Cada um tem seu silêncio
Cordel do incrível encontro de Buster Keaton e Samuel Beckett em Nova York e do Film que fizeram lá
Felipe Fortuna | Edição 148, Janeiro 2019
Leitor prezado que agora
começa a ler meu relato:
peço atenção e silêncio
para que, sem muito ornato,
eu possa escrever com rimas
um enredo que me anima,
pois é fato e não boato.
Peço a palavra ao silêncio
para cantar o ocorrido,
que é por muitos ignorado.
E sigo assim decidido
a buscar na irresistível
narrativa ora legível
o que era desconhecido.
Em Nova York ocorreu
no ano de 64
o encontro de dois artistas
que com louvor idolatro:
no mês de julho se viram
e logo então produziram
um filme feito teatro.
(Aviso logo ao leitor
que os dois artistas jamais
se haviam encontrado antes.
Mas não me sinto capaz
de afirmar que houve amizade.
Quero só, com brevidade,
tratar de modo tenaz
de um encontro sem igual
de dois gênios que, com arte,
flagraram o ser humano
e juntos tomaram parte
numa aventura profunda,
irônica e assaz fecunda,
que vou contar à la carte).
O silêncio é importante
pois se fez matéria-prima
que um deles utilizou
bem à maneira da esgrima:
elegante, mas letal;
sóbria; tensa; visceral;
com força personalíssima.
O segundo se afirmou
pelo silêncio também.
Seu rosto imóvel logrou
uma expressão que ninguém
chegou perto de imitar:
cômica e séria, a burlar
da força que o riso tem.
Sem pressa logo direi
quem são os dois criadores
que, embora muito contidos,
foram grandes transgressores
por escrito e no cinema:
arte como estratagema,
buscando novos valores.
Samuel Beckett, autor
de textos essenciais
sobre o drama da existência,
quanto menos diz, diz mais.
Irlandês de nascimento,
foi criador de talento
em suas peças cabais.
Com humor negro escreveu
Happy Days, Fin de Partie,
Eh Joe, Breath, Not I, Molloy.
Do absurdo ele se ri,
como se encarasse a face
de um perigo ou de um impasse
onde a vida é déjà vu.
Um dramaturgo ao extremo,
que, em inglês ou em francês,
se mostrou um fatalista,
parodiando clichês
de morte, lamento e dor,
em tudo sabendo expor
nossa imensa insensatez.
Trabalhou com James Joyce,
outro irlandês afamado,
que lhe apontou a vanguarda.
Mas Beckett, ensimesmado,
teve ideia alvissareira:
num estalo de Vieira
seguiu por outro roçado.
– Não devo nunca escrever
os neologismos obscenos
de que tanto gosta o Mestre.
Vou buscar outros terrenos
e fazer tudo ao contrário:
em vez de inflar dicionários,
vou usar palavra a menos.
Pois bem sei que, agindo assim,
eu serei original
por explorar o vazio
que mora em nós, afinal.
E mostrar, com sapiência,
o trágico da existência,
sua cadência fatal.
Assim disse e assim agiu:
de Schopenhauer leitor,
fez filosofia em cena.
E mostrou o íntimo horror
de viver ao deus-dará
sem certeza se Deus há,
em tom exasperador.
Com Esperando Godot
atingiu fama suprema:
nada acontecia ali,
e esse nada era o seu tema.
Uma espera sem por quê,
a se perguntar “cadê?”
– o nosso maior problema.
Por sua vez, Buster Keaton
também merece respeito
pelo tanto que inovou.
Seu humor tira proveito
de marcante disciplina:
ao fazer rir, ele ensina
a nunca estar satisfeito.
Herói da comédia física,
esse artista conseguiu
correr, saltar e cair
com imenso sangue-frio
e o rosto paralisado
num semblante copiado
ou de um truque ou de um ardil.
Assim ganhou o apelido
de Buster – pela proeza
de não perder a elegância
e de pular com destreza
fosse rocha ou fosse pau,
fauna, flora ou lodaçal,
sempre mantendo frieza.
“O grande rosto de pedra”
– isso virou referência
do americano do Kansas
que, com muita irreverência,
brilhou no cinema mudo,
o cômico mais sisudo
e sério só na aparência.
