IMAGEM: BONOBO MACHO_FOTO DE FRANS DE WAAL
Cada macaco com seu mandato
Como a política ajudou os homens a ficarem macaquiavélico e a ciência descobriu que a selva está cheia de políticos
Marcos Sá Corrêa | Edição 30, Março 2009
O senador Jarbas Vasconcelos não está sozinho. O que ele disse outro dia do PMDB os cientistas vêm dizendo há muito tempo dos primatas. Os colegas do senador só querem o poder “para fazer negócios e ganhar comissões”? Tirando as siglas e os cifrões, os chimpanzés, orangotangos e babuínos também.
Nepotismo, abuso de autoridade, traição, rasteira, golpe, mensalão – não há figura da crônica política e da patologia sociológica que não tenha passado ultimamente pelos tratados de primatologia, tornando esses livros, para os leigos, muito mais fáceis de ler. O holandês Frans de Waal, decano da especialidade e autor de Eu, Primata, passou anos anotando tudo o que os chimpanzés faziam no zoológico de Arnhem, nos Países Baixos. Viu “blefes”, “coalizões” e “trapaças” onde o público só enxerga macaquice. E concluiu que esses eternos “palhaços do reino animal se sentiriam muito à vontade numa arena política”.
O que eles mais fazem é exercer o poder em proveito pessoal. Costumam ser “manipuladores” e “arbitrários”. Mentem tão bem que seus chefes caminham com o dorso eriçado, simulando passos de lutadores em tatames de sumô, para dar a impressão de serem maiores que a macacada plebéia. E essa, por sua vez, não se cansa de adulá-los, em rituais de obediência que incluem o beija-mão e, melhor ainda, o beija-pé. Aliás, curvar-se diante dos chefes é coisa de chimpanzé.
A bajulação compensa. É do convívio com os manda-chuvas que descem, em cascata, as prerrogativas hierárquicas do bando. Ao passo que o macaco-mór “usa o prestígio obtido com essas homenagens para manter o equilíbrio social”, distribuindo favores essenciais, como o acesso às bananas e às fêmeas. Em bom politiquês, isso se chama clientelismo.
Briga-se muito entre os chimpanzés. Mas suas brigas raramente passam de um exercício que serve para reiterar e reforçar a unidade do grupo. O inimigo mesmo é o externo. Cada vez que dois chimpanzés do alto clero se desentendem, os outros tomam partido e todos berram como se estivessem diante das câmeras da TV Senado. Mas, no fim, acaba tudo em catação recíproca de piolho, que é o grande cerimonial da reconciliação. Adversários aparentemente dispostos a se destroçarem com os dentes foram vistos por Waal, “um minuto depois que as brigas acabavam, correrem um ao encontro do outro, beijar-se, estreitar-se num abraço demorado e fervente, e então começar a se pentear um ao outro”. Como legítimos políticos.
Não se vencem as disputas entre os chimpanzés só a dentadas e pontapés. A luta se decide no grito, que convoca o apoio da maioria. Se tiver apoio popular, um bom ibope, o vencedor nem precisa ser o mais forte, e muito menos ter razão no episódio. Leva no voto. Com isso, entre mortos e feridos, quase sempre se salvam todos, prontos para a festa de confraternização que preserva a integridade física dos rivais e a estrepitosa harmonia do conjunto.
Para facilitar os acertos e selar os armistícios, o que não falta é turma do deixa-disso. De preferência, assumem esse papel as matriarcas mais influentes, que às vezes se metem entre os adversários e facilitam os empates técnicos. Waal registrou em cadernos de campo o placar desses conflitos: entre vinte e poucos chimpanzés, havia em média, de mil a 1 500 reconciliações por ano. Só viu uma morte em batalha – a de Luit, derrubado ao fim de um reinado como macho alfa que só durou dez semanas, quando se viu trancado num dormitório com dois desafetos e sem a companhia dos súditos.
