Mar del Plata, 1935: a historia dos compadritos era uma aposta do autor na prosa experimental FOTO: ÁLBUM DE FAMÍLIA DE ADOLFO BIOY CASARES
Borges na esquina rosada
Em seu primeiro conto, Jorge Luis Borges põe em cena o compadrito, tipo suburbano que vivia ao redor de Buenos Aires, e o retrata combinando a prosa culta com a linguagem popular, numa mescla estilística sui generis e complexa, que será decisiva para sua obra futura
Davi Arrigucci Jr. | Edição 67, Abril 2012
“Homem da esquina rosada” é a primeira narrativa ficcional de Jorge Luis Borges. Integra, desde 1935, a História Universal da Infâmia, mas apareceu pela primeira vez, em 1933, com o título de “Hombres en las orillas”,[1] sob o pseudônimo de Francisco Bustos.[2] Saiu no suplemento do diário Crítica, a Revista multicolor de los sábados, em que o autor exerceu uma produtiva atividade jornalística, escrevendo ensaios, resenhas, traduções e vários dos textos depois reunidos no livro de 1935. Esses textos, em sua maioria absoluta, são glosas irônico-paródicas de narrativas alheias a que Borges imprime o recorte preciso, de repentinas surpresas, com seu estilete pessoal; mas não é esse o caso de “Homem da esquina rosada”.
O conto derivou de uma crônica que o autor publicara primeiro na revista de vanguarda Martín Fierro, e depois em El Idioma de los Argentinos, de 1928, sob o título de “Hombres pelearon”.[3] Trazia as marcas criollas de um tempo de fervor nacionalista que o escritor procurou mais tarde apagar. Para o leitor de hoje, habituado à limpidez, à precisão, à elegância clássica de Borges, a linguagem de então pode parecer arrevesada pela retórica e pelo amaneiramento. Tratava de um tipo social, o compadrito, espécie de valentão suburbano que vivia ao redor de Buenos Aires; a periferia da cidade não se chamava ainda arrabalde ou subúrbio, mas simplesmente orilla.[4] Na verdade, ele era um avatar do gaúcho que exercera um papel decisivo nas lides agropastoris do interior da Argentina e nas lutas intestinas da formação da nação, aplebeado, como gostava de dizer o autor, na cidade que se modernizava, mas mostrava ainda reminiscências da vida do campo. Era como se a cidade continuasse evocando, de algum modo, por meio dessa figura simbólica, a desaforada llanura, ou seja, a planície sem termo, espaço do imaginário épico da formação nacional, durante o século XIX.
Naqueles anos rudes de 1890, a que se refere a crônica, escrita justamente na perspectiva de um recuo épico ao passado do país, o compadrito, milongueiro e briguento, costumava disputar o mando local na ponta da faca, e o texto relata o duelo entre dois deles naquelas ruas ainda de terra e sem luz, com casas e muros de taipa rosada: um que sai da margem sul da cidade para desafiar outro de renome, em Palermo, ao norte, onde o desafiante acaba por entregar a vida.
A narrativa posterior, no entanto, confere a essa tosca matéria, que lembra a dos faroestes, uma vida nova, além de mudanças no argumento. Antes de tudo, pela expressividade direta e dramática da narração em primeira pessoa, que coloca diante de nossos olhos cenas particulares de grande impacto visual, buscando o efeito plástico nas cores, nos contrastes de imagens e nos detalhes concretos que tendem a se fixar na memória do leitor. Borges nessa época está muito próximo de um artista inventivo como Xul Solar e de um pintor como o uruguaio Pedro Figari; mas está mais perto ainda da prosa de Robert Louis Stevenson, cuja força pictórica e cujo poder de sugestão, com base em detalhes circunstanciais de longa irradiação, não se cansa de elogiar. A ordenação visual dos acontecimentos, feito numa superfície de imagens, como se observa nas narrativas de Stevenson – Brecht viu nelas uma ótica fílmica, antes que o filme fosse inventado –, com certeza exerceu todo o seu poder de encanto sobre a imaginação do contista aprendiz. O fato é que a visualidade é realçada desde o título pela ausência do artigo, o que faz dele uma espécie de indicação própria para quadros como num catálogo de exposição de pintura, conforme logo se nota. Além disso, como nos adverte o próprio Borges desde o prólogo da primeira edição da História Universal da Infâmia, o propósito visual do conto tem a ver também com os filmes iniciais de Josef von Sternberg, a exemplo de Underworld (1927) e de The Docks of New York (1928). Sua construção metonímica, que põe em destaque fragmentos significativos com projeção ulterior, constitui uma lição de como narrar. Borges não parecia interessado numa “verdade coerente e central”, mas noutra, “angular e estilhaçada”, conforme uma frase de De Quincey, que ele antepôs à sua biografia de Evaristo Carriego, um de seus primeiros exercícios narrativos de largo voo, fora dos poemas e dos ensaios, todos eles permeados de narrativa desde o princípio de sua carreira.
