ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2013
Canteiros da discórdia
Prefeitura de Niterói declara guerra às jardineiras
Renato Terra | Edição 80, Maio 2013
Às nove da manhã de uma segunda-feira de março, seu Júlio apoiou a cabeça nas grades do prédio em que trabalha no bairro de Icaraí, em Niterói. Desalentado, acompanhou com olhos perdidos os movimentos do moreno de camiseta regata que destruía, a marretadas, o cercadinho que protegia as plantas em um canteiro na calçada. As pancadas arrancavam do chão os paralelepípedos que antes formavam uma mureta com uns 10 centímetros de altura. “Recebemos uma intimação da prefeitura para retirar as proteções que cercam as jardineiras”, contou o porteiro, contrariado. Os canteiros estavam cercados havia pelo menos 22 anos, quando ele começou a trabalhar naquele edifício da rua Álvares de Azevedo.
Prédios vizinhos também haviam recebido – e ignorado – a mesma notificação num papel timbrado da Prefeitura de Niterói, expedida pelo Departamento de Fiscalização de Posturas da Secretaria Municipal de Fazenda. O documento estipulava o prazo de um dia corrido para “retirar as jardineiras que se encontram obstruindo o passeio público”. Ao final, uma ameaça em jargão jurídico: “A lavratura da presente intimação dá início à ação fiscal e o seu não atendimento implicará as sanções legais cabíveis previstas na legislação em vigor.”
Na prática, as sanções consistem em multa de 400 a 1 079 reais. A iminência da punição atemorizou o síndico do prédio em que Júlio Pereira trabalha e um biscateiro foi acionado para marretar a calçada. A mesma energia para cumprir a obrigação legal, entretanto, não foi empregada no recolhimento dos estilhaços, que ficaram espalhados pela calçada.
A guerra declarada contra as jardineiras faz parte do programa Calçada Livre, implementado pelo prefeito Rodrigo Neves, do PT, empossado em janeiro. Além de regulamentar os canteiros que adornam as calçadas, o programa pretende organizar a poda de árvores, e fiscalizar camelôs e veículos estacionados irregularmente.
A demolição das jardineiras desagradou à psicóloga Leilá Ramalho, que há 33 anos mora em Icaraí e acompanha o esforço dos moradores para manter as plantas vivas. “Antigamente não tinha cercadinho e as pessoas paravam bicicletas, carros e pisavam nos canteiros”, lembrou-se, nada saudosa. “Aos poucos, os moradores passaram a cuidar das plantas e protegê-las. Agora voltamos no tempo!”
No blog do prefeito, outros niteroienses registraram sua insatisfação. Num comentário, Rosângela Brasil especulou sobre qual seria o objetivo da medida. “A meu ver, são seguintes as hipóteses: 1) Deixar o espaço livre para que os usuários de drogas e os desocupados durmam mais confortavelmente em frente às nossas residências; 2) Criar uma armadilha para que veículos estacionem sobre as calçadas, engordando mais a indústria de multas; 3) Uma vez destruídas as calçadas pelo peso dos veículos, os moradores deverão imediatamente consertá-las. Caso não o façam, serão punidos, é claro, com multas.”
Noutro comentário, a moradora Leila Silva apontou um novo uso documentado por ela para as bordas das jardineiras. “Os paralelepípedos são usados por moradores de rua para ameaçar os pedestres. Presenciei um homem enorme correndo com dois desses atrás de um guarda municipal, afrontando-o após ter sido convidado a se retirar da calçada.” A moradora considerou a remoção da proteção dos canteiros uma ameaça à sobrevivência das plantas. “Que senso estético é esse?”
Nem todos reprovaram a medida, a julgar pelo depoimento da secretária de Urbanismo e Mobilidade Urbana de Niterói, Verena Andreatta. “A gola alta das jardineiras, com 10 ou 15 centímetros, se tornou um obstáculo”, disse ela com voz serena numa entrevista por telefone. “Recebemos várias queixas da população de que as senhoras tropeçavam e, quando caíam, se machucavam”, asseverou.
A secretária anunciou para breve a publicação de uma portaria para detalhar as novas regras, e informou que tem recebido uma série de comentários favoráveis à iniciativa. “O retorno que estamos tendo é que as pessoas se sentem livres ao andar por uma calçada sem obstáculos.”
Questionada sobre as queixas contra a iniciativa, a secretária disse que as críticas seriam ouvidas, antes de interromper a conversa por orientação do assessor de imprensa da repartição, que acompanhava a entrevista e interveio. “Não compreendi essa pergunta que você fez a ela, pode repetir?”, pediu. “De quem são as críticas?”, quis saber. Antes de devolver a palavra para a secretária, ele solicitou à reportagem que encaminhasse as críticas por escrito. No dia seguinte, respondeu: “Caro, são muitas queixas, extensas, não teria como você sintetizá-las no geral e depois nos passar um resumo com seus questionamentos?”
Uma semana após o envio da intimação oficial, a maioria dos moradores da rua Álvares de Azevedo ainda não havia obedecido às ordens e as jardineiras permaneciam intocadas. Os cacos dos paralelepípedos quebrados por aqueles que haviam acatado a solicitação da prefeitura, como o síndico do prédio de seu Júlio, foram recolhidos à noite – para não atrapalhar o tráfego, segundo a prefeitura. Mas Leilá Ramalho já começou a sentir as consequências dos novos hábitos. “Vi uma bicicleta encostada numa árvore, dentro de um canteiro da rua Coronel Moreira César, aqui perto.”