ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2013
Burguesia rebelada
Donos de dinheiro novo querem fim do Ancien Régime na Firjan
Consuelo Dieguez | Edição 88, Janeiro 2014
O palacete Guinle de Paula Machado ocupa todo um quarteirão da outrora aristocrática rua São Clemente, no bairro de Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Sua fachada de pedra, as pequenas torres e o magnífico jardim atraem os olhares dos transeuntes. O último proprietário, o banqueiro Lineu de Paula Machado, portava o mesmo nome do primeiro morador, o Lineu original, empresário do início do século XX casado com a senhora de sociedade Celina Guinle. Em 2011, depois de seis anos fechada, a propriedade foi comprada por 11 milhões de reais por outro delfim da alta sociedade carioca: Eduardo Eugenio Gouvêa Vieira, cuja família foi uma das sócias do grupo petroquímico Ipiranga, vendido em 2007 para a Petrobras. A aquisição do palacete, a bem dizer, não foi feita pela pessoa física de Vieira, dado que sua família não é mais a potência econômica de outrora. O comprador foi a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro, a Firjan, que Eduardo Eugenio – como é chamado por seus pares – preside há geológicos 18 anos.
Como costuma acontecer com reinados longevos, o de Gouvêa Vieira na Firjan começou a ser questionado. Empresários de estirpe francamente plebeia, hoje mais abastados do que o presidente da entidade, passaram a clamar por mudanças. O auge do enfrentamento se deu em agosto, quando um grupo liderado por Ariovaldo Rocha – um ex-funcionário de estaleiro que se tornou dono de vários deles e hoje preside o Sindicato Nacional da Indústria Naval – lançou uma chapa de oposição, fato inédito desde que a Firjan foi criada nos anos 30, lá nos idos do governo Vargas.
Gouvêa Vieira resistiu o quanto pôde a se submeter ao inglorioso processo eleitoral. Tentou várias vezes impugnar na Justiça a chapa oposicionista. Afora as vias legais, fez pressão direta sobre os associados da entidade. Um deles contou em uma carta ter sido destratado numa reunião porque relutava em apoiar o presidente. No final, Gouvêa Vieira prevaleceu na disputa, obtendo 73 votos contra trinta do adversário. Em seu sétimo mandato, ele permanecerá na função até 2016, completando 21 anos consecutivos – o tempo dos generais no Brasil.
“Enquanto o Eduardo Eugenio se eterniza no cargo, as federações das indústrias da maioria dos estados já estão no quarto ou quinto presidente”, criticou Márcio Fortes, ex-diretor da Firjan, ex-deputado pelo PSDB do Rio e um dos maiores críticos da atual gestão.
Na Firjan, Gouvêa Vieira administra um orçamento anual de 1 bilhão de reais – só o governo estadual e as prefeituras do Rio, de Niterói e de Caxias têm caixa mais farto. Os recursos, em tese, são destinados ao Sesi e ao Senai, para assistência médica e treinamento dos empregados da indústria. Uma pequena parte vai para a estrutura burocrática da Firjan. O dinheiro é arrecadado a partir do desconto obrigatório de 1,5% da folha de pagamento das indústrias. Trata-se de um imposto recolhido pelo governo, mas gerido pelo setor privado. Como são recursos públicos, chamados de parafiscais, estão sujeitos à fiscalização do Tribunal de Contas da União.
Os sindicatos de oposição à atual gestão se queixam de que a dinheirama está sendo mal-empregada. “Descontamos esse dinheiro, mas somos obrigados a pagar um serviço de saúde caro porque o Sesi cobra pelo atendimento de nossos operários”, reclamou Paulo Haddad, vice-presidente do Sindicato da Indústria Naval e que ocupou o posto de tesoureiro na chapa de Ariovaldo Rocha. Além disso, afirmou, sai mais barato treinar os funcionários em cursos fora do Senai, que cobra pelo treinamento. “Onde já se viu isso?”, irritou-se.
A oposição tem tirado o sossego de Gouvêa Vieira. Um levantamento na prestação de contas da Firjan constatou que, em 2013, a entidade gastou com o aluguel de jatinhos e helicópteros quase três vezes mais do que havia previsto no início do ano, saltando de 191 mil para 489 mil reais; as despesas de publicidade também quase triplicaram em relação ao orçamento, de 617 mil para 1,7 milhão de reais. O que mais vem agastando os opositores, no entanto, é a remuneração dos diretores da Firjan. O diretor-geral, Augusto Franco, ganha em torno de 90 mil reais por mês, mais que executivos de indústrias de grande porte. Os demais percebem salários entre 30 e 50 mil reais.
Gouvêa Vieira não quis falar para esta reportagem, mas sua assessoria mandou avisar que a Firjan é uma entidade privada e não tem que dar satisfação dos salários que paga. O Tribunal de Contas da União não pensa assim. Uma auditoria feita em 2011 pela seção regional do tribunal, que ainda não foi votada pelo conjunto dos ministros, determina que a Firjan devolva os recursos alocados para pagar até cinco salários extras a funcionários do Sesi e do Senai, a título de prêmio por alcance de metas. A fiscalização do TCU sugere que o presidente da Firjan seja multado e, o dinheiro, reembolsado.
O engenheiro Eduardo Eugenio Gouvêa Vieira chegou à presidência da Firjan em 1995, destronando Arthur João Donato, que liderara a federação por quinze anos. Na ocasião, como é praxe nesses casos, prometeu renovar a entidade. “Ele se encaixava com perfeição na imagem do empresário moderno. Era um príncipe à frente da Firjan”, disse Márcio Fortes, ex-aliado de Gouvêa Vieira. Na época, os industriais fizeram um pacto de que o presidente da Firjan teria direito a uma só reeleição.
Contudo, ao completar o segundo mandato, Gouvêa Vieira mudou as regras para ficar mais três anos. Repetiu o expediente no fim do mandato seguinte, até que – indo direto ao ponto, porque já estava ficando cansativo – aboliu de vez a proibição de reeleição. “Isso não é democrático”, queixou-se, ainda outro dia, Cláudio Tângari, presidente do Sindicato das Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de Nova Friburgo, na região serrana do estado.
Muitos industriais contestam a compra do palacete Guinle de Paula Machado. Argumentam que a Firjan é dona de um prédio vazio na Tijuca, na Zona Norte do Rio, que poderia abrigar o centro de treinamento de arquitetura, moda e design – a tal indústria criativa– que Gouvêa Vieira planeja instalar na mansão. “O palacete é uma beleza, a questão é se era prioridade”, ponderou Márcio Fortes. “Talvez o rei da Firjan, queira, afinal, ter o seu palácio.”
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