– Eu comecei aos três anos
em peças de vaudevile.
Busco sempre o paradoxo,
para que o humor destile
uma essência muito humana,
que envenena e desengana,
e a rigidez aniquile.
Vejam só The General,
filme não bem recebido.
Uma paródia da História
sobre os Estados Unidos
durante a Guerra Civil,
esse período sombrio
que jamais foi esquecido.
O principal personagem
era uma locomotiva,
na qual fiz tremendas gags.
Apesar da narrativa
ser bem tramada, eu confesso
que sendo pouco o sucesso,
minha carreira inventiva
foi tropeçar com mais força
do que eu mesmo conseguia!
Pois minha intenção, de fato,
estava além da alegria:
ser estoico e engenhoso,
artista meticuloso
com sóbrias acrobacias.
Mas com The Cameraman
tive um êxito notável,
uma comédia de amor
que me foi mais favorável
ao me deixar à vontade
e com oportunidade
de fazer algo rentável
para a Metro-Goldwyn-Mayer,
onde era proprietário
dos filmes que eu escrevia.
Foi ali o meu calvário,
pois, pouco a pouco, perdi
o talento que investi,
mal convertido em salário.
Aqui interrompo a fala
do grande comediante
para voltar ao assunto
que julgo mais excitante:
o encontro profissional
dessa dupla sem igual
em roteiro cativante.
O nome do filme é Film
– não estranhe que assim seja.
Beckett escrevera Play,
numa síntese que almeja
dar força ao que for sucinto
e mostrar o labirinto
onde o ser sofre e fraqueja.
Com quase vinte minutos,
o filme foi dirigido
pelo amigo Alan Schneider,
que, seguro e decidido,
convidou o grande ator
do belo The Navigator
logo logo convencido.
E assim fechou-se o contrato
desse filme vanguardista
que juntou, num só lugar,
uma dupla que despista
a audiência mais atenta;
uma dupla que reinventa
o mais hábil trapezista,
e faz do clamor silêncio
e da verdade, uma triste
hipótese a comprovar.
Por isso, ainda se assiste
às obras daqueles dois:
nada ali se decompôs,
e o que fizeram resiste.
Marcou-se enfim esse encontro
bastante peculiar.
Os prazos bem apertados,
nada podia falhar…
Foi bem grande a correria,
pois o encontro ocorreria
no dia de trabalhar!
Samuel Beckett e Buster
Keaton, numa tarde quente,
se conheceram por fim.
Nenhum dos dois eloquente.
Mas ambos determinados
a buscar bons resultados
no cronograma exigente.
Beckett foi quem deu início
às saudações usuais:
– Sou seu fã e muito admiro
as comédias magistrais
que o amigo concebeu.
Elas são um apogeu,
obras de força mordaz.
Keaton bebia cerveja.
Beckett falava sem freio.
Sentiu-se um tanto confuso
com todo aquele floreio
que o irlandês lhe lançou.
Mas de pronto se aprumou
e disse, sem titubeio:
– Sei também da sua obra,
tão distinta da que eu faço…
Meu trabalho é popular,
embora cause embaraço
o meu rosto sempre sério
ou mesmo certo mistério,
pois, se caio, não me amasso…
Beckett de pronto entendeu
o que ali Keaton dissera.
Pois numerosos atores
se expressavam com severa
reserva ao que ele escrevia.
Keaton, no entanto, sabia
dar opinião sincera:
– Sou grato pelo trabalho
que aqui realizarei.
Eu vi que é cinema mudo,
que para trás já deixei…
Uma dúvida presente:
vanguarda não é pra frente?
Mas releve o meu fair play…
Beckett enfim divertiu-se
com tão aguda ironia.
Percebeu no ator alguém
cuja graça contagia,
e lhe explicou, lentamente,
por que era tão exigente
em tudo o que ele escrevia:
– Minha vanguarda é bem velha,
só trato do conhecido:
vida, morte, espera, angústia,
medo, silêncio, resíduo,
tudo aquilo que perdemos
e que sempre refaremos
por instinto malnascido.
Não me desculpo por ser
pessimista até o tutano.
Vida es sueño, mas a mim
toda vida é só engano.
