ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2016
Brasília em chamas
Um dia nos três poderes
Daniela Pinheiro | Edição 124, Janeiro 2017
Tudo aconteceu na primeira quinzena de dezembro. O governo aprovou no Legislativo um teto pelos próximos vinte anos para os gastos federais. O presidente Michel Temer foi acusado de receber 10 milhões de reais em propina. O Congresso barrou uma lei que permitia eleições diretas para a Presidência da República se o atual governante perder o mandato em 2017. O sétimo integrante do núcleo duro de Temer caiu. Um lobista da Odebrecht elencou 51 políticos que teriam embolsado um cascalho da construtora em troca de favores. O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, mandou o presidente do Senado, Renan Calheiros, deixar o cargo e foi solenemente ignorado. Por fim, Lula apareceu à frente das pesquisas de intenção de voto para o primeiro turno de 2018.
Enquanto Brasília incendiava, o deputado Heráclito Fortes, do PSB piauiense, conversava com uma repórter de tevê no café contíguo ao plenário da Câmara. Ele tomava chá numa caneca de louça com motivos japoneses. Na véspera, um delator da Odebrecht o mencionara como beneficiário de um repasse de 100 mil reais. Quando alguém o abordou dizendo “Pô, Boca Mole é sacanagem!”, em referência ao apelido pelo qual a empreiteira o identificava, o parlamentar respondeu de pronto, antes de gargalhar: “Ainda bem que é a boca e não outra coisa.” Esclareceu, em seguida, que os militares costumavam tratar Tancredo Neves como Boca Mole durante a ditadura. “Na delação, não falaram nada de sério contra mim. Só mostraram que sou influente. Isso é ruim?”, defendeu-se. “E 100 mil? Imagine… A coisa anda tão maluca que até parece que sou uma rameira barata”, arrematou, soltando nova gargalhada.
Os apelidos que figuravam na lista da Odebrecht haviam se incorporado ao cotidiano brasiliense. Uma jornalista viu os seguranças do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, perguntarem entre si: “O Botafogo já chegou?” Todo Feio, codinome atribuído ao ex-deputado paraibano Inaldo Leitão, se alastrara feito traça em gaveta e servia a basicamente qualquer um. No diz que diz entre parlamentares e repórteres, ainda pairava um mistério: quem eram o Bobão, o Encostado e o Casa de Doido?
À roda do cafezinho, juntou-se o deputado Benito Gama, do PTB baiano. Quando comentaram que ele estava queimado, disparou uma resposta sarcástica: “Só na pele!” Gama e Fortes – cada um com quase quarenta anos de carreira pública – se puseram a recordar “tempos melhores”. “Hoje já não dá para conversar. A gente fica lá no fundo do plenário, emburrado, porque o nível está baixo demais!”, lamentou o piauiense. “Pelo menos, reabriram o Piantella”, tentou amenizar um dos presentes, citando o famoso restaurante, que passara meses fechado. “Mas não é mais a mesma coisa”, rebateu Gama. Em tom de fofoca, um parlamentar observou que o carro incendiado na Esplanada dos Ministérios durante um protesto pertencia a uma ex-jornalista, com quem Temer tem um filho. “Será que foi de caso pensado?”, conjecturaram todos. “Até isso aconteceu…”, queixou-se Fortes.
Como evidência maior de que o mar não estava mesmo para peixe, Temer cancelara um almoço de confraternização com congressistas da base aliada. “Pior que dei folga à minha empregada”, reclamou o socialista do Piauí. “Eu também!”, emendou o petebista da Bahia. “É o fim dos tempos…”, concluiu.
A poucos metros dali, no Supremo Tribunal Federal, o ministro Luís Roberto Barroso evitava tratar dos imbróglios que envolviam o Judiciário – a tal da crise interna corporis, como os magistrados gostam de repetir em plenário. Em seu gabinete, sentado numa poltrona de couro marrom, preferia discorrer sobre a formação do país, que, segundo ele, só aconteceu depois de 1808, com a chegada da família real portuguesa. “Em 208 anos, nos tornamos uma das dez maiores economias do mundo. Não podemos nos esquecer disso. É algo que nos dá ânimo nas dificuldades.” Espalhadas pelo ambiente, fotos e gravuras retratavam o Rio de Janeiro, estado natal do ministro.
“Para fazer as modificações de que o país necessita, precisamos do Congresso”, prosseguiu. “Ou melhor: precisamos do apoio de quem será afetado pelas transformações. Eis a grande contradição do Brasil: necessitamos da colaboração dos que vão sair perdendo.”
Refletindo sobre as revoltas populares de 2013, avaliou que os atos violentos se sobrepuseram às mudanças, o que contribuiu para tudo voltar rapidamente ao normal. “E o normal, por força do nosso sistema eleitoral, é a classe política ficar totalmente descolada da sociedade.” O ministro frisou que menos de 10% dos deputados são eleitos com votação própria. A maioria absoluta chega à Câmara por transferência de voto partidário. “O eleitor não sabe quem elegeu e o parlamentar não sabe por quem foi eleito. Isso não tem como funcionar.”
Localizado num anexo do Palácio do Planalto, o gabinete de Wellington Moreira Franco exibe paredes de compensado, piso de borracha e tapetes meio datados. De acordo com as delações da Odebrecht, o secretário executivo do Programa de Parcerias de Investimentos – um dos homens mais próximos de Temer – fez pressão para azeitar negócios no setor aéreo, quando ministro da Secretaria de Aviação Civil, no governo de Dilma Rousseff. Seu apelido: Angorá. “Coisa do Brizola”, explicou. A alcunha remete aos primórdios dos anos 80. Na época, o gaúcho insistia para que o então prefeito de Niterói se candidatasse ao governo do Rio pelo PDT. “Demorei um pouco para me decidir e, no fim, quando neguei a oferta, Brizola me comparou com um gato angorá. Falou que eu só queria ser acariciado.”
Perto das demais acusações que a construtora lançou contra outros políticos, as que recaem sobre Moreira Franco lhe parecem “café com leite”. “Eu teria pressionado para que atendessem a nove pedidos meus. Desses, não atenderam a nenhum. Está bom, não?”, ironizou. Naquele dia, tomava corpo entre os governistas a tese de que se encontra em curso uma estratégia para pavimentar o caminho do Planalto a um interessado ainda oculto. Os conspiradores tiraram Dilma do jogo e agora pretendiam se livrar de Temer. Na véspera, durante um efusivo discurso em plenário, o senador Jader Barbalho, do PMDB paraense, apontara os supostos responsáveis pela manobra: “a grande mídia e o presidente Fernando Henrique Cardoso”. Moreira Franco, porém, mantinha o ceticismo. “O interessado certamente tem CPF, mas não sei ainda de quem se trata.” A dúvida impedia que os parlamentares da situação elaborassem um plano de defesa. “A quem interessa tudo isso?”, questionava o secretário executivo, em chave dramática. “A quem?”
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