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Bom-dia, meu nome é Sheila
Como trabalhar em telemarketing e ganhar um vale-coxinha
Vanessa Barbara | Edição 1, Outubro 2006
Fagner vendia planos de saúde pela lista telefônica. Boné na cabeça, mascando chiclete, ele abria a letra A e começava a discar. “Bom-dia, meu nome é Fagner, com quem eu falo, por gentileza?” Às vezes preferia trabalhar com prefixos. Butantã é 3735 e Mandaqui é 6979. Começava discando o 0001, 0002, 0003. Ou tentava qualquer combinação a esmo. Fagner vendeu dezenas de planos usando a Lista de Assinantes Residenciais de São Paulo, capital, e distribuindo panfletos com seu nome e telefone. O trabalho se estendia das nove da manhã às seis da tarde, sem direito a valetransporte ou salário fixo. Depois de três meses, pediu demissão. Há poucas semanas, estava sentado na sala de aula de um prédio na rua Sete de Abril, no Centro de São Paulo, e juntava bombons ao lado de seu boné.
“Bom-dia, meus guerreiros!”, ataca o professor Isaac Martins. Ele não admite alunos sonolentos. “Para ser grande profissionalmente, você precisa estar na tomada. Toda vez que eu disser ‘todo mundo ligado’, é pra bater uma palma e dizer: Hai! Como os samurais”. A turma inteira responde: Hai! É o primeiro dia do curso Operação de Telemarketing. Pela participação, Fagner já ganhou quatro bombons. “Vou sair daqui e vender”, diz. “Pelo telefone”, completa um colega.
O primeiro exercício de um curso de telemarketing é praticar o bom-dia. Há pelo menos quatro tipos de bom-dia: o tradicional, o belicoso, o sorridente e o de quem ganhou na loteria. Operadores de SAC – Serviço de Atendimento ao Cliente – costumam adotar uma saudação mais sóbria, a fim de evitar um bom-dia belicoso do outro lado da linha. Já os operadores de vendas devem usar a versão sorridente do cumprimento. Para esses, o entusiasmo é obrigatório em todas as etapas da abordagem, embora alguns especialistas argumentem que o sorriso exigido do profissional é, na verdade, um sorriso interior, e não físico. “Manter as comissuras labiais eternamente esticadas, em forma de sorriso, com certeza seria de grande prejuízo para o teleoperador e para a emissão da palavra”, sustenta a fonoaudióloga Eudosia Acuña Quinteiro, autora de O poder da voz e da fala no telemarketing. Segundo ela, a necessidade de sorrir no telefone é uma importação equivocada de teorias de telemarketing dos Estados Unidos, país onde o smile (cheese!) e o yes são muito diferentes do nosso “sim”. A articulação da palavra no Brasil corresponde a uma forma ligeiramente “bicuda” de falar, fruto da influência francesa. “É só pensar na atriz Marieta Severo”, recomenda a fonoaudióloga. “Ela não tem um baita bico? E você não perde nada do que ela diz, tamanha a articulação das palavras.”
Ignorando as advertências de Eudosia Quinteiro, que prevê danos irreparáveis nas comissuras labiais, os cursos de preparação para teleoperadores ensinam a potencializar o tom de voz conversante e a manter a entonação de quem está empolgado. “Escolha o bom humor e não o mau humor”, ensina a professora Tamires Siqueira, assistente do mestre Isaac Martins, dirigindo-se a uma platéia de dezoito alunos. Fagner é o primeiro a bater palmas e o único a se oferecer como voluntário para fazer uma simulação de venda de canetas. Também tira o boné prontamente e se livra do chiclete assim que o professor lhe chama a atenção.
Fagner, cujo sobrenome é Queiroz Rocha, tem 21 anos. Ele fez cursos de datilógrafo e padeiro antes de se inscrever nas aulas de telemarketing. “Tenho que ganhar dinheiro”, explica. Foi feirante, frentista, forneiro, garçom e recepcionista. Conhece o ambiente profissional dos frigoríficos, já fechou caixa, trabalhou em padaria e efetuou, como diz, “auxílio e apoio a força de vendas”. Tradução: panfletagem em cruzamentos. Sua mais recente experiência no mundo do trabalho foi como lavador de carros num centro automotivo, onde conseguiu ser promovido a frentista depois de três dias de trabalho. Fagner, que pretende terminar o supletivo em meados do próximo ano, inscreveu-se no curso do professor Isaac Martins porque sentia dificuldade em vender pelo telefone. Realista, também sabe que a escola indica alunos para empresas.
