Já foram feitos 156 filmes, 120 curtas, 20 novelas de TV, 19 séries televisivas e 600 histórias em quadrinhos sobre bebedores de sangue IMAGEM: CENA DO FILME NOSFERATU, UMA SINFONIA DO HORROR, DIRIGIDO POR FRIEDRICH G. W. MURNAU_ALEMANHA, 1922_PRANA FILM
Caninos na carótida
Ou os pesadelos mudaram ou a realidade os ultrapassou. Hoje os vampiros parecem encantadoramente datados. Surgem à distância e podemos até encará-los com afeto
Walnice Nogueira Galvão | Edição 18, Março 2008
A passagem de Roman Polanski pelo Brasil, por ocasião do festival de seus filmes, teve o mérito de retirar da obscuridade esses seres tão injustiçados, os vampiros. A Dança dos Vampiros, de 1967, exibido na mostra, dialoga com uma considerável tradição cinematográfica, que se alçou ao patamar de gênero autônomo, ainda que pop. Dados atuais computam 156 filmes, 120 curtas, 20 novelas de televisão, 19 séries televisivas e 600 histórias em quadrinhos – e faltam estatísticas para os videogames. O gênero é responsável pelo surgimento de um bestiário e de uma iconografia.
Brotados do terror atávico que os mortos suscitam nos vivos, sabe-se que as religiões e os ritos se encarniçam em esconjurá-los para que permaneçam em seu lugar e dele não saiam, deixando-nos em paz. O medo básico é o de que eles voltem: alma do outro mundo em francês é revenant, ou aquele que volta. E “alma penada” é a que cumpre pena de vagar pelo mundo dos vivos, em vez de ficar bem quietinha onde lhe compete. Não é outro o sentido do Dia dos Mortos, do Halloween, das celebrações de defuntos, das cerimônias de sepultamento, tão importantes em qualquer sociedade.
Entes como esses, antes de chegar ao cinema, provêm da literatura – do romance gótico e do romantismo, que explorou a face noturna da psique, deleitando-se tanto no decadentismo quanto no satanismo – e em alguns casos até do folclore. Há seres sobrenaturais dos dois lados. Do lado do bem, das luzes, da esfera solar: fadas, duendes protetores, elfos, Papai Noel. Do lado do mal, das trevas, da esfera lunar: lobisomens, fantasmas, assombrações, avantesmas. Os vampiros, pertencentes à tribo dos mortos-vivos, constituem, juntamente com Frankenstein e com o Médico/Monstro, os três arquétipos principais.
Não por acaso, o protagonista de cada um dos três livros fundadores é um cientista: o professor Van Helsing, o Dr. Frankenstein e o Dr. Jekyll. E sempre implicam um esquema esquizofrênico, de duplicação entre duas pessoas, ou de doppelgänger. Basta atentar para as relações entre o professor e seu assistente em Drácula, o médico e seu xará em Frankenstein, o outro médico e o monstro em que se transforma.
Frankenstein, que nasceu da inspiração de Mary Shelley no livro homônimo, de 1818, é um ser humano criado em laboratório, a partir da montagem malfeita de pedaços de cadáveres. De certo modo, é precursor do transplante de órgãos e da engenharia genética, bem como da plastificação de corpos para estudos de anatomia – agora exibidos em galerias de arte. Implica a usurpação de uma prerrogativa de Deus, até então o único Criador. Concorre para isso o pressentimento de que as forças da natureza liberadas pela Revolução Industrial, da qual o livro é contemporâneo e conterrâneo, podem, como o Gênio em As Mil e uma Noites, atender a todos os desejos dos amos, mas nunca mais regressar à garrafa, uma vez destampada.
Estudo da dupla personalidade, O Médico e o Monstro, que já foi refilmado inúmeras vezes, se origina de um romance de Robert Louis Stevenson, de 1886. O médico fabrica e bebe uma poção que o transforma no oposto, numa de suas experiências científicas. Oriundo da época vitoriana, quando imperava o puritanismo, ele ilustra, na cisão entre as duas pessoas – um filantropo e um assassino -, a dificuldade de integrar numa só personalidade as forças recalcadas do instinto, como a sexualidade e a agressividade. É o esquema dos contos de fada, em que convivem uma mãe boa e uma madrasta má, duplicação que a criança opera por não poder aceitar que ambas sejam aspectos complementares da mesma pessoa: a mãe que alimenta e afaga, a madrasta que priva e castiga. Ou dos mitos de irmãos inimigos, um bom e outro mau, como Caim e Abel. Observa-se nesse romance, como na saga de Frankenstein, o temor aos desenvolvimentos da ciência e da tecnologia.
