CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2024
Beyoncé back in Bahia
Os três minutos mais longos da vida de um intérprete
Kikita Soares Bahiana | Edição 209, Fevereiro 2024
Em 20 de dezembro de 2023, choveu o esperado para todo o mês em Salvador. Iansã tinha decidido encerrar a folga de Bruno Sipho, na Ilha de Maria Guarda, em Madre de Deus, na Região Metropolitana da capital baiana. Depois de ter trabalhado como intérprete inglês-português no Congresso Brasileiro de Urologia, no final de novembro, tudo que ele queria era sossego. Mas o temporal atrapalhou a estadia na ilha e, no dia seguinte, assim que começou a estiar, Sipho e sua mulher, Suiane Mbali, entraram num barco e voltaram para o continente.
Eles tinham acabado de desembarcar quando o celular de Sipho tocou. Era um funcionário da produtora baiana IDW, que buscava com urgência um intérprete negro. A BeyGood, instituição filantrópica da cantora Beyoncé, havia decidido, de última hora, realizar um evento em Salvador e precisava de um profissional para traduzir o que a americana Ivy McGregor, diretora da entidade, falaria ao público soteropolitano. “É coisa boba, no máximo vinte minutos”, disseram a Sipho.
O intérprete de 42 anos foi correndo para o Centro de Convenções, na Boca do Rio, onde acontecia o Club Renaissance, um evento para os fãs da cantora de Single ladies comemorarem o lançamento no Brasil de Renaissance: a film by Beyoncé.
Ao chegar lá, no fim da tarde, Sipho encontrou um clima bem diferente de outros eventos do gênero em que havia trabalhado: muito cochicho, olhares oblíquos e poucas instruções objetivas. Ele resolveu espiar nas redes sociais se havia pistas do que estava acontecendo. Foi parar em uma plataforma de rastreamento de voos, na qual milhares de fãs acompanhavam o trajeto de um Bombardier Global 7500, o maior jato executivo do mundo, que partira de Nova York e se aproximava do Brasil.
Sipho assinou um termo de confidencialidade e foi encaminhado para o baú de um caminhão que estava estacionado atrás do palco. As mensagens de texto piscavam em seu celular. Um Bombardier havia realmente pousado no Aeroporto Internacional de Salvador e uma equipe de batedores da Guarda Municipal fora vista escoltando um carro preto blindado, em direção à orla. Ninguém da organização dizia nada a respeito.
O intérprete foi instalado em uma cabine na qual havia uma televisão, fones de ouvido, um microfone e um computador. O que quer que fosse dito em inglês no palco do evento deveria ser repetido por ele em português. Um gerador de closed caption transformaria a fala em legendas que seriam exibidas para toda a plateia – que, àquela altura, já estava aos gritos: Beyoncé havia postado no Instagram uma foto em que o cavalo prateado que figura na capa do disco Renaissance parecia desembarcar de um avião.
Quando cursava letras na Universidade Federal da Bahia, em 2005, Sipho viu um anúncio sucinto na edição dominical do jornal A Tarde: “Precisamos de alguém que fale inglês.” Como preenchia com eficiência o único pré-requisito da vaga – havia aprendido a língua de Shakespeare e Beyoncé em uma unidade do CCAA no bairro de Itapuã –, ligou para o número informado e marcou a entrevista de emprego.
O processo seletivo incluiu uma dinâmica de grupo em que Sipho era o único negro. Todos os outros candidatos diziam ter aprendido inglês em viagens de intercâmbio ou em temporadas fora do país. “Então dei um supermigué”, conta ele. “Falei que tinha morado fora, na primeira cidade que me veio à mente e que eu achei que ninguém ia conhecer: St. Petersburg.” Deu certo. Poucos dias depois, ele já trabalhava como intérprete da delegação americana de vôlei de praia, que participava de uma competição na Bahia. Depois disso, Sipho não parou mais.
Além de atuar em congressos de medicina, engenharia e outras áreas especializadas, ele trabalhou no Panorama Percussivo Mundial, evento musical que acontece todos os anos em Salvador. Também foi intérprete das aulas que Mestre King (1943-2018), pioneiro no ensino da dança afro na Bahia, ministrou para estudantes estrangeiros, e ajudou alguns figurões a se fazerem entender no Brasil: a ex-secretária de Estado americana Condoleezza Rice, o ator e ativista Danny Glover, e Carl Ray, maquiador de Michelle Obama.
“A profissão de intérprete vem de uma cultura elitista pra caralho. Só fazia quem tinha dinheiro ou havia morado fora, companheiras e companheiros de diplomatas que tinham aquilo como hobby”, diz Sipho. Embora ele não queira ser conhecido como um intérprete de nicho, não dá para negar que seu nome sempre é sugerido quando o contratante quer um profissional negro. Aliás, ao pedirem indicação de outros intérpretes racializados, Sipho sempre tem dificuldade em encontrar nomes para recomendar. Motivo pelo qual montou, em 2023, junto à Universidade Estadual da Bahia, o curso Democratização do ofício de intérprete: formação profissional de jovens negros como mecanismo para combater as iniquidades sociais. Ao longo de dois meses, conseguiu capacitar doze pessoas.
Sipho só se deu conta de que Beyoncé estava em Salvador e realmente falaria aos fãs baianos quando McGregor, a diretora da BeyGood – cujas falas ele estava traduzindo –, escapou do discurso institucional e começou a esquentar o público: “Se vocês querem ver alguém essa noite, vocês têm que pedir. Quem vocês querem ver?” Em torno de Sipho, os outros profissionais que ocupavam a cabine fotografavam os telões, embasbacados. Só ele se concentrava na tarefa. “Respira, respira”, disse a si mesmo. “Agora todo mundo pode ficar louco, ensandecido, menos você.”
Beyoncé permaneceu apenas três minutos no palco, falando para os 3 mil fãs que tiveram a chance de estar lá – e outros milhares que acompanharam as lives feitas por aqueles sortudos. “Não há ninguém como vocês. A primeira e única Bahia” – essa foi a frase traduzida por Sipho que mais repercutiu entre baianos e brasileiros, incrédulos com a aparição cintilante da maior estrela atual da música negra nos Estados Unidos. O intérprete não teve nenhum contato direto com a diva.
Não foi a primeira vez que Beyoncé esteve na Bahia: ela já se apresentou em Salvador em 2010 e passou férias em Trancoso, no Sul do estado, em 2013. Sipho, por sua vez, nunca pisou nos Estados Unidos. Nem mesmo em St. Petersburg, cidade da Flórida que mencionou na mentirinha durante a entrevista de emprego. No ano passado, ele fez sua primeira viagem para o exterior e preferiu viajar pela África Austral. Visitou a África do Sul, Essuatíni (a antiga Suazilândia), Moçambique, Zimbábue e Botsuana. “Muito melhor”, diz.