Oscar Pistorius e seu par de tesouras gigantes: snic, snic, snic, snic FOTOMONTAGEM_LUIZ DACOSTA. IMAGENS: DENIS FARRELL_AP_IMAGEPLUS/ UMA CORRIDA NA GRPEICA ANTIGA, ESCOLA FRANCESA DO SÉCULO XIX_BIBLIOTEQUE DES ATRS DECORATIFS, ARQUIVOS CHARMET_THE BRIDGEMAN ART LIBRARY
Blade Runner na pista
Corredor com pernas de carbono disputa classificação para Pequim
| Edição 21, Junho 2008
O jornalista americano Josh McHugh, da revista Wired, descreveu assim a sensação de correr numa pista sintética de atletismo com Oscar Pistorius: “Começo ouvindo algo na virada da curva. A 100 metros da linha de chegada, um misto de sibilo com chiado metálico – snic, snic, snic, snic – vai se aproximando de mim. Tenho a sensação de estar sendo perseguido, e depois ultrapassado, por um par de tesouras gigantes.”
Às nove horas da manhã de 18 de agosto próximo, este snic, snic talvez reverbere no mundo todo. É quando oito atletas olímpicos estarão disputando a primeira eliminatória dos 400 metros rasos na pista de atletismo do Estádio Nacional de Pequim. Serão sete pares de pernas biológicas e, se o seu dono conseguir o índice, um sinuoso e fascinante par de lâminas de fibra de carbono. Independentemente do resultado final, o dono das pernas mecânicas roubará a cena até mesmo da estrela mais imponente desses XXIX Jogos Olímpicos – o próprio estádio.
Por enquanto, as chances do sul-africano Oscar Pistorius são magras: restam-lhe menos de dois meses para obter o índice da prova, que é de 45s55, quase um interminável segundo a menos do que o seu melhor tempo até agora. O atleta biamputado também tem chances de chegar a Pequim como reserva da equipe de revezamento 4 x 400 – pela regra olímpica, os 16 países que obtiverem os melhores tempos qualificatórios até 20 de julho podem convocar dois atletas a mais para o seu revezamento. Nesse caso, mesmo sentado no banco de reservas, a mera presença do atleta biônico no panteão de corpos sadios será uma reviravolta e tanto.
Ela abre todo um leque de questões quase filosóficas. Qual a linha de demarcação entre um atleta deficiente e um sadio? O que evolui mais rápido: a tecnologia do esporte, aparentemente sem fronteiras, ou o desempenho humano, limitado pela biologia? Uma das regras da Associação Internacional das Federações de Atletismo, a IAAF, estabelece que o pé do atleta precisa estar em contato com o bloco de largada. “Mas qual a definição de pé, hoje?”, pergunta Leon Fleiser, o secretário-geral do comitê olímpico sul-africano. Como excluir a automutilação como forma de tentar levar vantagem nesses tempos em que competições esportivas têm desdobramentos milionários?
Foi no dia 16 de maio passado, em Lausanne, Suíça, que a Corte Arbitral do Esporte autorizou Pistorius a disputar uma olimpíada com suas próteses Cheetah Flex-Feet. Foi uma decisão polêmica e inesperada porque, quatro meses antes, a IAAF tinha se manifestado radicalmente contra o pleito do atleta.
Para justificar o veto, a IAAF se baseou no resultado de três dias de testes comparativos entre a passada de Pistorius e a de cinco atletas – testemunhas, não-deficientes. Os testes foram monitorados por uma equipe de dez cientistas, chefiada pelo professor Peter Brüggemann, da Universidade do Esporte de Colônia, na Alemanha, com recursos formidáveis – entre outros, doze câmeras de alta velocidade (250 imagens por segundo) com gravação em 3D. O teste visava estabelecer se as próteses do sul-africano, que foi recordista paraolímpico em Atenas, lhe proporcionavam uma vantagem técnica sobre adversários sadios, o que violaria a regra 144.2 da entidade.