Fagner está numa situação parecida com a de Gabriela, de 21 anos. Ela passou três meses no telemarketing de uma escola de informática, oferecendo prêmios e descontos ilusórios. “Eu ligava e dizia: ‘Parabéns, você foi sorteado para ganhar um curso de informática’, e precisava inventar quem é que promovia o concurso”, conta. “Aí a pessoa respondia: ‘Mas eu não escuto essa rádio’, e eu ficava sem ter o que dizer.” É uma situação semelhante à de Roseli, de 23 anos, que chora até em inauguração de supermercado e se inscreveu no curso por iniciativa de um amigo. Ou de Elizabeth, de 28, que é balconista de uma cafeteria e tem como objetivo de vida fazer faculdade. Ou de Aretuza, 29 anos, ex-técnica de raio-x, e Daniele, de 22, que compartilham o mesmo sonho (e até a mesma frase para resumi-lo): “Progredir junto com a empresa”.
Com 630 mil operadores empregados, o telemarketing é o setor da economia que mais contrata hoje no Brasil. Ele surge como a única saída para Daniele, Elizabeth, Fagner e Gabriela, jovens com pouca formação escolar cujos filhos provavelmente “já vão nascer devendo”, nas palavras de um deles. Segundo um relatório do Global Call Center Industry Project 2005, pesquisa internacional que no Brasil ficou a cargo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Associação Brasileira de Telesserviços, 74% dos atendentes brasileiros cursaram o ensino médio e 4% têm apenas o ensino fundamental. Do total de teleoperadores, 76% são mulheres.
No curso da rua Sete de Abril, além de gritar Hai! para ganhar bombons, os alunos passam por dinâmicas de grupo. Levam a mão à cabeça e ao joelho, acompanhando determinada seqüência de números para aprender a reagir de forma instantânea. Fazem um círculo, recebem uma palma do colega da esquerda e a repassam para o da direita sem hesitar, o que supostamente mimetiza o trabalho em equipe. Os alunos ouvem também histórias motivacionais. Como a do cavalo que caiu em um poço–mas não se deixou enterrar–, que termina com a seguinte lição: “Muitos jogam sobre você a terra da incompreensão; levante e cresça com as dificuldades”. Durante o curso, eles são colocados à prova e pagam seus erros com polichinelos. “Quando você é novo, tem que pagar uns pauzinhos, trabalhar até de graça”, justifica o professor Martins. Segundo ele, o desempregado típico já chega meio corcunda no local da entrevista, carregando a pasta de papelão azul da época do prezinho com o currículo dentro. “Não basta ter conhecimento, experiência, você tem que ter sangue nos olhos”, garante. Como todos ali desejam ter sangue nos olhos e arrumar emprego, a saída é pagar R$90 por dezoito horas de aulas teóricas e práticas que lhes permitirão, no futuro, falar no telefone como se fossem uma fita cassete.
Durante os exercícios de simulação, os alunos escrevem scripts, ou roteiros de atendimento telefônico, para telemarketing “ativo” e “receptivo”. No ativo, a iniciativa das ligações sempre parte da empresa. Nessa modalidade, os alunos começam por telefonar para oferecer de tudo um pouco – produtos para emagrecer, fraldas descartáveis, bicicletas, apartamentos de luxo, latas de tinta, helicópteros, kit-festa com piscina de bolinha e pula-pula. Um aluno faz as vezes do cliente; o outro, do operador. Há também a opção de usar o script de vendas do livro SuperMotivado, de autoria do próprio professor Isaac Martins. Os alunos que fazem o papel de vendedor tentam seguir os preceitos básicos do telemarketing–nunca dizer “não”, trocar “gasto” por “investimento” e manter, durante toda a ligação, o tom formal de fita gravada–, enquanto os que desempenham o papel de cliente falam o que bem entendem:
Operador: Bom-dia, meu nome é Sheila, sou da Motivação Total, com quem eu falo, por gentileza?
Cliente: Faaaaala!
Operador: Qual é o seu nome, por gentileza?
Cliente: É Gabriela!