O papel ficcional de Borges é também aqui diverso: torna-se apenas o destinatário silencioso a quem se dirige o narrador no desenlace do relato, diferentemente da maioria de seus contos em que ele se projeta no “fazedor” e comentador de suas ficções, por vezes lembrando o narrador distanciado de Machado de Assis. De fato, na maioria das vezes, ele encarna o narrador olímpico de um inconcebível universo, cuja realidade costuma apresentar de forma mediata e indireta, nos moldes de um sumário narrativo, no qual, no entanto, pormenores circunstanciais de longo alcance dão consistência e garantem a eficácia das histórias que o demiurgo relata. Mas, nesse caso do conto inicial, as cenas diretas ganham vida sobretudo pela força da fala, do discurso oral que combina a prosa culta com a linguagem popular. Mistura assim o lunfardo ao falar difícil, à maneira dos compadritos, numa mescla estilística sui generis, muito diferente do estilo inflado da crônica, além de muito mais complexa e decisiva para a obra futura do escritor.
Nota-se que Borges apostava então na prosa experimental, buscando uma relação orgânica entre a linguagem e o mundo apresentado. Fundia a forma com a matéria, como em tantos experimentos da vanguarda daquele tempo. É o que se observa no Mário de Andrade de Belazarte (1933), cujos contos sempre começam pelo marco da oralidade (“Belazarte me contou”), dando o tom da mescla estilística. Isso sem falar, é claro, em Macunaíma (1928), cujo aproveitamento ousado da cultura popular e o rigor da construção e da mistura linguística, inspiradas na música e no mito, fazem dele a peça central do nacionalismo modernista brasileiro. Mas essa relação orgânica entre a forma de contar e a matéria de que se trata lembra também o procedimento de Guimarães Rosa que, em Grande Sertão: Veredas, muito tempo depois, radicaliza a mescla estilística e o poder modulador da fala, levado até a sintaxe, desarvorada para perseguir outros possíveis da expressão, que, em muitos momentos, paragens dos mais críveis milagres, se cristaliza em pura poesia.