A conclusão pareceu inequívoca e definitiva: com suas lâminas em fibra de carbono, Pistorius conseguia correr na mesma velocidade que os outros cinco, mas com um gasto energético 25% menor. Uma análise biomecânica de sua passada também revelou que a quantidade de energia devolvida pelas lâminas, ao tocarem o solo, era três vezes superior à da articulação de um tornozelo normal no momento de esforço máximo. “Isso significa que a prótese é capaz de substituir a cadeia cinética da perna humana e ser mais eficiente do ponto de vista mecânico”, registrou o parecer da entidade.
Pistorius não se deu por vencido e bateu à porta da Corte Arbitral, que tem a última palavra em questões de litígio esportivo. Seus advogados anexaram outra bateria de testes, realizados sob a batuta do professor americano Hugh M. Herr, do Massachusetts Institute of Technology, o MIT, e cujas conclusões são contrárias às da equipe alemã. Após dois dias de deliberações, os três juízes da Corte aceitaram, por unanimidade, os argumentos a favor de Pistorius e invalidaram o veto da IAAF. “Não consideramos suficiente a evidência de uma vantagem metabólica favorecendo o biamputado portador de próteses Cheetah Flex-Feet”, reza a decisão da Corte. Os juízes tampouco se convenceram da vantagem global de Pistorius numa prova. Embora ficasse provado que as lâminas flexíveis em forma de “J” tornam a passada mais eficiente do meio para o final da prova, elas também limitam o desempenho na largada e na fase de aceleração. Sabendo estar mexendo num vespeiro, a Corte Arbitral procurou acautelar-se contra a inevitável avalanche de casos futuros e esclareceu: “Nosso parecer não se aplica a nenhum outro atleta ou tipo de prótese.”
A natureza e circunstâncias da deficiência de Pistorius são, de fato, raras. Ele nasceu em Johanesburgo, 21 anos atrás, com pernas sem perônio – o osso externo que liga o joelho ao tornozelo – e com apenas dois dedos em cada pé. Estava condenado a uma vida numa cadeira de rodas, ou à amputação das duas pernas, abaixo do joelho, para abrir caminho à tecnologia das próteses. Seu pai, dono de uma mineradora de zinco, pediu a uma dúzia de cirurgiões ortopédicos uma lista tríplice de médicos a quem recorreriam se tivessem de amputar as pernas de seus próprios filhos. Entre dois americanos e um sul-africano, escolheu o patrício. Assim, um dia antes de completar um ano de idade, Oscar Pistorius foi operado. Seis meses mais tarde, ensaiava os primeiros passos num par de suportes de fibra de vidro.
As lâminas Cheetah usadas por ele hoje, que levam o exclusivo selo da Ossur, marca islandesa tida como a Ferrari da indústria de próteses, têm alguma semelhança com as patas traseiras de um gato. Foi a bordo delas que o velocista sul-africano ganhou seu apelido, Blade Runner. Cada par é feito sob medida e pode conter de 30 a 90 camadas de fibra de carbono, dependendo do peso e da constituição do usuário. Uma das vantagens atribuída à prótese está no fato de ela aumentar a altura – e portanto a passada – do corredor. Ao contrário do mecanismo de uma perna biológica, na qual o tornozelo faz as vezes de dobradiça, comprimindo-a ou alongando-a, uma Cheetah sempre mantém o portador no ângulo mais elevado de sua curva. É algo como correr permanentemente na ponta dos pés. Outra vantagem colateral, citada por muitos atletas não-deficientes, é que Pistorius jamais virá a estourar seu tornozelo, ter espasmos na panturrilha, fraturas nos pés ou desgaste nos joelhos.
Para a legião de partidários da causa ganha pelo sul-africano, contudo, não basta usar pernas sintéticas para ser um corredor de elite. É preciso talento, raça, determinação e o biótipo de atleta para chegar lá. Tudo isso Pistorius tem, ou adquiriu devido à sua deficiência congênita. E é impossível, é claro, saber se ele também seria um aspirante olímpico se tivesse nascido com as pernas intactas.
Coube ao professor de fisioterapia Robert Gailey, da Universidade de Miami, que há anos faz estudos sobre amputados, lançar uma pergunta inquietante: é a desigualdade competitiva que está em questão ou o receio de macular a pureza idealizada de uma Olimpíada? “Se um atleta de corpo imperfeito vence, como fica a imagem do homem?” Snic, snic, snic.
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