Essa vontade de ser
é pior que a de querer!
Tudo está no mesmo plano!
Keaton ficou ponderando
sobre aquela explicação.
Beckett soube transmitir
muita compenetração,
falando com lucidez
e notável polidez,
impecável na expressão.
E Keaton também falou
de modo um tanto incisivo:
– Meu humor é corporal,
e eu não gosto de improviso.
Estudo cada sequência
com bastante persistência,
buscando encontrar o riso
onde for menos provável.
Repetir muito é preciso,
e esse meu lema eu repito!
O corpo humano analiso
no limite da potência,
em busca da quintessência
do meu estilo conciso.
Quando caminho, sei bem
onde preciso chegar.
Graças ao cinema mudo,
pude enfim investigar
a função de cada músculo,
não importa se minúsculo,
desde que eu possa domar.
Não sou chegado a palavras
(Keaton seguiu a dizer).
Por isso, no seu teatro,
percebo que se conter
é muito mais importante
do que se postar diante
de um obstáculo a vencer.
Beckett se maravilhou
com aquele entendimento.
“Cada um tem seu silêncio”,
refletiu por um momento.
E, ao estender a conversa,
sem sinal de controvérsia,
foi direto ao seu intento:
– Será que então poderíamos
já tratar do meu roteiro?
Escrevi bem poucas páginas,
procurando ser certeiro
na forma quanto no fundo:
pois o menos é fecundo
e muito mais verdadeiro.
Keaton de pronto aceitou
o que lhe propunha Beckett.
O irlandês lhe deu a cópia
impressa numa plaquete,
e, indicando-lhe o início
daquele drama fictício,
fez seguir o tête-à-tête:
– A inspiração vem de Berkeley,
idealista irlandês,
um filósofo que admiro.
Foi ele, com altivez,
quem deixou instituído:
que ser é ser percebido.
Um primor de nitidez!
Em latim, esse est percipi,
eis o que ele formulou.
E eu criei um personagem
que em seu delírio tentou
perceber tudo ao redor,
mas sempre a se contrapor
a quem o viu ou o olhou.
No roteiro que escrevi,
o olho é peça essencial:
é uma câmera faminta
que capta todo o real.
E o personagem se esconde,
sem conseguir achar onde
escapar daquele mal.
Por isso ele cobre tudo
que consiga percebê-lo:
gato, cachorro, janela,
desenho, e mesmo um espelho.
Uma batalha que o leva
a buscar a própria treva
e a viver em pesadelo.
Conheço a luta feroz
de quem só quer perceber,
mas não quer ser percebido.
Luta que vai envolver
a razão – e o corpo inteiro!
O olho é órgão traiçoeiro
quando alguém quer se esconder.
Buster Keaton escutou
a tudo o que o escritor
com muito zelo explicara.
– Será desafiador
compor esse personagem
que elimina a sua imagem,
e, além disso, sem humor!
Mas não demonstrou qualquer
aflição ou agonia:
“Sequer verão o meu rosto…”,
pensou, mas sem apatia.
“As coisas estão dispostas:
só me filmarão de costas!
Isso, sim, me contraria!”
Percebendo Buster Keaton
um tanto inquieto e agitado,
Samuel Beckett falou
em tom ameno e pausado:
– Não veja em mim um problema:
você conhece cinema,
aqui faço aprendizado.
Vou dividir as imagens
para chegar ao que eu quero:
um olhar vai persegui-lo
com foco limpo e sincero;
o outro olhar será o seu,
cujo foco esvaneceu
e chegará logo a zero.
Ironizando as palavras
que o irlandês lhe dissera,
Buster Keaton comentou
da maneira mais sincera:
– Só vi desafio assim
quando inventei para mim
uma ginástica austera:
foi quando filmei Day Dreams,
e entrei nas pás de um navio,
girando ali como um rato…
Mas eu não sou arredio,
não vou fugir ao trabalho.
Vamos ver mesmo se valho
a fama que eu angario.
Samuel Beckett gostou
da citação de Day Dreams.
Lembrava-se bem do filme
(a cena dos manequins
também foi muito marcante):
– Porém, a mais intrigante
estava quase no fim.