“A agressão sempre foi atribuída a um instinto incontrolável”, comentou Waal, mas na prática ela não pode correr solta entre espécies gregárias, ou “resultaria na dispersão dos indivíduos”. Ao estudar os muriquis em Caratinga, a americana Karen B. Strier, autora do livro Faces in the Forest [Faces na Floresta], observou que há macacos mais conciliadores que os mais mitológicos políticos mineiros. “Durante as mais de 1 200 horas de observações que registrei no meu caderno de notas durante meu primeiro ano na floresta”, ela escreveu, “só estive diante de 31 interações entre indivíduos do grupo que poderiam ser remotamente consideradas agressivas.” O muriqui é tão cordato que, quando começa um acasalamento à sua frente, os machos fazem fila, esperando silenciosamente a sua vez de chegar à fêmea.
“Isso é oportunismo”, queixou-se outro dia o deputado Ciro Gomes, quando “o PT fez aliança com quem no mensalão estava querendo dar um golpe”. Os políticos brasileiros tiveram a quem puxar. Como explicou no dia seguinte o senador José Sarney, decano da conciliação irrestrita, o entendimento “faz parte do rito político e é democrático”. Ele provavelmente só não imagina há quantos milhões de anos isso é verdade.
Cinco anos atrás, os achados dos primatólogos chamaram a atenção do cientista político Sérgio Abranches, que passou a colecionar exemplos sobre os costumes sociais dos macacos que servissem para decifrar o código genético “do caudilhismo, do clientelismo, do nepotismo” e outros neologismos com que a vida pública nacional enriquece a língua portuguesa, o colunismo político e a crônica policial.
Abranches juntou anedotas sobre chimpanzés que, mesmo sendo primordialmente vegetarianos, às vezes organizam expedições coletivas de caça aos bonobos, seus primos tão próximos que, à primeira vista, os olhos leigos os confundem com seus caçadores. O mais intrigante, lembra o cientista, é que essas caçadas dificilmente se justificam por falta de comida. Ao contrário, “é a abundância de frutas que estimula a formação desses comandos”. Como os chimpanzés já estão reunidos e os bonobos, próximos, atacá-los é um pulo. Ou muitos pulos, o que, no caso, não faz diferença.
São corridas sanguinárias pelas copas das árvores, que terminam com os chimpanzés comungando a carne do bonobo, servida aos pedaços, cerimoniosamente, para lubrificar todo tipo de relações, a começar pelas sexuais. Abranches pretendia escrever um livro sobre os padrões de conduta que se repetem entre políticos, arrastados que são por mecanismos hereditários que nunca afloram à consciência dos protagonistas. “É o caso típico dos grupos que sobem ao governo para renová-lo e passam, imediatamente, a macaquear os hábitos da elite tradicional”, ele explica.
Seu projeto acabou engavetado, em 2004, assim que os fatos de Brasília superaram fartamente as metáforas de Arnhem. Mas ficou a constatação de que os políticos nunca estiveram tão próximos dos macacos, desde que os últimos antepassados comuns de homens e chimpanzés palmilharam a Terra, há pelo menos 5 milhões de anos.
A distância entre chimpanzés e humanos não pára de diminuir. Geneticamente, a distância entre eles está reduzida a 1,6% do DNA. Em relação aos gorilas, é um pouco maior: 2,3%. Com os orangotangos fica em 3,6%.
Como se não faltasse o índice de parentesco estendido a 98,4% do genoma, abriu-se há pouco mais uma fronteira a última, a do cérebro. Pesquisadores brasileiros anunciaram, em estréia mundial, uma contagem inédita de neurônios, com 86 bilhões para os homens e 32 bilhões para gorilas ou orangotangos.
Parece uma distância segura. Mas não o suficiente para caracterizar o cérebro humano como “um ponto fora da curva”, advertiu um dos autores da descoberta, o cientista Roberto Lent, chefe do Laboratório de Neuroplasticidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em sua opinião, “o homem é um primata como outro qualquer”.
Se todos os dados apontam para tamanha semelhança, por que houve tantos protestos quando o New York Post publicou uma charge comparando o presidente Barack Obama a um chimpanzé? “Não foi nossa intenção” ofender Obama, desculpou-se o jornal, depois de passeatas de protesto em que o pastor Al Sharpton, em nome dos negros nova-iorquinos, ameaçou: “Eles pensam que somos macacos, mas vão descobrir que somos leões.”