Operador: Senhora Gabriela, o motivo do meu contato é estar oferecendo uma maneira da senhora estar tendo motivação e aumento da sua auto-estima. [pausa] A senhora já deve ter notado que, diante das dificuldades do dia-a-dia, está cada vez mais difícil manter a sua auto-estima, não é mesmo? [pausa] Então, pensando nisso, estou ligando para um seleto número de pessoas para convidá-las a fazer parte do clube da Motivação Total! Não é excelente, senhora Gabriela?
Cliente: Não.
Operador [ignorando a reação e seguindo o script]: Para isso, a senhora receberá o livro SuperMotivado, com um CD duplo em áudio contendo dezenas de histórias motivacionais e frases que fazem com que a senhora extraia o máximo de si. O investimento será de apenas R$ 39, com boleto para o próximo dia 10. A senhora extraia o máximo de si. O investimento será de apenas R$ 39, com boleto para o próximo dia 10. A senhora poderia confirmar o seu endereço? É rua ou avenida?
Cliente: [desliga].
Nova tentativa:
Operador: Bom-dia, meu nome é Sheila, sou da Motivação Total, comquem eu falo, por gentileza?
Cliente: Marcelo.
Operador: Senhor Marcelo, o motivo do meu contato é oferecer uma maneira do senhor ter motivação e aumento da sua auto-estima. [pausa] O senhor já deve ter nota…
Cliente: [interrompendo]: Olha, eu não estou interessado.
Operador: Então, pensando nisso, estou ligando para um seleto número de pessoas para convidá-lo a fazer parte do clube da Motivação Total…
Cliente: Eu não quero!
Operador: Por apenas R$39,90 o senhor receberá o livro SuperMotivado, com um CD duplo em áudio, contendo dezenas de histórias mo…
Cliente [interrompendo]: Eu sei, mas não estou interessado mesmo. Tenha um bom-dia.
Operador: [largando o script e abrindo os braços]: Ahhh, senhor Marcelo. Ah, não, senhor Marcelo, não faz isso!
Cliente: Bom-dia.
Operador: Não, você tem que falar “alô”!
Cliente: Alô.
Operador: O motivo do meu contato é oferecer uma maneira da senhora ter motivação e aumento da sua auto-estima! Por apenas duas vezes de R$19,95 a senhora receberá em sua casa o livro SuperMotivado, com um CD duplo em áudio, contendo dezenas de histórias motivadoras que…
Cliente [interrompendo]: Não quero. A minha mãe faleceu.
Operador [com entonação penalizada]: Tudo bem. [pausa] E o que a senhora acha de dar o livro de presente para alguém? Para o seu pai, por exemplo?
Nos Estados Unidos e na Europa, existem organizações para repelir as ligações de telemarketing. Elas têm como armas perguntas bizarras e até as mesmas técnicas usadas pelos operadores. O EGBG (www.egbg.nl), um grupo de ativistas de Amsterdã, preparou um roteiro em que o cliente toma as rédeas da ligação e pede ao vendedor que soletre o próprio nome, que diga o quanto ganha por mês, se tem tempo de ir ao dentista, qual a sua pasta de dente favorita etc. O contra-roteiro termina com uma frase padronizada, na qual a vítima de telemarketing agradece as informações fornecidas e solicita o número do telefone do operador para o caso de precisar de dados adicionais. Tudo isso sem usar gerúndios.
Já no sítio www.sorrygottago.com, podem-se obter dezenas de sons que simulam pretextos para desligar, como interferências no telefone, barulhos de helicóptero, buzinas de carro, alarmes de incêndio, vacas que passam mugindo, crises de espirro, problemas com moscas e o som de uma carruagem estacionando. Há também um minuto inteiro de gravações com comentários como este: “Ahn-hã… sei…muito interessante. Como? Repete. Ah… Ahn-hã. Estou ouvindo”. Ou um arquivo de áudio que começa assim: “Você disse que trabalha em qual empresa mesmo? [pausa] Não, não acredito… Eu trabalhei lá também! Aquele maluco do Bill continua na área?”.
A Federal Trade Commission, organismo de defesa do consumidor dos Estados Unidos, instituiu um cadastro nacional para pessoas que não desejam receber ligações de telemarketing, o chamado Do Not Call Registry. Toda empresa que ligar para um número que conste da lista é multada. Só no primeiro dia de inscrições, em junho de 2003, 7 milhões de números telefônicos foram cadastrados. Hoje são 125 milhões.