Era a cena do suicídio,
de longe a que mais gostei.
Tentando matar-se logo
– corrija-me se inventei –,
com um tiro na cabeça,
você dispara depressa
e em seguida diz: “Errei!”
Aquela cena tão cômica,
que mistura drama e riso,
por muito tempo marcou-me.
Na cena toda diviso
a força tremenda do erro,
à qual ainda me aferro,
como algo de que preciso.
[Aqui peço ao meu leitor
a possível atenção
entre colchetes e itálicos.
Pois, na minha opinião,
a força daquela cena
não foi de fato pequena
e merece reflexão.
Ao escrever Worstward Ho,
talvez um poema em prosa,
Beckett gestou uma ideia
que agora ficou famosa:
Try again. Fail again. Fail
better. Não é devaneio
demonstrar a sinuosa
e similar concepção
entre aqueles dois artistas
em situação-limite
e percepções pessimistas.
E mais não quero alongar-me,
evitando todo alarme
contra os meus pontos de vista.]
Assim seguia o encontro
dos dois artistas de peso,
que tinham muito a dizer.
Alan Schneider, surpreso
com a conversa que ouvia,
disse à dupla que queria
fazer um filme coeso
sobre a amizade nascente
que no estúdio apareceu,
justificando, a brincar:
– É bem mais forte do que eu!
E assim, com delicadeza
e sem qualquer tibieza,
explicou o plano seu:
– Perto da ponte do Brooklyn
encontrei algo sublime
para a nossa locação:
um pátio que bem exprime
esse espaço muito hostil
como o roteiro previu.
E assim filmaremos Film.
*
Film começa com um olho
que foca no espectador:
enorme, esse olho abre e fecha,
tal como o obturador
de uma câmera apontada
para a luz e para o nada,
cristalino e com tremor.
Um olho embaçado e velho,
cansado de tanto olhar:
parece trazer consigo
a memória de um lugar,
ou, no excesso do seu close,
alguma luz que repouse,
pronta para se apagar.
Esse olho lembra bastante
as cenas iniciais
do filme Um Cão Andaluz.
(Mas não ocorre jamais
cena que aluda à navalha
que o olho do bicho talha,
com seus efeitos brutais.)
Buster Keaton então surge
correndo próximo ao muro
de um pátio todo em escombros.
E em meio a tanto monturo,
segue a caminhar nervoso
– um tanto inabilidoso
em seu tortuoso apuro.
Até que esbarra com força
em um casal bem à frente
que lia, unido, um jornal.
Em seguida, estranhamente,
olhou e foi bem olhado
pelo casal assustado,
e apressou seu passo urgente.
Na sequência percebemos
que o casal se amedrontou
ao ser visto pela câmera.
Mas Buster Keaton ficou
voltado para si mesmo,
caminhando sempre a esmo,
depois que se retirou.
Virou à esquerda e se foi,
de maneira fugitiva,
sempre visto pelas costas.
Com sua figura esquiva,
entrou em um edifício,
uma espécie de cortiço,
com rapidez impulsiva.
Lá dentro, uma escadaria
levava ao andar mais alto
ou, à direita, ao mais baixo.
Mas em meio ao sobressalto
do seu caminhar convulso,
ele consultou seu pulso
– homem nervoso, mas cauto.
Por que checar batimentos
naquela tremenda pressa?
De repente, uma senhora
o seu caminho atravessa,
descendo um lance de escadas.
Ela se mostra assustada
com a câmera, e depressa
desmaia, e cai no chão,
deixando cair também
as flores que carregava.
Ele ali não intervém,
e sobe ao primeiro andar,
conseguindo logo entrar
no apartamento que tem.
Já lá dentro ele se fecha
e checa de novo o pulso.
Um lenço o rosto cobria,
arrancado num impulso:
é quando olha ao seu redor
o decadente décor
com seus objetos avulsos:
uma janela, um espelho,
uma gaiola, um retrato
e, numa cesta no chão,
um cachorro junto a um gato,
tudo sendo percebido
por um olhar precavido
que procura anonimato.
E, não querendo ser visto
nem por ninguém nem por nada,
fecha a cortina do cômodo,
que, apesar de esburacada,
consegue bem protegê-lo
do seu próprio pesadelo
de ter a presença olhada.