A charge era tão ruim que nenhum primatólogo se animou a lavar a honra de sua clientela. Se os especialistas quisessem, levariam o pastor às cordas com os mesmos argumentos que, desde que Darwin publicou A Origem das Espécies, vão empurrando os criacionistas para os últimos nichos do fanatismo religioso. Os leões não são páreo para os primatas. Enquanto espécies, homens e macacos se separaram há mais de 85 milhões de anos, num tempo em que os futuros rinocerontes, as focas, os morcegos, os cavalos, os porcos e muitos outros bichos – sem esquecer os macacos – coabitavam em franca promiscuidade genética o tronco original dos mamíferos.
Isso, como a própria evolução, vem de longe e não se limita aos Estados Unidos. Quando a atriz Sarah Bernhardt veio ao Brasil, em 1886, para “despejar sua voix d’or sobre a platéia do nosso Guarany”, o jornalista e poeta Vicente de Carvalho, escrevendo no Indicador Santista sob o pseudônimo de Gervásio Gomes, lastimou que ela certamente ouvira dizer “do Brasil o que em geral se diz de nós na Europa: um povo de macacos”. Mas, desembarcando no Rio de Janeiro, sofrera uma decepção, que ele relatou assim: “Macacos, só encontrou os políticos – e esses não eram novidade para ela. Em vez de um orangotango disforme, guinchando em mau português a sua surpresa e a sua alegria, encontrou o sr. Joaquim Nabuco, perfumado e elegante, sem pêlo e sem rabo, a dizer-lhe em francês clássico alexandrinos amáveis.”
Nabuco, por alcunha “Quincas, o Belo”, abolicionista e diplomata, membro da Sociedade Anti-Escravagista de Londres, foi tratado por Vicente de Carvalho como um pastiche tropical de sir Oran Haut-Ton, o orangotango polido e galante que, em Melincourt, a comédia de Thomas Love Peacock, fez furor na Inglaterra.
Na campanha americana do ano passado, a jornalista Natalie Angier escreveu, em sua coluna de Ciências do New York Times, que em toda eleição os candidatos, mal ou bem, imitam macacos. “Assim como há uma miríade de estratégias à disposição do animal político de natureza humana com ambições à Casa Branca, existem aos montes animais não-humanos que agem como políticos de carteirinha.” A compulsão de “agradar, conciliar ou intimidar” a qualquer custo era a mesma, segundo Angier. Tudo se resumiria a “trocar favores e coçar as costas ou, de preferência, catar bernes e carrapatos nos lombos uns dos outros”.
Ela se baseava no antropólogo Dario Maestripieri, da Universidade de Chicago, que acabara de lançar na praça acadêmica o termo “macaquiavelismo”. Fora o neologismo, o livro de Maestripieri, Macachiavellian Intelligence, não é exatamente um modelo de originalidade. Saiu muito depois de Machiavellian Intelligence, no qual os escoceses Richard Byrne e Andrew Whiten, escorados por pesquisas de campo, revelaram que os macacos Rhesus são consumados espertalhões.
Maestripieri aproveitou a deixa para avançar no campo da antropologia: “Eles fingem ajudar os outros, mas só ajudam adultos, nunca filhotes. E só ajudam os adultos que pertencem a classes mais altas, nunca os inferiores. Só intervêm em disputas quando acham que vão ganhar de qualquer maneira e o risco de se ferir é pequeno.” Em suma, os Rhesus procuram tirar de suas relações “o máximo de benefícios com o mínimo de custo”, e “se exploram uns aos outros, como as espécies mais individualistas exploram fontes de alimentação”.