Numa das maiores centrais de atendimento telefônico do Brasil, a operadora Flávia segue a lógica da fita cassete. Sentada na sua “posição de atendimento”, ou P.A. (também chamada de “cubículo” ou “cercadinho”), ela põe a mão na cabeça e começa a pensar em outras coisas logo que a Sra. Eunides atende do outro lado da linha. O tom de voz do teleoperador é sempre baixo, o ritmo de Flávia faz crer que ela está conversando sobre o assunto pela primeira vez: “Boa-tarde, senhora Eunides, meu nome é Flávia, tudo bem? O motivo do meu contato é para informar que, mediante a sua confirmação, encontra-se disponível na sua linha telefônica o superseguro premiado, com uma cobertura de até R$50 mil em dinheiro. A senhora é casada? Mora perto de uma casa lotérica?” Flávia não desiste nem quando a Sra. Eunides diz que não entendeu (“Mas eu fui premiada?”); repete todas as informações e acrescenta que “o primeiro mês é gratuito, e depois o investimento é de apenas R$0,53 ao dia, ou seja, R$ 15,90 por mês na sua conta telefônica. Podemos confirmar os seus dados?”.
Flávia faz de 150 a 180 ligações por dia, a média entre os operadores da seguradora para a qual trabalha. Logo que a Sra. Eunides desliga o telefone, contrariada, o computador já disca o próximo número. Flávia volta a colocar a mão na cabeça, respira fundo e recomeça. “Hoje está difícil”, diz, e emenda: “Boa-tarde, meu nome é Flávia, o motivo do meu contato é informar que…”. A meta da corretora é alcançar cem vendas mensais por funcionário. Os seguros são oferecidos para potenciais compradores de diversos estados. Na maioria das ligações, no início os interlocutores não entendem o que se passa. Em seguida, alguns acreditam que ganharam um prêmio. Às vezes, Flávia consegue chegar à frase em que pede a confirmação dos dados, para que o seguro possa ser efetivado “a partir da meia-noite de hoje”. A maioria das pessoas consegue interromper o procedimento antes que ele seja completado. “Até porque, depois que comprou, é muito difícil cancelar qualquer coisa”, diz Isaac Martins, o professor.
Nenhum dos cercadinhos tem isolamento acústico. Eles servem apenas para evitar que um operador fale com o outro. Quem entra na sala se depara com muito barulho, risadas e operadores em pé, com a mão erguida, esperando a chegada do supervisor. É impossível prestar atenção numa conversa só, ainda que todos os atendentes pareçam absortos no trabalho. Cada um tem um headset, o apetrecho formado por fone de ouvido e microfone, acoplado a um dispositivo de discagem com a tecla mute. Essa tecla, que emudece o áudio, é de enorme importância, sobretudo durante crises de tosse ou de riso, como costuma ocorrer quando o cliente diz que esqueceu “o longuinho” (o login) ou que a marca de seu aparelho celular é Pomarola (Motorola). As ligações são direcionadas para os operadores automaticamente, pelo sistema, que também exibe dados sobre o cliente na tela de cada um. Antes de começar a falar, a primeira providência de todo operador, sem exceção, é abrir o bloco de notas no computador, para registrar o nome do interlocutor e, em seguida, localizar informações nas telas.
Estefânia começou a trabalhar como operadora em 1989. Na época não se usava o headset. Eram maiores, assim, os riscos de desenvolver tendinite, lordose e outros problemas na coluna. Pelo menos em teoria. Com o passar dos anos, ficou claro que a popularização dos novos equipamentos de telefonia e informática não resultou na melhoria das condições de trabalho. “O operador passou a ser mais sacrificado”, diz Estefânia. Se antes a meta de um operador de telemarketing era atender cinqüenta ligações, agora a meta mínima é 150, às vezes quinhentas. Há um tempo médio de atendimento exigido, muitas vezes restrito a trinta segundos por chamada. Perde pontos o operador que gastar com o cliente mais tempo do que o estipulado pela empresa.
