava ter visto o acidente na infância. Um apresentador de televisão, que apreciava condecorar com ovos personagens que se portavam mal publicamente, consultou uma médium para escrever O tenente Bello e outras perdas. Um encontro de ufólogos, nos anos 1980, garantiu que Bello foi abduzido por extraterrenos. Nada muito estranho para um país que ocupa a quinta posição entre os povos que mais avistaram objetos voadores não-identificados (os campeões da modalidade são Estados Unidos, Peru, Brasil e Rússia).
Em janeiro do ano passado, Bello virou tema de um jogo na internet que indagava o que a pessoa faria se encontrasse o tenente. “O que é particularmente agradável do Belloludismo é ele não ter regras visíveis”, escreveu o belga Ghislain Robyn, doutor em matemática — e responsável por especulações delirantes envolvendo o aviador. Robyn discute gnóstica, neoplatonismo, pós-modernismo, cita o poeta Paul Celan, e recorda o quadro do pintor flamenco Pieter Brueghel Paisagem com a queda de Ícaro para concluir que “os ausentes somos nós; sempre soubemos: estamos mais perdidos que o tenente Bello”.
Diz a crônica biográfica que o único a observar o último momento do piloto teria sido Vicente Huidobro, um dos grandes poetas do Chile (ao lado dos prêmios Nobel Pablo Neruda e Gabriela Mistral). Ele estava em sua casa, em Cartagena, e teria testemunhado o momento da queda, mas morreu levando para a tumba o segredo de como foi o acidente. O Canto III de seu poema Altazor ou A Viagem em Pára-quedas diz apenas: “Céu é aquela larga/cabeleira intacta/Tecida entre mãos de aeronauta/E o avião traz uma linguagem/diferente/Para a boca dos céus de sempre”.
Para muitos dos que especulam sobre o destino de Bello (e há entre eles historiadores, psicanalistas, matemáticos, físicos e cineastas), o tenente foi um homem que apostou na inovação e na aventura, um dos primeiros a acreditar na modernidade do Chile e na velocidade da aviação, à maneira de outro compatriota – Cecil Grace, primeiro aviador do mundo a desaparecer no ar, ao tentar cruzar o Canal da Mancha, em 1910.
O tenente Bello nascido de uma linhagem de intelectuais e professores, jamais ganhou uma estátua, homenagem comum na paisagem urbana chilena. Agora, o esquecimento será reparado, também como parte do projeto Bitácora, e assumirá a forma de uma mão em bronze, de três metros de altura e dois de largura, que sustentará, entre os dedos índice e polegar, um avião de acrílico transparente de três metros por um metro e meio.
Outra das inúmeras “bellaações” desenvolvidas pela dupla de artistas foi a proposta da criação do Bellodia: o Dia da Aventura no Chile, feriado nacional que seria celebrado no dia 9 de março. O projeto foi encaminhado ao Poder Legislativo e à Presidência da República e ainda não foi discutido.
“Bello vive na linguagem, sobreviveu nas palavras, resgatá-lo é resgatar a paixão por voar, que não é outra senão a paixão por se perder”, afirma o poeta Raul Zurita. “Ele é uma dimensão de todos nós, é uma parte de nossos próprios extravios e é também uma forma de fazer de nossos próprios extravios um espaço domesticável em que se pode conviver com eles”, explica Zurita, para lançar a hipótese de que o tenente antecipa o futuro: “Todos desapareceremos em um espaço ignoto e não seremos recuperados”.
Em Perdido, onde?, o historiador Alfredo Jocelyn-Holt Letelier, autor de uma respeitada História Geral do Chile, discute o papel das utopias na América do Sul, e relembra Antoine de Saint-Exupéry. O piloto francês não quis usar o avião como instrumento de morte, e só aceitou trabalhar com os aliados, na Segunda Guerra, na qualidade de piloto de missões de reconhecimento fotográfico aéreo. Foi Saint-Éxupery quem estendeu as rotas aéro-postais até o fim do mundo – no caso, até o território chileno de Estreito de Magalhães. Depois de fazer paralelos entre o autor de O Pequeno Príncipe e Bello, o historiador destrincha a mitologia de que esse último foi lançado fora de órbita e segue cavalgando sua nave.
Talvez a construção mais lírica para o sumiço do cultuado aviador esteja no conto O botão do piloto, da escritora Alejandra Costamagna. Seu texto comenta que restam poucas fotos dele, mas em todas estampa um olhar de pássaro “traspapelado“, palavra que designa um estado de confusão, de sumiço em meio a papeladas, de presença em local equivocado. Nessa obra ficcional, a mãe de Bello sustenta que o filho, seu “voladito” (volador, na linguagem coloquial, é quem fuma maconha) programou o próprio desaparecimento, enquanto o resto do mundo acredita que o tenente se perdeu no triângulo da loucura – foi em busca de algo inatingível. Ao longe, já desaparecido, Bello observa o seu país e lamenta: “Ali não se compreende nem a loucura”.