Era mais ou menos o que o antropólogo Craig Stanford constatara anos antes, comentando, em Significant Others, que “o tio de Maquiavel deve ter sido macaco”. Os chimpanzés que Stanford visitou nas florestas de Uganda fazem “tudo para galgar sua rígida hierarquia e, conquistando um alto escalão, gerem seu status com esperteza maquiavélica, digna de um conspirador shakespeariano”. Frans de Waal já antecipara, na década de 1980, que “passagens inteiras de Maquiavel” se aplicariam “perfeitamente” às estratégias de sobrevivência dos chimpanzés.
Ou seja, Maestripieri macaqueou Waal e Stanford. E passou à frente deles, afirmando que os grandes primatas não brigam “por comida, território ou meios, mas por poder” – porque, do poder, extraem o resto. Além de maquiavélicos, eles seriam discípulos de Thomas Hobbes, o padroeiro de quem professa “um perpétuo e infatigável desejo de poder, que só cessa com a morte”.
Se, com Maestripieri, o macaquiavelismo debutou na cobertura eleitoral, ele não tirou de Waal a primazia de batizar como política o que acontecia no zoológico. Política, no caso, como arte de resolver, na definição clássica do sociólogo Harold Lasswell, “quem leva o que, quando e quanto”.
Frans de Waal não passava, vinte e tantos anos atrás, como ele mesmo escreveu, de um “um cientista iniciante, sem muita coisa a perder”. Nenhum dos medalhões da primatologia disputava a iniciativa de atribuir emoções e intenções humanas a cobaias irracionais, “com medo de serem acusados de antropomorfismo”.
Duas décadas depois, ao lançar uma edição revisada de Chimpanzee Politics, ele rememorou as noites que passou de pé, aspirando o cheiro áspero que emanava dos macacos no dormitório, pendurado no único telefone disponível no prédio para conferir as impressões do dia com seu professor, Jan van Hooff. “E foi numa dessas discussões que ele e eu, a princípio sem levar a expressão muito a sério, começamos a chamar de ‘política’ os acontecimentos presenciados na colônia”, lembrou Waal.
Ele reconhece que, no começo, deixou-se levar “pela suposição ingênua de que a comunidade dos chimpanzés fosse governada pela força”. Mas aprendeu com ela que a força era só “um dos fatores”, e “não o determinante”, no exercício de autoridade. O que contava mesmo era manter a cadeia de suserania e vassalagem na qual, “se A saúda B durante certo tempo, B jamais saudará A”.
As brigas sacudiam esses arranjos temporariamente. Como a vitória era quase sempre obtida por aclamação, disputava-se o poder “de acordo com as regras”, sem perder de vista o interesse comum de manter o bando preparado para enfrentar os perigos externos. “É essa mistura de rivalidade e camaradagem que torna a sociedade chimpanzé tão familiar para nós”, Waal argumentou. Nossa queda para a política, a seu ver, emana daí.
O pesquisador assistiu a ataques histéricos que lhe lembraram o fim do governo Richard Nixon, quando o presidente, às vésperas da renúncia, cai de joelhos na Casa Branca, esmurra o carpete e, aos soluços, pergunta aos céus como o caso Watergate pôde chegar aonde chegou. “Um dos meus chimpanzés tinha chiliques semelhantes aos de Nixon, exceto pelas palavras”, disse Waal. As cenas em Arnhem mostravam a mesma mistura de “irreprimível desespero e abjeção”.
Barack Obama não foi, portanto, o primeiro presidente dos Estados Unidos a ser comparado com macacos. A menção foi ainda mais direta e pungente na primeira metade do século XX, quando o jornalista e escritor H. L. Mencken publicou no Baltimore Sun que a democracia americana era “a arte e a ciência de governar o circo a partir da jaula dos macacos”.
Foi-se o tempo em que o desaforo tinha endosso científico. “A África tem os macacos e a Europa, os franceses”, proclamou no século XIX, sem dissimular a provocação, o filósofo Arthur Schopenhauer. Ele aludia à crença, disseminada na Europa, de que os macacos e os franceses seriam criaturas igualmente lúbricas, que só pensam naquilo. Paradoxalmente, Schopenhauer é uma espécie de patrono dos movimentos que defendem a dignidade dos bichos. Mas, pelo visto, abriu exceção aos macacos.