Em seguida se incomoda
com o espelho à sua frente,
que teria refletido
a sua imagem premente,
não tivesse, sem engano,
pendurado nele um pano
para cegar o fulgente
reflexo que indicaria
estar sendo percebido.
E, usando o mesmo critério,
logo se viu convencido
a se livrar do felino
que tinha olhar bailarino
e, talvez, salto incontido.
O gato foi despejado,
jogado no corredor.
Logo em seguida, o cachorro,
enxotado com vigor.
Mas, em meio à confusão,
houve ainda ocasião
para se fazer humor:
pois, no afã de se livrar
do cachorro que expulsava,
o gato, que estava fora,
ao seu espaço voltava.
Resolvida essa questão
que lhe causava aflição,
outra questão despertava:
no espaldar de uma cadeira
haviam sido entalhados
dois orifícios simétricos,
a dois olhos comparados!
Mas Buster Keaton media
o que aquilo lhe dizia,
e fugia para os lados.
Por exemplo, na parede
pendia estranho retrato
de um boneco de olhos grandes.
Aquilo era um desacato!
Arrancando-o do lugar,
começou a destroçar
o papel de imediato.
Com obsessiva visão
ele analisava o espaço
que procurava habitar,
tudo causando embaraço.
E de dentro da gaiola
há um papagaio que o olha,
e que ele olhou pari passu.
Portando o seu sobretudo
e atuando com presteza,
cobriu a gaiola e o pássaro.
E na mesma ligeireza,
em meio ao mobiliário
notou que havia um aquário
pousado sobre uma mesa:
o olhar pequeno de um peixe,
ainda que acidental,
igualmente o perturbava.
Do mesmo modo cabal,
cobriu tudo de uma vez.
Só então se satisfez,
cumprindo o seu ritual.
Voltou então a sentar-se
na cadeira de balanço.
Ao checar tudo o que fez,
procurando algum descanso,
abriu envelope antigo
que já trouxera consigo,
pois se sentia mais manso.
E de dentro do envelope
ele acabou retirando
um total de sete fotos
para as quais ficou olhando.
Fotos dos seus pais queridos,
da noiva, dos anos idos,
que uma a uma foi fitando.
Retratos que o exibiam
ainda muito pequeno
para os quais deu atenção.
Parecendo mais sereno,
chegou a se comover
consigo mesmo, ao se ver
em flagrante bem ingênuo,
segurando no seu colo
o próprio filho, talvez.
A derradeira das fotos,
porém, não o satisfez:
exibia, bem de frente,
ele mesmo olhando a lente
com zangada rigidez.
Com gestos bastante bruscos,
foi decidido: rasgou,
uma a uma, as sete fotos
que com zelo ele juntou.
Gestos de pura alforria:
cada foto o percebia,
e a todas eliminou.
Ele usava um tapa-olho
naquela foto final,
que havia sido tirada
em rara pose frontal:
foto que não o aprimora,
e o mostra como é agora,
do modo mais natural.
E, após rasgá-las, voltou
ao ir e vir da cadeira.
Checou seu pulso de novo
daquela mesma maneira
enervada com que agia
ao longo de todo o dia,
em agitada carreira.
Finalmente adormeceu
ao sereno balançar,
sabendo que destruíra
tudo o que lançasse olhar.
Mas, de repente, alarmado,
saltou do sono alcançado
como se fosse enfartar.
Não sabia se era sonho
ou árdua realidade –
o fato é que à frente via
o seu duplo “de verdade”:
via a si mesmo com medo,
com susto, em cópia, arremedo
de sua monstruosidade.
O seu próprio olho o via
em outro (o mesmo) bem-posto.
Sentiu que desmaiaria,
levou suas mãos ao rosto,
olhou de novo, era olhado
por olho igual, incrustado,
e olhando-o a contragosto.
Olho que o deixava exposto
e inteiramente indefeso
tirando-lhe o pressuposto
de que aliviara o peso
de perceber e de ser
percebido ao já nascer,
em um mundo predisposto.
Isso tudo lhe causara
desumana confusão,
como rimas alteradas
sem que se saiba a razão;
nas quais uma identidade
já não encontra vontade
de só ser imitação.