Desde o início de sua carreira, Borges tem sido visto principalmente como o autor de uma obra que se alimenta da própria literatura e dono de “um estilo tão estilo”, conforme afirmou Amado Alonso, que sua imagem parece apenas produto da escrita e de suas fontes eruditas. Nada mais equivocado, porém, uma vez que sem as fontes orais a sua obra não seria o que é e não se poderia compreendê-la adequadamente. A mitologia suburbana que desponta em “Homem da esquina rosada” chama a atenção para uma fonte oral que deve ter penetrado na perspectiva do escritor ainda muito cedo, uma vez que ela deita raízes prováveis na imaginação do menino, encerrado na biblioteca do pai, abarrotada de livros ingleses. (Sua avó paterna, Frances Ann Haslam, ou simplesmente Fanny Haslam, era inglesa e uma narradora oral importante para o neto, como se vê pelo notável relato aproveitado na “História do guerreiro e da cativa”, de O Aleph.) O menino imaginoso, leitor de enciclopédias, apaixonado pelos tigres, decerto se interessou também pelas histórias que se passavam ao redor da casa de Palermo, que era ainda um bairro isolado, sob o domínio das facas e das guitarras. A casa era frequentada pelos amigos e parentes do pai, como o poeta suburbano Evaristo Carriego ou seu primo Álvaro Melián Lafinur, também poeta, violonista e contador de casos; o menino acompanhava de perto e decerto com o maior interesse as histórias que eram contadas nesses serões e tertúlias, a que se referirá o escritor em seu Ensaio Autobiográfico de 1970. Mais tarde, o escritor conheceria pessoalmente outras figuras desse mundo imaginário de um Palermo perdido, como dom Nicolás Paredes, valentão aposentado, convertido em narrador oral dessas façanhas de arrabalde. É provável que outra fonte escrita deva ter pesado bastante: os romances de Eduardo Gutiérrez, repletos de histórias de bandidos e foragidos da lei. Assim como outras leituras no mesmo sentido, eles foram leitura de cabeceira de Borges, contrabalançando, sem dúvida, as fontes orais. Mas o fato é que essas histórias ouvidas e lidas desde a infância iriam constituir o manancial privilegiado de um filão recorrente na obra toda: o imaginário romanesco da violência, em que o punhal faz a festa de sangue, na qual o duelo e a degola são motivos centrais e ao mesmo tempo metonímias históricas da formação nacional, a que simbolicamente remetem.
Além disso, não se deve esquecer que essa mitologia suburbana se relacionava muito naturalmente, para o escritor, com o vasto espaço épico da formação nacional, mediante aspectos peculiares de sua história familiar, pois Borges era descendente, tanto pelo lado paterno quanto pelo materno, de militares que desempenharam papel relevante, seja nas lutas internas de fronteira contra os índios, seja nas guerras da independência contra os espanhóis. O ponto fundamental é este: o amálgama expansivo dos elementos tomados à história suburbana de Buenos Aires, da história familiar e da história nacional, na verdade apenas indicia um complexo processo de composição artística, que depende em profundidade, para sua eficácia estética, de uma integração formal de contextos heterogêneos, por vezes contrastantes e até disparatados. Nela confluem muitos outros elementos, tomados de esferas diversas, aproximadas pela vasta leitura a que Borges se dedicou desde muito jovem – leituras em muitas literaturas, em filosofia e nos mais inusitados assuntos. A construção artística depende em profundidade desse aproveitamento de materiais misturados e de um domínio de linguagem em que se esmerou, mas que foi com certeza uma árdua conquista, como se percebe na sua longa relação de amizade e colaboração com Adolfo Bioy Casares, com quem trabalhou diuturnamente desde o início dos anos 30 e com quem muito aprendeu, além do muito que ensinou, encurtando o tempo de aprendizagem do jovem Bioy.
Por tudo isso, vale a pena tentar compreender esse conto pioneiro, em que o escritor experimentou pela primeira vez, driblando a timidez, a arte da prosa de ficção para a qual se preparara intensamente durante as décadas de 20 e 30. E de fato ele é muito mais que só o exercício literário de um tímido. É bem verdade que, associado ao poema sobre a “Fundação mítica de Buenos Aires”, se prestou, para muitos leitores argentinos, à mera constituição de um mito nacionalista. Como já se disse, Borges mais tarde o execraria, procurando, por isso mesmo, desqualificar o valor literário do conto a ele associado, cujo enorme êxito sempre dizia estranhar.
No fundo, porém, outra história se anunciava nesse lance de facas afiadas: a da busca de domínio do ofício na construção da narrativa ficcional. Nela se empenhara Borges, detida e escrupulosamente, após anos de observação e reflexão sobre alguns modelos fundamentais. Chegou até eles pela prática da leitura crítica, ele que foi decerto o cisne mais tenebroso e singular entre tantos leitores e autores da história literária do século XX.
[1] Literalmente “Homens nas margens”.
[2] O pseudônimo combina nomes de antepassados de Borges.
[3]“Homens brigaram.”
[4]“Margem.”