Embora alemão e francófobo, ele parecia estar sob a influência do Conde de Buffon, naturalista que discorreu, em 1775, sobre a “lascívia insolente” de um babuíno engaiolado no Jardin des Plantes, em Paris.
O babuíno à la Buffon “satisfazia em público seus fortes desejos e parecia gostar também de exibir sua nudez, mostrando seu posterior com mais frequência que sua cabeça”. Ficava ainda mais “impudente na presença de mulheres”. Não havia primatólogos para contestá-lo na época. Hoje, quem quer que tenha acompanhado um Big Brother Brasil alegaria que, preso numa jaula, alimentado regularmente, sem gastar a maior parte do dia, como faria em liberdade, para correr atrás do que comer, e poupando uma energia que dificilmente poderia gastar em outras tarefas da sobrevivência, o exibicionismo seria uma alternativa para o tal babuíno vencer o tédio e chamar a atenção dos passantes.
As especulações terminaram há 150 anos, quando Charles Darwin afirmou que o homem sucedeu o macaco no cronograma das espécies e borrou a linha divisória entre eles. Mas se passaram muitas décadas antes que a inglesa Mary Midgley pudesse esclarecer, em Beast and Man, que “não somos só bastante parecidos com os animais, nós somos animais”. Tudo mais são equívocos provocados por uma pergunta que as pessoas invariavelmente se fazem pelo avesso. Não adianta perguntar “como os homens se distinguem dos animais” e, sim, de saber “como os homens se distinguem entre os animais”, Midgley ensinou.
Há quase 100 anos a inteligência dos macacos vem sendo testada em laboratório. Nesse meio tempo, eles conseguiram deduzir onde o pesquisador escondeu suas rações, competir em aprendizagem com uma criança de 2 anos, comprar comida com fichas em máquinas automáticas e contar até dez. Mostraram, com isso, mais do que inteligência, uma paciência de Jó para cumprir tarefas chatas. Deve ser desalentador ficar trancafiado num laboratório, atendendo aos caprichos de um pesquisador. Como diz Stanford, “se os chimpanzés nos aplicassem testes de inteligência, provavelmente os resultados seriam desabonadores”.
Os primatas só começaram a ser encarados de igual para igual depois que George Schaller, então um biólogo de 26 anos, sentou-se em 1959 num galho de árvore nas colinas de Virunga, em Ruanda, para verificar o que fazem os gorilas sem a interferência humana. Antes, os naturalistas estudavam gorilas mortos ou cativos, o que é mais ou menos o equivalente a observar a sociedade carioca numa mesa de autópsia do Instituto Médico Legal ou numa solitária de Bangu 2.
“Eu não estava ali para capturá-los ou domesticá-los, só para interpretar seu modo de vida. Portanto, aproximei-me deles com empatia e respeito. E eles aceitaram minha presença com uma espantosa generosidade de espírito”, contou Schaller mais tarde em seu livro de memórias A Naturalist and Other Beasts [Um Naturalista e Outras Feras], título que põe o autor ao lado dos bichos.
Os gorilas eram considerados então “extremamente ferozes”. Nos vulcões de Virunga, o primeiro europeu a saber da existência dos gorilas foi um certo capitão Oscar von Beringe, que, em 1902, fuzilou dois machos logo no primeiro encontro. Depois do militar alemão, passou por lá uma expedição do Museu Americano de História Natural, em 1921, que recrutou nada menos de cinco exemplares da melhor estampa possível para a imortalidade de suas vitrines de taxidermia. Em troca, o chefe da equipe, Carl Akeley, convenceu o governo belga a criar uma reserva para preservá-los na colônia. Os gorilas saíram no lucro.
Trinta e oito anos depois, quando Schaller desembarcou em Ruanda, as lojas de suvenir vendiam cabeças e mãos de gorilas empalhadas. Num dos bandos que ele estudou, dois em onze gorilas tinham as mãos decepadas por armadilhas de caçadores. Nas pegadas de Schaller, instalou-se depois no Virunga a psicoterapeuta americana Dian Fossey. Ela morreu célebre graças a um livro escrito por um prêmio Nobel de medicina e a um filme no qual Sigourney Weaver a representou.
