Borboletas do mundo, uni-vos
Os lepidópteros ingleses perdem espaço no mundo natural, mas partem para vôos mais altos no mundo dos negócios
Marcos Sá Corrêa | Edição 32, Maio 2009
A notícia nos jornais avisando que as borboletas estão desaparecendo é, para os ingleses, sinal de primavera. Regular como a chegada da estação, a manchete costuma dar as caras em fins de abril, mas se antecipou ligeiramente no mês passado, avivada por dois verões excepcionalmente frios e chuvosos até para os padrões da meteorologia inglesa. Foi com estrondo que a reportagem do Guardian classificou 2009 como “o pior ano desde 1976” para as borboletas. O futuro de doze espécies está ameaçado.
Não é de hoje que os entomólogos andam de olho nessas baixas. No século XX, a Inglaterra perdeu quatro variedades de borboletas e, pelo menos, sessenta de mariposas. Agora entraram na fila da extinção “visitantes regulares” como a Polyommatus icarus, a Azul Comum. É uma borboleta pequena, com quatro centímetros de envergadura e asas semelhantes a miniaturas pálidas das Morpho iridescentes que, no Brasil, emprestavam seu fulgor metálico à indústria do suvenir tropical, como bandejas e cinzeiros para turistas.
Embora se chame Comum, a Azul inglesa está ficando rara. Já não cruza sem mais nem menos o caminho dos distraídos. E há manuais para ensinar os amadores a procurá-la na borda de prados floridos, de preferência ao entardecer, quando repousa “de cabeça para baixo” em hastes de capim seco e expõe o avesso acinzentado de suas asas fechadas ao último calor do sol.
Não se deve declará-la extinta, por enquanto. Seu sumiço é local. Tecnicamente, trata-se de uma “extirpação”, termo ao mesmo tempo bruto e provisório que, no fundo, acena com a promessa científica da ressurreição. Se o verão deste ano colaborar “com um belo sol e pancadas esparsas de chuva”, ela pode voltar, afirma Tom Brereton, chefe do programa de monitoramento de borboletas da Butterfly Conservation. Quando uma espécie escasseia na Inglaterra, Brereton está sempre entre os primeiros a saber por onde ela anda, entrincheirada em ilhas de vegetação agreste no meio de campos esverdeados a poder de inseticida. A Butterfly Conservation conta borboletas e mariposas há mais de quarenta anos. Mede sua vida em “vôos” – ou seja, em safras de lepidópteros com asas – fazendo o censo sistemático desses insetos na fase da vida em que eles saem da reclusão dos casulos para a badalação alada do acasalamento. As borboletas vêm ao mundo para chamar a atenção, mesmo quando são vistas de relance em pleno vôo e o sol tira faíscas estroboscópicas de suas escamas, como luz de palco em roupa de strass. Dependendo da espécie e dos azares da existência, têm poucos dias ou no máximo alguns meses das estações mais quentes para se eternizar como espécie.
Até os especialistas mais sisudos tratam de borboletas como se fossem adolescentes em baile de debutante. Não por acaso, a Lycaeides melissa samuelis, outra borboleta azul do hemisfério norte, foi descrita pela primeira vez pelo escritor russo Vladimir Nabokov, o mesmo de Lolita. E o resultado é que, assim como todo mundo nota sua presença, muita gente percebe sua falta. “As borboletas são insetos tão conspícuos e luminosamente coloridos que têm recebido uma atenção muito desproporcional à sua variedade”, diz o estudioso canadense Stephen A. Marshall. Na América do Norte, há mais de um pesquisador para cada espécie de lepidóptero, contra apenas um pesquisador para cada mil espécies de moscas. O que explica, segundo Marshall, por que as borboletas são maioria entre os insetos “nas listas de espécies em extinção”.
Uma prova de sua popularidade é o BBB – no caso, sigla internacional do movimento Bring Back the Butterflies, ou “Traga de Volta as Borboletas”, espalhado do Canadá à Austrália. E, na Inglaterra, a Butterfly Conservation, uma ONG fundada em 1968 que apresentou o primeiro inventário sobre o “alarmante declínio” das borboletas no país, tem hoje 13 mil sócios, 33 reservas naturais, 67 projetos de conservação, olheiros em 32 países e um orçamento anual que ultrapassa os 16 milhões de reais. Seu presidente executivo, Martin Warren, está entronizado oficialmente entre “os dez maiores ambientalistas ingleses”.
O forte dessa ONG é sua infantaria anônima de 1 200 voluntários que palmilham a Inglaterra, seguindo a pé o vôo errático das borboletas. Nessas quatro décadas de acompanhamento sistemático, eles caminharam o equivalente a uma viagem à Lua, de ida e volta.
Quando uma espécie parece invisível, eles espalham cartazes de “Procura-se”, como os velhos panfletos para capturar foragidos da Justiça. E, uma vez por ano, sempre nesta época, a Butterfly Conservation edita seus relatórios, solenemente intitulados “O estado da nação”, como os balanços de governo.
Agora a boa notícia no reino dos lepidópteros: em junho, abre-se ao público experimentalmente em St. Albans, a 30 quilômetros de Londres, o Butterfly World. É um parque temático, à la Disney, com doze jardins feitos sob medida por botânicos, com tudo o que borboletas inglesas plantariam se fossem consultadas sobre a melhor maneira de espalhar flores pelos canteiros.
Vistos do alto, os jardins têm a forma de uma borboleta de 11 hectares. Seu abdome está reservado a uma estufa com 17 metros de altura, cúpula translúcida e espaço suficiente para abrigar sete sítios arqueológicos do tamanho de Stonehenge, onde crescerá uma floresta úmida com cascatas, grutas, aranhas, escorpiões e beija-flores, além da réplica de uma ruína maia. Servirá de berçário a 250 espécies tropicais. Terá no mínimo 10 mil borboletas voando entre suas árvores em qualquer período do ano.
O Butterfly World britânico é uma empreitada de 100 milhões de reais. Um terço do investimento saiu do bolso de Clive Farrell, entomólogo amador e milionário profissional, que credita a uma borboleta a iluminação que o levou a enriquecer no mercado imobiliário. Pegou, instantaneamente, o gosto pelo hobby caro. E decidiu que ganharia bem para sustentá-lo. Menino, ele trouxe para sua casa em Hampshire uma caixa de fósforo na qual havia aprisionado uma lagarta. E viu a crisálida virar borboleta. Com a metamorfose do inseto começou a sua, e aos 63 anos ele tem em Dorset uma casa de campo onde borboleteiam espécies que não eram vistas na região há meio século – inclusive a Euphydryas aurinia, amarela e negra, de asas reticuladas como um vitral, dada por desaparecida no último relatório da Butterfly Conservation.
Farrell dirige seu próprio táxi em Londres, cria borboletas em Belize e coleciona gnomos de porcelana no quintal, mas não rasga dinheiro. Seu Butterfly World de St. Albans será, de saída, “o maior borboletário do mundo”. Chega com a chancela do ex-banqueiro Robert Michael Gascoyne-Cecil, sétimo marquês de Salisbury, associando ao investimento uma linhagem que trabalha pela preservação da realeza britânica desde o século XVIII. E, a partir de 2011, com sua floresta tropical definitivamente instalada numa bolha de verão permanente, a estufa cheia de refugiadas do mundo inteiro e as bilheterias vendendo – pelas expectativas de Farrell – 1 milhão de ingressos por ano, as borboletas inglesas estarão voando sobre as incertezas do mundo natural.
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