Assim é o fim de Film,
com o ator em desespero,
porque jamais conseguiu
sobrepujar o entrevero
que o mero olhar exigia,
como um atento vigia
a controlar com esmero.
O olho que pisca no início
reaparece no fim.
O espectador olha o olho
como um voyeur bem ruim,
pois não supera a ameaça
que por inteiro o devassa,
furando-o como um cupim.
Aqui termina, leitor,
a narrativa intrigante
dessa parceria insólita
que não seguiu adiante,
mas deixou, sem ironia,
um filme-filosofia
com seu roteiro marcante.
Muitas interpretações
haverão de aparecer
sobre filme tão complexo
que aqui busquei descrever.
O ser humano persiste
em fazer, com dedo em riste,
seu argumento vencer.
Mas um filme como Film
não se abandona tão fácil:
pede sempre um comentári
que o liberte e desenlace-o
de alguns mistérios que tem,
tratando-o como convém,
sem excesso e sem posfácio.
É notório que no filme
Buster Keaton é objeto:
perseguido pela câmera
que persegue o seu projeto
de nunca deixar-se ver,
pronto a desaparecer
aos poucos e por completo.
Seu olhar é desfocado,
com bem pouca limpidez.
Mas o olhar que vem da câmera
mostra ser de outro jaez.
Por isso assustava tanto
e causava tanto espanto
com sua enorme avidez.
Samuel Beckett nos mostra
não ser possível fugir
do olhar do outro e de si mesmo:
o olho quer interferir
em toda a nossa existência,
sendo imagem e potência
que sempre vai invadir
e oprimir a percepção
que nos faz, no entanto, humanos.
Nada se pode fazer
para escapar aos enganos
de ser percebido assim,
“com o outro ao redor de mim”,
ciente dos seus arcanos.
O cinema é simulacro
– e igualmente a realidade.
Que o diga Dziga Vertov,
que, com profunda acuidade,
o cine-olho arquitetou,
e a verdade questionou
com muita emotividade.
Um diretor seminal
que nos ensina a pensar
o que é representação.
A imagem quer enganar?
Ou será tal como a vida,
que envolve, mas intimida
quem a tenta decifrar?
Ou o cinema será
constante metalinguagem,
cujo maior objetivo
é o da produção da imagem,
já que tudo nos engana
e a certeza só profana?
Seria essa a mensagem?
Em Film se vê Buster Keaton
aniquilar cada olhar
– até de Deus, se preciso.
Só assim pensa alcançar
a devida plenitude
que lhe acalma a inquietude,
para a vida dominar.
Modernamente imagino
que Film previu sem querer
um tema que com certeza
não há mais como esquecer:
falo da privacidade
que, em alta velocidade,
tende a desaparecer.
O esforço de um ser humano
De tocar tudo em segredo
não parece mais possível.
Ao chegar, chega mais cedo
uma forma de observá-lo
que vai lhe causar abalo
e, por que não?, até medo.
Nesse sentido, eu insisto
que Film é filme de horror.
Talvez horror filosófico,
cujo enredo faz supor
que tematiza o poder,
sem com isso proscrever
o formalismo e o rigor.
Horror em tudo entranhado,
infiltrado na rotina:
de quem perdeu o sossego
e que o controle abomina.
Horror de gerar um choque
que em mãos alheias coloque
o poder da disciplina.
Assim, leitor, me despeço
desse cinema-problema,
ou melhor, dessa película
que é em si mesma um emblema
de um certo tipo de abismo
a revelar um truísmo
que mais parece um dilema:
como fazer para olhar?
De fato, é nessa questão
que ainda agora me centro.
Ficar em exposição,
tornar-se “celebridade”,
buscar visibilidade,
só aumenta a lotação!
Graças a você, leitor,
transmiti todo o conjunto
daquilo que pretendia
transformar no meu assunto:
de como um breve convívio
redundou num filme incrível
(e eu ainda me pergunto…).
Um filme curto e certeiro
como (espero) esse cordel
no qual contei o que olhei,
não podendo ser fiel
– pois é lição aprendida:
um filme iguala uma vida
ao final do carretel.