Schaller, um berlinense magro, de traços vincados, formou-se nos Estados Unidos e saiu diretamente da universidade para seguir a migração dos caribus no Alasca, quando as rotas imemoriais das manadas corriam o risco de serem picotadas por oleodutos. Nunca mais parou de procurar animais selvagens nas últimas fronteiras inexploradas do planeta. Seu currículo científico de “biólogo de campo” inclui, sempre em pesquisas de primeira mão, pandas chineses, onças do Pantanal mato-grossense, leões africanos, tigres asiáticos, leopardos afegãos e manadas dos altos platôs da Mongólia. Aos 75 anos, ainda não pendurou as botinas.
Com os gorilas do Virunga, Schaller quebrou o gelo no dia em que foi desafiado por D.J., um jovem macho encrenqueiro, já com as costas cobertas pelo manto de pêlos prateados que prenuncia a vocação para o comando. “Ele avançou em minha direção até parar a uns 10 metros, soltando um urro terrível e socando o próprio peito”, Schaller recordou. E confessou que, mesmo após muitos anos de convivência com os animais, nunca deixou de se assustar com o berro dessa besta.
Para piorar a má impressão, o bando veio atrás de D.J. Uma fêmea foi chegando para examinar Schaller de perto. Três machos a seguiram e se aboletaram na árvore em frente. Um filhote mais atrevido sentou-se bem a seu lado, mordendo a boca de ansiedade e apreensão. Terminada essa apresentação, começou o entendimento recíproco: “Enquanto eu me mantinha quieto, eles se sentiam seguros a ponto de continuar sua rotina diária, chegando a cochilar ao lado da árvore em que eu me sentava.” Schaller tinha desvendado o primeiro segredo dos gorilas: não atirar assim que eles erguem o corpanzil de 200 quilos para socar o peito e soltar seu urro. Isso nunca foi sinal de ataque. É advertência. Parece óbvio, mas só Schaller esperou para conferir.
Como Schaller atestou que “sem dúvida” o gorila é “mais que um animal”, as coisas melhoraram bastante para os gorilas. No primeiro King Kong, filmado em 1933, ele era um monstro à antiga. No segundo, de 1976, ressurgiu como um gigante romântico e benévolo, vítima da artilharia aérea de uma civilização preconceituosa. “Ninguém pode olhá-lo nos olhos – inteligentes, gentis, vulneráveis – sem mudar de idéia a seu respeito”, disse Schaller. Em seus encontros acidentais com gorilas desconhecidos, ele passou a confiar “na expressão de seus olhos mais que em qualquer outra coisa, para saber como se sentiam e decidir o que fazer”.
A visão é, de fato, uma das afinidades concretas do homem com o macaco. Ambos enxergam em cores, o que é raro entre mamíferos cuja tendência à visão noturna serviu para livrá-los, durante o dia, do convívio com dinossauros e outros lagartos que aguardam o calor do sol para começar a se mexer. A visão colorida é um trunfo para quem come frutas, porque ajuda a evitar as verdes e localizar as maduras, no labirinto instável das copas de uma floresta. Há quem suponha que a associação de verde com “siga em frente” e vermelho com “pare” chegou mais ou menos intacta aos sinais de trânsito pelo túnel do tempo.
“Todas as emoções dos chimpanzés se espelham no olhar”, afirma Frans de Waal. Vinte e poucos anos atrás, primatólogos não escreviam assim. Quando a inglesa Jane Goodall começou a publicar seus trabalhos sobre chimpanzés na Tanzânia, censuraram-se até os nomes que ela dava aos bichos, à medida que os identificava. Flo e Gigi, por exemplo, viravam FL e GG nos textos que iam ao prelo.