O primeiro Frankenstein do cinema, de 1931, tem como protagonista Boris Karloff, numa caracterização a tal ponto notável que influenciaria toda a seqüência. Nas histórias em quadrinhos prevalece, perfeitamente reconhecível, seu fenótipo. Em qualquer filme de monstro, lá está ele, mesmo que com outro nome e em entrecho alheio, como o mordomo de A Família Addams (dirigido por Barry Sonnenfeld, em 1991): estatura de gigante, cabeçorra e testa ainda maior, olhos esgazeados, cicatriz de costura riscando a testa em linha paralela à do cabelo, com parafusos e porcas de metal atravessando o pescoço de lado a lado, tudo isso vestígios da montagem de que resulta. Atores extraordinários, como Robert De Niro em Frankenstein de Mary Shelley (de 1994, dirigido por Kenneth Branagh), teriam o prazer de interpretá-lo.
Para vampiros, o livro de base é Drácula, do irlandês Bram Stoker (1897). No filme de mesmo título, de 1931, a cara de Bela Lugosi no papel do protagonista ficou igualmente impregnada em toda a produção posterior. Ele quase não fala, mas sua máscara é notavelmente expressiva: sobre o fundo branco, uma boca de lábios finos enegrecidos pelo batom, olhos escuros que brilham malevolamente na cercadura também negra, a calota de cabelo cor de azeviche alisado para trás com brilhantina. Quase sempre as reedições mesmo recentes trazem Bela Lugosi na capa.
Quando até um seriado juvenil como Buffy, a Caça-Vampiros passa há anos na televisão, ninguém mais ignora as características dos vampiros. Dormem de dia num esquife e perambulam à noite, já que a luz do sol lhes é nefasta. São imortais, a menos que tenham o coração trespassado por uma estaca de madeira. Podem ser afugentados por alho, cruzes e água benta. Sua imagem não se reflete nos espelhos. Ostentam caninos hipertrofiados, de rigor para o close nas cenas em que mergulham na carótida das vítimas. Infectam os incautos e ao sugar-lhes o sangue passam adiante sua condição. Metamorfoseiam-se em morcegos hematófagos que foram fonte de inspiração para a criação dos vampiros humanos.
Não faltou uma interpretação materialista, que neles vê simbolizada a superexploração dos servos pelos senhores feudais. E um modelo histórico no príncipe Vlad, o Empalador, da Romênia do século XV, de alcunha Drácula, ou O Demônio, imortalizado por uma gravura em que se banqueteia à vista dos coitados que mandou empalar. Vlad reinava sobre a província da Valáquia, posteriormente incorporada à Transilvânia, tradicional berço de vampiros literários e cinematográficos.
Grandes cineastas, experimentando a mão, como Francis Ford Coppola em Drácula de Bram Stoker (1992), ou Werner Herzog, dourariam periodicamente os brasões de um gênero menor. Afora os filmes de concepção mais tradicional, sem maior graça, resultariam desdobramentos bem interessantes, e que se beneficiaram sobretudo de alguns diretores inventivos. Um desses desdobramentos explora a crise existencial, outro o erotismo e ainda outro a paródia.
Dois filmes ilustram o primeiro. Em Entrevista com o Vampiro (dirigido por Neil Jordan, em 1994), Brad Pitt, vampiro, mas do lado do bem, perde seu tempo e sua lábia tentando convencer Tom Cruise a substituir o sangue humano por sangue animal. E em Fome de Viver (Tony Scott, 1983), Catherine Deneuve e David Bowie, com todo o seu charme e beleza, vivem vampiros entediados e altamente conscientes, fadados a alimentar seu vício pela eternidade.
Os que carregam nos acentos sexuais chegam a resultados bem curiosos. Um deles é Rosas de Sangue (1960), de Roger Vadim, cujo título original, Et Mourir de Plaisir, dava melhor idéia de suas más intenções. Outro, o de Werner Herzog, Nosferatu, o Vampiro da Noite (1979), assim intitulado em homenagem ao ilustre antecessor compatriota, abriu oportunidade para que o grande Klaus Kinski desse um show de interpretação, especialmente quando assediava a beleza vulnerável
de Isabelle Adjani.