Antes o funcionário podia decorar sua P.A. com vasos de plantas, móbiles e fotos. Hoje não é permitido deixar nada no local, pois outros funcionários ocuparão o cercadinho em seguida. Como é comum que os objetos pessoais do operador fiquem amontoados do lado do computador, em pilhas prestes a desmoronar, há empresas em que é proibido levar garrafas d’água para a P.A. Também é proibido abrir as janelas da sala de operação, devido ao ar-condicionado polar. Muitas empresas ignoram os atestados médicos apresentados pelos funcionários. Foi o caso de Estefânia, que levou uma solicitação médica de pausa maior para o almoço. Não foi atendida. Se fosse feita a concessão, argumentou um funcionário graduado, os demais empregados também passariam a querer um intervalo de almoço superior a quinze minutos. Por conta disso, era comum Estefânia sair para o trabalho às seis da manhã e almoçar apenas às quatro da tarde, já em casa. Mesmo que a pausa fosse maior, ela não teria condições de comer em restaurante, pois, pela convenção coletiva da categoria, as empresas de telemarketing não são obrigadas a pagar tíquete-refeição aos empregados. Quando pagam, o valor médio é de R$3. Na multinacional onde Estefânia trabalha, os operadores costumam perguntar ao chefe, referindo-se ao tíquete, se já veio “o vale-coxinha”. Uma de suas colegas, grávida, chegou a receber orientação especial do ginecologista, cansado de lidar com as negativas da empresa e com as más condições de trabalho: “Amanhã você vai levar uma muda de roupa e vai fazer xixi na P.A.”. A moça fez exatamente o que o médico mandou. Só assim conseguiu mais pausas para ir ao banheiro.
O médico Airton Marinho da Silva, mestre em saúde pública pela Universidade Federal de Minas Gerais e ex-auditor fiscal do Trabalho, identificou vários tipos de problemas de saúde entre os que trabalham em teleatendimento. Eles estão ligados a patologias osteomusculares, a distúrbios mentais e a alterações do aparelho de fonação. “As empresas se apresentam como benfeitoras e formadoras de jovens, dizem que são uma solução contra o desemprego e que mantêm ambientes de trabalho saudáveis, mas o fato é que os trabalhadores manifestam uma série de queixas”, diz o médico. “O que ocorre é o adoecimento dessa mão-de-obra jovem, num trabalho sem características de formação e sem chance de crescimento profissional. As reclamações constantes de estresse, o alto absenteísmo, a alta rotatividade de funcionários e as dificuldades de gerenciamento são evidências do desgaste físico e psíquico dos operadores de telemarketing.”
Em sua tese, intitulada A regulamentação das condições de trabalho no setor de teleatendimento no Brasil, Marinho sustenta que a pressão temporal exercida sobre os operadores é o principal fator de sobrecargas emocionais e físicas. A insuficiência de pausas no trabalho e de intervalos entre as ligações vem agravar o quadro, ao qual se soma a imposição de scripts que restringem o diálogo do operador com os clientes. O monitoramento ostensivo, os baixos salários e as duras exigências de produtividade tornam a atividade potencialmente lesiva. Em São Paulo, o piso determinado pelo sindicato da categoria é de R$510. Diversas organizações sindicais do exterior denominam os centros de atendimento telefônico de “senzalas da era eletrônica”.
Faz meio século que cinco pesquisadores, liderados pelo psiquiatra francês Louis Le Guillant, identificaram a chamada “neurose das telefonistas”, uma sensação de lassidão profunda, de verdadeiro aniquilamento ao final da jornada de trabalho. Segundo Le Guillant, o problema afetaria pelo menos um terço das profissionais da área. Encerrado o dia, muitas delas se dizem com a “cabeça vazia”, não conseguem estabelecer conversações, não suportam que ninguém fale com elas. Queixam-se de uma queda significativa das faculdades intelectuais, têm alterações de memória e de atenção, dificuldade em conversar e não encontram argumentos nas discussões. À semelhança dos operadores de telemarketing, cerca de 20% das telefonistas estudadas por Le Guillant admitiram empregar, por engano, expressões profissionais no dia-a-dia. A mais comum é “Alô, aguarde um instante”, que escapa em diversas ocasiões–por exemplo, quando alguém lhe dirige a palavra repentinamente. Irritação, agressividade e nervosismo também são comuns a mais da metade das telefonistas pesquisadas. Para Le Guillant, o controle da produtividade, do comportamento e das pausas cria uma atmosfera que, se não chega a ser de medo, é de apreensão contínua. “Você nunca pode nada, não tem autonomia para resolver o problema”, concorda a operadora de telemarketing Estefânia de Andrade, cinqüenta anos depois.
