Bestiário biotecnológico
Ao contrário dos porcos fluorescentes, as galinhas transgênicas vieram para ficar
Marcos Sá Corrêa | Edição 5, Fevereiro 2007
A última palavra da engenharia genética quase chegou ao Brasil em janeiro. Vinha da Escócia, com a notícia sobre os ovos anticancerígenos criados no Roslin, um centro de pesquisa que, há quinze anos, choca em seus laboratórios a fabricação de remédios contra melanoma, artrite e esclerose múltipla produzidos por galinhas transgênicas. As aves, segundo os cientistas, demonstraram vocação para funcionar como “biofábricas” – no caso, biofábricas das duas patentes farmacêuticas que integram a albumina primordial da clara de seus ovos. Inscritas em seu genoma, as patentes passaram a se multiplicar naturalmente, em ritmo de granja. As galinhas do Roslin, fazendo o que as galinhas comuns sempre fizeram, viraram poedeiras de medicamentos.
Daqui para frente, as galinhas poderão ser testadas como multiplicadoras até de vacinas contra a gripe aviária, porque tornam simples o que a indústria farmacêutica, por enquanto, só consegue obter pelo método complicado, sintetizando em tanques de fermentação remédios à base de proteína. Dispensando os biorreatores, a produção dos medicamentos tende a ficar pelo menos cinco vezes mais barata. “Ao pé da letra, a principal matéria-prima dos remédios passa a ser a ração de frango”, resumiu o diretor do Roslin, Harry Griffin.
A geneticista Helen Sang, outra integrante do centro escocês, se disse “encorajada” pela produtividade de suas galinhas. Afirmou também que os ovos haviam apresentado níveis “utilizáveis” dos agentes terapêuticos inoculados no DNA das aves. E que separar esses agentes da clara era bem mais fácil do que gerá-los artificialmente. “Depois que você obtém a matriz transgênica”, ela concluiu, como se a preliminar fosse irrelevante, “o resto é muito simples. Dá para enxertar centenas de galinhas com um só galo. E com centenas de galinhas pondo praticamente um ovo por dia, você tem centenas de pintos da noite para o dia”.
Helen Sang comanda no Roslin o Projeto Aviário Transgênico, um consórcio internacional de alta tecnologia que, desde o começo dos anos 90, aposta na galinha o futuro do mercado farmacêutico. É um animal de vida breve, um trunfo na mesa das manipulações genéticas, pois significa ciclos reprodutivos acelerados e curta distância entre gerações. Se trabalhasse com papagaios, bois ou outros bichos mais longevos, a doutora Sang dificilmente teria tido tamanhas novidades para anunciar no mês passado.
Quem colheu ainda fresca a notícia no texto acadêmico, como a geneticista Mayana Katz, diretora do Centro do Genoma Humano da Universidade de São Paulo, saiu convencido de que havia ali um avanço notável, mas não propriamente revolução. Botar ovos com remédios pode ser um grande passo para uma galinha. Mas a pesquisa ainda tem de caminhar cinco ou dez anos antes que a humanidade colha seus frutos numa prateleira de farmácia, como avisaram os cientistas do Roslin. (Nos jornais brasileiros, a história pareceu mais bombástica, talvez por disputar o noticiário do verão com assuntos imutáveis como a disputa pela presidência da Câmara e a reforma ministerial).
Não se tratava da descoberta de uma droga miraculosa contra o câncer. O remédio que as galinhas replicaram em Edimburgo já existe. Pertence à Viragen, uma empresa americana que é parceira do Roslin no projeto. Ela tem a patente da omniferona, contra a hepatite C, que se alastra como pandemia. Só para o mercado do interferon contra esclerose múltipla, a Viragen prevê que estejam em jogo vendas da ordem de 2,5 bilhões de dólares.
As galinhas escocesas estão metidas numa prova de fundo. No fim da década de 90, a americana GeneWorks, de Michigan, proclamou que suas aves geneticamente modificadas estavam prontas para produzir hormônios do crescimento. Na mesma época, o Roslin pôs na rinha da biotecnologia sua primeira galinha transgênica, Britney, preparada “para produzir ovos com proteínas capazes de combater o câncer”. Britney foi notícia seis anos atrás. Mas não passava de uma curiosidade científica. Faltava enfrentar um desafio: “fazer com que as próximas gerações de galinhas apresentem a capacidade de pôr ovos com substâncias que funcionem contra tumores malignos”, dizia Helen Sang em dezembro de 2000.
Elas acabam de passar no teste. As mudanças atravessaram cinco gerações. Há outros pioneiros das experiências com galinhas, como a Origen Therapeutics. Mas nenhum supera o Roslin em visibilidade, desde que ali veio à luz o primeiro mamífero clonado do mundo. Tirada de uma célula de uma ovelha Finn Dorset, Dolly viveu seis anos. Quando foi sacrificada, em 2003, ao contrair uma infecção pulmonar, o instituto já tinha outros prodígios para mostrar. Eram os porcos e galinhas que luziam no escuro, por conta dos genes de água-viva luminescente enxertados em seu código genético.
Sob luz solar, eles pareciam bichos comuns, a não ser pelo tom esverdeado da pele, sob as penas ou os pêlos. Mas, debaixo de lâmpadas especiais, tornavam-se fluorescentes. Nas galinhas, luziam as cabeças e as patas. Nos porcos, as orelhas, o focinho e os testículos. Para quê? “A proteína verde fluorescente significa que podemos ver instantaneamente se o animal tem ou não o gene da água-viva”, esclareceram os cientistas. Os bichos dispensavam exames e biópsias. Eram amostras da engenharia genética reconhecíveis a olho nu. Tiveram sucesso episódico. Mas serviram para atestar quem era quem nesse ramo.
O Roslin conta atualmente 500 galinhas transgênicas. Está na linha de frente de um bestiário biotecnológico povoado por cabras que dão leite com ATryn, um poderoso anticoagulante, e moléculas extraídas das teias de aranha, para um dia temperar ligas inquebráveis. Há coelhos na França que carregam proteínas humanas no organismo. São formas de vida animal que a humanidade, depois de 12 mil anos domesticando bichos e plantas, só podia imaginar em monstros mitológicos. Isso até 35 anos atrás, quando o bioquímico Paulo Berg cruzou o DNA de um vírus com o de uma bactéria.
A primeira insulina composta de proteínas recombinantes saiu dos laboratórios da Genetch, em 1983. O primeiro tomate geneticamente modificado foi lançado pela Calgene, em 1994. A primeira safra de soja transgênica foi colhida no Rio Grande do Sul, em 2001, com sementes da Monsanto contrabandeadas da Argentina. Esse é um mundo em que as coisas têm pressa.
Mas a última palavra da engenharia genética está tardando a entrar no Brasil. Essa palavra é pharming, um híbrido gerado pela mistura de morfemas recombinantes – metade farming, que em inglês significa “produzir no campo”, metade pharmaceutical, que seria ainda mais parecido com o “farmacêutico” da língua portuguesa se as reformas ortográficas do século XX não tivessem suprimido esse “ph” indispensável ao primeiro neologismo universal do século XXI. Pharming é intraduzível. Por isso mesmo, nasceu universal. Melhor do que qualquer outra palavra, diz o que vem por aí. Já circula livremente nos jornais franceses. Batizou na Holanda uma empresa de alta tecnologia. Como “motel”, vai pegar aqui.
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