ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
Besouros teutônicos
Mais de mil insetos são doados ao acervo do Museu Nacional
Emily Almeida | Edição 185, Fevereiro 2022
Na noite de 2 de setembro de 2018, um incêndio destruiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro. No dia seguinte, pouca coisa restava de um dos prédios históricos de maior importância do país – antiga residência da família real – e de um dos principais acervos científicos da América do Sul. O fogo havia consumido 85% dos cerca de 20 milhões de itens do museu, entre eles múmias trazidas por dom Pedro II do Egito, objetos de arte e artefatos africanos, indígenas e greco-romanos, coleções de paleontologia, entomologia e botânica.
Enquanto as chamas ardiam com violência, cinzas espalharam-se pela região da Quinta da Boa Vista, onde fica o museu. Alguns detritos voaram até uma distância inesperada. Um deles foi parar, misteriosamente, na varanda de um apartamento localizado na Praça Saenz Peña, no bairro da Tijuca, a doze minutos de carro do local do incêndio. Era uma pequena placa carbonizada com besouros.
Logo que tomou conhecimento do paradeiro da placa, a pesquisadora Marcela Laura Monné Freire, professora do Museu Nacional – que é vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) –, entrou em contato com a moradora do apartamento para recuperar o material. “Aquilo era tudo que restara fisicamente da coleção de besouros que estava no museu”, ela conta. Monné Freire é filha do pesquisador uruguaio Miguel Monné, um dos principais responsáveis pela coleção de entomologia, que abrigava 12 milhões de insetos e foi quase toda destruída – perdeu 98% dos itens.
Por esse motivo, os entomólogos do museu comemoraram em dezembro passado a chegada de quatro caixas vindas da Alemanha. Dentro delas havia 1 548 besouros doados pelo Instituto Alemão de Entomologia Senckenberg (SDEI), em Müncheberg. “Os exemplares poderão ser utilizados em estudos científicos de alunos do museu e de pesquisadores de outras instituições nacionais ou estrangeiras”, disse Monné Freire.
Os besouros atravessaram o Atlântico trazidos pela entomóloga Marianna Vieira dos Passos Simões, curadora da coleção de coleópteros da entidade alemã. Foram escolhidos a partir de uma lista feita por profissionais do Museu Nacional, que indicaram quais os grupos mais relevantes para a entidade. Após a seleção, os insetos preservados a seco foram alfinetados nas quatro caixas, com etiquetas de identificação e fundo apropriado para o transporte de material entomológico – e despachados para o Brasil. “Foi uma curadoria demorada e laboriosa, mas extremamente gratificante”, diz Simões, que foi aluna do Museu Nacional.
Alguns exemplares são de espécies que correm risco de extinção, como o Rosalia alpina, um bichinho cuja suntuosa coloração azul, pontuada por manchas pretas, se estende em todo seu corpo delgado até as longas antenas. Outros são considerados pragas na fauna europeia, como o Scolytus scolytus, de austera e brilhante carapaça marrom-avermelhada, vetor de doenças causadas por fungos que podem devastar árvores.
Existem aproximadamente 400 mil espécies identificadas de coleópteros, o que faz deles o maior e mais diverso grupo do reino animal. Suas funções na natureza são muitas, como polinizar as plantas, participar da reciclagem dos nutrientes e atuar no controle de pragas. “Os besouros são intimamente relacionados aos seres humanos e fundamentalmente importantes para a nossa sociedade”, diz Monné Freire.
A coleção de besouros não foi a primeira doação feita pela Alemanha ao Museu Nacional. No dia seguinte ao incêndio, o país anunciou uma ajuda de 1 milhão de euros (cerca de 6,2 milhões de reais). Boa parte do dinheiro foi usada de maneira emergencial pela equipe de resgate dos objetos sobreviventes, que precisava comprar luvas, escovas, máscaras faciais e caixas plásticas para a coleta entre os escombros. A Alemanha também está contribuindo com a preparação de um esqueleto de baleia que fará parte do acervo do museu (antes disso, será exposto na Cidade das Artes, na Barra da Tijuca).
“Sabemos como é doloroso perder bens culturais únicos”, disse Johannes Bloos, cônsul-geral adjunto da Alemanha no Brasil, à piauí. O seu país passou, há alguns anos, por desastres parecidos ao do Museu Nacional. Em 2004, um incêndio na Biblioteca Duquesa Anna Amalia, em Weimar, destruiu 37 pinturas e cerca de 50 mil livros do século XVI ao XX. Em 2009, desabou o prédio do Arquivo Histórico da Cidade de Colônia, que continha milhares de mapas históricos, além de documentos antigos e papéis de Karl Marx e Friedrich Engels.
Profissionais que trabalharam na recuperação do acervo em Colônia estiveram no Rio de Janeiro para ajudar no resgate dos objetos entre os destroços do Museu Nacional. Rio e Colônia estão ligadas por uma parceria: são cidades-irmãs desde 2011, e o acordo prevê trabalho conjunto em algumas áreas, como meio ambiente e planejamento urbano.
O paleontólogo Alexander Kellner, diretor do Museu Nacional, ressalta que os alemães são parceiros antigos da instituição e se mostraram bastante solidários na época do incêndio. “Naquele momento complicado, fomos acolhidos tanto pela Unesco quanto pela Alemanha, que hoje é nossa maior parceira”, diz Kellner. “Recompor as coleções ainda é o maior desafio que todos nós temos. Sem elas não vamos ter o Museu Nacional de volta.”
Em setembro do ano passado, foi lançada a campanha Recompõe, com o objetivo de incentivar as doações. O Museu Universal Joanneum, localizado em Graz, na Áustria, doou 197 peças de seu acervo, entre elas ferramentas, armas, cerâmicas e adornos de populações do Alto Xingu, na Amazônia. O cantor Nando Reis entregou ao museu uma grande coleção de caramujos reunida por seu pai e por ele. O embaixador e escritor gaúcho Fernando Cacciatore de Garcia doou 27 objetos da Grécia antiga e do Império Romano, e o imunologista Wilson Savino, 229 peças de arte africana.
A reinauguração do Museu Nacional deve ocorrer em setembro próximo, quatro anos depois do incêndio. A previsão é de que somente a área externa receba visitantes, pois as obras do interior do prédio continuam até 2026. Quando tudo ficar pronto, os besouros vindos da Alemanha, mais do que um novo atrativo do museu, serão pequenos emblemas da sua ressurreição.