Estefânia perdeu a voz em 27 de dezembro de 2003, às 10h45, quando falava no telefone com o Sr. Lauro. “Eu estava com o cliente na linha e a minha voz começou a sumir. Tossi um pouco e disse: ‘Acho que estou ficando rouca, seu Lauro, é resfriado, ou então estou muito nervosa com o senhor’.” Ela encerrou a conversa, indicou no computador que faria uma pausa e procurou o médico da empresa, que a encaminhou a um otorrino. Naquela mesma tarde, Estefânia descobriu que estava com laringite e obteve uma licença de duas semanas. “No dia seguinte, quando acordei, minha mãe perguntou as horas e eu não consegui dizer. Passei trinta dias sem poder falar nada. Eu andava com um bloquinho e uma caneta e escrevia, por exemplo, ‘5 pãezinhos’, e mostrava para o moço da padaria.” Desde então, Estefânia enfrenta uma disfonia funcional–provocada por uso excessivo da fala–que lhe tirou 75% do timbre vocal. “As pessoas não reconhecem a minha voz no telefone”, diz. “Quando alguém perde o timbre da voz, perde a identidade. Foi o meu caso.”
Estefânia ficou quatro meses afastada, até maio de 2004, recebendo auxílio-doença do Instituto Nacional do Seguro Social, o INSS. Quatro dias depois de retornar ao serviço, foi despedida. No “exame demissional” o médico contestou a dispensa, com o argumento de que, se ela começara a trabalhar com boa saúde, falando e ouvindo perfeitamente, deveria sair do emprego nas mesmas condições. Encaminhou Estefânia para o sindicato, que a orientou na abertura de uma ação trabalhista contra a empresa. Ela foi reincorporada ao quadro de funcionários. O processo continua na Justiça.
Se Estefânia de Andrade tivesse passado pelo curso de telemarketing, teria aprendido que, para evitar problemas com a voz, basta comer muitas fibras e mastigar maçã, fruta com “poder impermeabilizante na garganta”. Se tivesse lido o livro da fonoaudióloga Eudosia Quinteiro, teria ficado alerta contra a ingestão de chocolate, inimigo poderoso da mucosa orofaríngea. O vilão, segundo a autora, é o excesso de parafina usado na confecção da guloseima, que derrete e gruda na mucosa, comprometendo a ressonância natural da fala. Outros grandes inimigos da voz são as balas à base de menta: “Seus vapores gelados conseguem anestesiar as cordas vocais”, explica Eudosia. Nos últimos dois anos e meio, Estefânia se submeteu a videolaringoestroboscopias e gastou R$4 mil num tratamento fonoaudiológico que não surtiu efeito. “Eu pagava R$120 por sessão pra ficar na frente do espelho falando ‘aaaaa, eeee, iiiii, o rato roeu a roupa do rei de Roma’, mas a fonoaudióloga já tinha me dito que não ia adiantar.”
O professor Isaac Martins prefere recorrer a um método que batizou de “baleês” (a língua das baleias), em homenagem à personagem Dory, do desenho animado Procurando Nemo. No seu curso da Rua Sete de Abril os alunos repetem os principais exercícios para articulação em baleês, ou seja, bem devagar “Deeebaixxooo deee uuumaaa maaataaa seeecaaa haviiiaaa uuumaaa caaataaatreeepa com seeeete caaataaatreeepitoooos…”. A seleção de frases para treinamento é singular: “O prato de prata premiado é precioso e sem preço. Foi presente da princesa primogênita, irmã do procurador da Prússia”. Ou: “Sou um original que não se desoriginalizará senão quando os originais estiverem desoriginalizados”. Ou ainda: “Sófocles soluçante ciciou no Senado suaves censuras sobre a insensatez de seus filhos insensíveis”.
Quem repete as frases mais alto, naturalmente, é sempre Fagner. No último dia de curso, ele tinha feito amizade com todos os colegas. Também aprendera os fundamentos e macetes da profissão, como trocar o headset de hora em hora. “Desse jeito, em vez de ficar surdo de um ouvido só, você fica dos dois”, explica. Assim como Estefânia, Fagner está pronto para ser insultado pelas pessoas para as quais telefona. Pronto para perder parte da personalidade, ou da voz, ou da sanidade, em troca de um salário anual médio de R$10 mil e de um vale-coxinha de R$3.