Hoje, mesmo nos livros mais técnicos, anda em voga a licença poética, para traduzir o “continuum entre a humanidade e os grandes macacos”, como fez Stanford. Ele descreve com todas as cores “as guerras entre grupos, com agressões letais na disputa de território”. Narra “caçadas comunitárias”, em que as presas são “repartidas ritualmente e usadas em negociações políticas”. Comenta “o uso de uma grande variedade de instrumentos feitos de madeira e plantas”. Aponta “o espancamento das fêmeas que não se submetem ao macho” e a compra de serviços sexuais comparáveis aos da prostituição com nacos de carne. Nessas horas, os “honchos” partilham o butim com “aliados e parentes” e “usam a carne para convencer as fêmeas em período fértil a copularem com eles, numa orgia de carne e sexo que parece saída diretamente das páginas de Tom Jones“.
De livro em livro, o chimpanzé – que se chama Pan troglodytes no jargão científico – parece cada vez mais a raposa das fábulas de La Fontaine. É esperto e deliberado. Age com premeditação. E tem lições para dar aos homens. No mínimo. Para Stanford, a primatologia aplicada aos assuntos humanos não deixa de ser uma forma de terapia, “na qual as pessoas podem buscar o que as faz serem o que são”.
Se os primatólogos conseguiram tornar os macacos mais interessantes, talvez possam fazer o mesmo pelos políticos. De cara, para Mary Midgley, eles têm uma superioridade sobre os “cientistas sociais”, que só embarcam no estudo dos grupos sociais armados com “jargão técnico, pressupostos supérfluos e experiências de duvidosa relevância”. Os naturalistas, ao contrário, “falam a linguagem do dia-a-dia e têm um campo de visão muito mais vasto”. Não é de admirar que “a explosão de estudos sobre comportamento animal” tornou “imensamente populares as comparações entre os homens e os bichos”.
A bióloga Dorothy Cheney e o psicólogo Robert Seyfarth radicalizaram essas comparações. Passaram onze anos estudando, no Parque Nacional do Amboseli, no Quênia, o Chlorocebus pygerythrus, um macaco à beira da extinção que os colonizadores da África do Sul trataram como praga agrícola. Em seguida, lidaram com os babuínos do delta do Okavango, uma planície de vegetação edênica contígua ao deserto de Kalahari, no Botsuana. O resultado de suas pesquisas está em Baboon Methaphysics. O livro é a demonstração experimental de um postulado de Darwin, prevendo que quem decifrasse a cabeça desses bichos faria mais pela teoria do conhecimento do que toda a obra do filósofo John Locke. E Darwin contava para isso com pouco mais do que o rumor de que “certos macacos fumam com prazer”.
“A essência do babuíno é a sociedade”, avisam Cheney e Seyfarth. Para os machos, o status depende tanto da força bruta quanto do “trabalho de grupo”. Sem aliados, “nenhum dos chefes se aguenta”. Para manter os rivais em cheque, é necessário “formar, na base, uma frente ampla”. Por outro lado, as fêmeas vivem um “verdadeiro melodrama de Jane Austen”, numa sociedade que junta até 100 macacos. A rígida estrutura de classes, velada por elas, está sob o cerco permanente de migrantes, dispostos a tudo para subir o mais depressa possível ao topo da hierarquia, onde estão guardadas as regalias da procriação. O prêmio é certo: “O macho alfa copula mais que os subalternos.” Além de se alimentar melhor. Não dá para querer mais que isso no Okavango.
O reinado desses forasteiros dura, no máximo, oito meses, antes que um novo golpe violento os derrube. Não há tempo a desperdiçar com os salamaleques da conquista. O meio mais seguro de garantir, antes da queda iminente, o acesso ao maior número possível de fêmeas é matar as crias que elas estejam amamentando. Isso antecipa as ovulações e, ao mesmo tempo, abrevia o mandato dos genes espalhados pelo antecessor. O infanticídio responde por 53% das mortes de filhotes no Okavango.
Os babuínos são “politicamente incorretos”. Os machos, quase duas vezes mais corpulentos que as fêmeas, além de “agressivos, destrutivos e saqueadores”, subvertem esse matriarcado “tranquilo, sutil e complexo” com sua presença “incômoda, abrutalhada e breve”. As fêmeas vivem até vinte anos. Os machos, muito menos – como os adolescentes que trabalham para o tráfico nos morros do Rio de Janeiro. Machos e fêmeas convivem, nessa rotina, com altos teores de estresse, patentes nas taxas de glucorticóides examinadas em suas fezes.