A paródia viria a ser inevitável, tal a carga de terror e de melodrama, a exigir algum grau de catarse. Entre outros, Mel Brooks dedicaria sua verve farsesca a Drácula, Morto mas Feliz (1995). E é aqui que se inscreve A Dança dos Vampiros, derivando seu interesse do fato de ser visualmente belíssimo, graças a uma notável direção de arte, e ter o próprio Roman Polanski como protagonista. Sendo uma paródia, permite ao diretor o desmantelamento dos clichês do gênero, havendo até um vampiro gay. E o final constitui a piada maior: o desastrado professor, à caça desses seres, rapta do castelo duas pessoas infectadas, ou dois novos vampiros, não mais trancafiados mas soltos no mundo por suas próprias mãos. Ou seja, fica insinuado o futuro de um planeta habitado só por vampiros.
Um pouco de exagero, e seria feito um filme que mostra vários deles ao mesmo tempo. É o que se vê em Van Helsing – O Caçador de Monstros (de Stephen Sommers, 2004), que junta Drácula, Lobisomem e Frankenstein. Em matéria de excesso, ninguém leva a palma a Robert Rodríguez, em parceria com Quentin Tarantino, de Um Drink no Inferno (1996), que se tornaria uma trilogia. É um acerto o encontro de ambos, numa espécie de estética da rapidez e do choque, com guinadas inesperadas e muito senso de humor, negro e grotesco. Tarantino apresenta-se em grande forma, no papel de um psicopata e pervertido que ouve vozes. Não só as situações propostas já são exasperadas, mas os três filmes vão enveredar por uma orgia de sangue, todo mundo sendo mordido e virando vampiro.
Não se pode falar nesses seres sem prestar homenagem à produtora inglesa Hammer, especialista em terror, sem rival nos anos de 50 a 70; a Peter Cushing, que, momento de glória, encarnou o próprio Dr. Frankenstein, o cientista que cria o monstro seu xará; e a Christopher Lee, que estrelou nada menos que dez filmes de Drácula. Depois, faria toda uma carreira falando da experiência, sobretudo em documentários para a televisão, tal sua identificação com a personagem. Sua efígie seria aproveitada em campeões de bilheteria como Guerra nas Estrelas e O Senhor dos Anéis, nos quais é ator de proeminência. Nem poderia faltar neste rol o americano Vincent Price, invulgar ator que criaria um tipo sofisticado e aristocrático, com laivos de humor, adequado a filmes de horror.
Numa das maiores fases que o cinema já conheceu, o expressionismo alemão, surgiram filmes inaugurais como O Gabinete do Dr. Caligari (1919), de Robert Wiene, Nosferatu, uma Sinfonia do Horror, de F. W. Murnau (1922), e M – O Vampiro de Düsseldorf, de Fritz Lang (1931). Neste último, o termo é usado metaforicamente: não se trata de um vampiro propriamente dito, mas de um assassino serial que estupra e mata menininhas. Na literatura, como vimos, o gênero constituíra uma resposta ficcional possível à angústia despertada pela Revolução Industrial. Sua penetração no cinema da própria Alemanha coincide com a ascensão do nazismo, com as doutrinas de eugenia e com a paranóia nutrindo fantasmagorias sobre seres impuros ou mistos (como vampiros, como Frankenstein, como o Médico/Monstro, como o formoso robô de Metropolis, de Fritz Lang, em 1927), ou seja, não-arianos. Delineiam-se no horizonte, logo depois levadas a cabo, as experiências médicas com seres humanos, tendo por objetivo intervir na programação genética, que implicariam as horripilantes práticas de mutilação e tortura do gabinete do Dr. Mengele em Auschwitz, insinuadas nesses filmes.
Ou bem os pesadelos mudaram ou bem a realidade os ultrapassou, com vantagem. O cinema, por sua vez, embrenhou-se numa escalada de violência cujo termo não se divisa. Hoje os vampiros, e outras projeções fantásticas, parecem encantadoramente datados. Surgem à distância para nós, agora, e podemos encará-los até com afeto.