Nem por isso os dois pesquisadores deixaram de encontrar no Okavango tinturas de civilização. O alpinismo social dos babuínos remeteu-os a Rebecca Sharp, a órfã carreirista de Feira das Vaidades (Vanity Fair). No romance de William Thackeray, Rebecca fazia tudo para se pendurar nos oligarcas. Na alta sociedade dos babuínos, as fêmeas de baixa extração atuam como mucamas, penteando e retirando os piolhos das oligarcas ou ajudando a aquecê-las nos dias mais frios.
Seu “objetivo central” é cultivar “uma relação em que troque os serviços gratuitos nesses salões de beleza pelo eventual apoio em alianças contra ameaças ou na franquia de alimentos”. O investimento é de longo prazo. Implica “meses ou mesmo anos” de subserviência, com “pouca ou nenhuma contrapartida”. Cheney e Seyfarth orçaram essas trocas em dez para um.
Em compensação, o regime de estresse rendeu aos babuínos um traquejo social digno dos “expoentes da elite nova-iorquina nas histórias de Edith Wharton”. Eles têm que manter sempre atualizado seu quem-é-quem nas famílias dominantes e nas castas inferiores. Esse requisito básico de sobrevivência “favoreceu os indivíduos aptos a desenvolverem teorias sobre a vida social”. Instinto e memória, só, não bastariam para orientar os babuínos em seu toma-lá-dá-cá.
Cérebro desenvolvido é um luxo caro. Gasta mais energia do que as pernas de um corredor em provas de longa distância. Requer dietas à base de fruta ou carne, e ambos são alimentos fugidios, porque as fontes de proteína tendem a escapar de seus consumidores e as de glicose costumam se dispersar por vastos territórios, ao capricho das estações. É preciso também abastecer esse cérebro com informações que não vieram de berço, no enxoval dos reflexos hereditários. O aprendizado resulta em infâncias longas e adolescências complicadas.
Tudo, portanto, induz os macacos à vida gregária. E, com ela, surgem os problemas de competição e cooperação que só a política resolve, “o que pode ser uma justificativa para o tamanho insólito de seus cérebros”. O psicólogo inglês Michael Chance, a partir de observações no zoológico de Londres, levantou em 1953 a hipótese de que “o desenvolvimento do neocórtex é uma adaptação anatômica” aos estímulos embaralhados e complexos da vida comunitária.
Cheney e Seyfarth deram um passo adiante, sugerindo que os grandes primatas não viraram políticos por serem mais inteligentes que os outros animais e, sim, ficaram mais inteligentes por serem naturalmente políticos. O indício de que “a competição pode ser uma das explicações para o tamanho insólito do cérebro dos primatas” está no neocórtex que aloja, na parte frontal, os circuitos do pensamento abstrato e da “empatia” – que é o dom de entender os outros –, e reservou uma área na dobra inferior para responder a expressões faciais.
Ler olhos e bocas é uma habilidade importante para quem lida com primatas. Frans de Waal se considera capaz de reconhecer instantaneamente “a diferença entre uma disposição brincalhona e uma atitude ansiosa” pela “extensão dos dentes que fica exposta”. Há uma expressão “para cada estado de espírito”. E é “tão fácil distinguir um do outro como identificar as pessoas”. O inegável é que os chimpanzés se reconhecem no espelho. Ficam hipnotizados por suas próprias imagens. E dispensam fitar-se olho no olho, que vêem como desafio, porque têm o dom inato de avaliar pela forma as fisionomias.
E o que tem isso a ver com a política? Melhor perguntar à ministra Dilma Rousseff, que começou pela cirurgia plástica a montagem de sua plataforma de candidata à presidência da República e avaliou a operação como “um sucesso de crítica e de público”. Pelo visto, ela sabe exatamente como atingir o córtex frontal e a dobra inferior dos brasileiros.