ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
Cantoria compulsória
Quer homenagear a sua rua/bairro/cidade? Eustachio!
Paula Scarpin | Edição 12, Setembro 2007
São Paulo, 10h30 da manhã, posto móvel da Polícia Militar na esquina da avenida Paes de Barros com a rua Madre de Deus. Umas quarenta pessoas acompanham com ardor cívico os derradeiros acordes do Hino Nacional, interpretado pelo Coral Rafaelis. Terminada a execução, a regente Rosana Mordenti emenda logo um segundo hino. A platéia tenta manter acesa a chama do ardor, mas percebe-se que enfrenta certa dificuldade com os versos: “Sou da Mooca/ Sou mooquense/ Amo esta região/ Meu bairro muito querido/ Estás no meu coração”.
A celebração do aniversário do bairro, no dia 17 de agosto, foi o primeiro ato cívico-melódico desde a promulgação da lei municipal 14.472, de 10 de julho de 2007, que no 12º artigo do seu 5º capítulo – “Dos hinos oficiais do município de São Paulo” – prevê a execução do Hino da Mooca “especialmente nas cerimônias e nos eventos cívicos, militares ou eclesiásticos, referentes ao bairro”. O 12º artigo vem precedido do 11º, que trata do Hino à Negritude, e é sucedido pelo 13º, que trata do Hino à Zona Leste, o qual engata no 14º, sobre o Hino de Interlagos. A Mooca não chegou a abrir concorrência para a escolha do seu hino oficial. Ele já existia desde 1995. Só não era compulsório. Contudo, se, por hipótese, não existisse, não faltariam candidatos a trovador oficial do bairro.
Rafael Luomo Cardamoni, o Raluca, era um dos mais empenhados em cantar as glórias do seu torrão paulistano. Às 8h50 ele já estava a postos, argumentando contra a implicância dos policiais que não o deixavam estacionar entre os cones de sinalização de trânsito. Grossa injustiça, já que Raluca só estava ali para entoar loas à região. Ele tentou colar no posto policial um poema de sua autoria, Esta Mooca Altaneira (“Recanto da mulher faceira/ A alegria aqui jorra como torneira”). Também não deixaram. Raluca havia trazido diversos outros manifestos de paixão pelo bairro, como As 7 Maravilhas do Bairro da Mooca e Atos e Fatos sobre a Mooca, este, pelo menos, lido para o público quando deram a palavra ao autor.
Liberato Magdalena, outro entusiasmado, não perdeu a oportunidade de cantar a sua sertaneja e Singela Homenagem ao Nosso Bairro da Mooca, cujo refrão – “A pizza é a melhor de São Paulo/ Nosso forno de lenha é mais quente” – soou aos presentes como inegável acerto. Todos os que ouviam os versos se punham a repeti-los sem parar.
O único a não aparecer na hora marcada foi justamente o autor de “Sou da Mooca/ Sou mooquense”. Passados trinta minutos do horário acordado, quando o atraso protocolar começou a perder o charme, a organizadora Ana Maria Pantaleão resolveu começar o evento mesmo sem a presença de José das Neves Eustachio, o bardo da Mooca. E não só da Mooca. Eustachio também é autor do Hino da Zona Leste, do Hino do Tatuapé – recém-aprovado – e de outros dez hinos ainda em tramitação. Eustachio é daqueles criadores que são assaltados pela musa. “A idéia vem assim, de repente. Eu vejo um gatinho, na hora já me vem na cabeça uma letra de música sobre ele”, explica. O primeiro hino, o da Zona Leste, nasceu assim, em 1995: “Eu estava numa Kombi com um amigo e comecei a refletir… A Zona Leste… é a máquina que toca São Paulo!” Dito e feito: “Zona Leste, Zona Leste/ Tens metrô, tens faculdades/ Polícia civil e militar/ Viadutos e avenidas/ E muito, muito amor pra dar”.
Aos 90 anos, completados há pouco – “a nova lei foi como um presente de aniversário” -, ele ainda bate cartão diariamente na redação do jornal A Voz do Bairro, como diretor honorário e titular da coluna “Pra Pensar”. A fama de compositor prolífico de hinos tem impedido que seu telefone fique em silêncio. Não foram só dos bairros vizinhos que passaram a chegar encomendas. “Outro dia a Associação dos Amigos de Pirituba me pediu que eu compusesse o hino deles”, conta Eustachio. O fato de ele jamais ter posto os pés naquele bairro da Zona Oeste não foi empecilho. “Me disseram que não tinha problema. Mandaram um livro com a história da região e eu compus.”
José Eustachio sempre esteve ligado à comunicação. Na juventude, foi locutor do Parque Xangai – e promoveu muitos namoros ao dedicar sucessos de Orlando Silva “à garota de vestido vermelho na roda-gigante, como prova de muito querer bem”. Veio o sucesso, e ele passou a fazer shows de humor: “Eu tinha uma do português que se apaixonou pela feijoada e não quis mais saber de bacalhau que fazia o pessoal morrer de rir”, orgulha-se.
A celebração dos 451 anos do bairro teve prosseguimento com uma hora inteira dedicada a menções honrosas – “Agradeço a presença do Paulinho da Doceira Modelo” – e discursos emocionados de quem quisesse se apropriar do microfone. O subprefeito Eduardo Odloak, que fez um esforço notável para se lembrar dos versos do hino do bairro, prestou uma merecida homenagem a José Eustachio, bem como à excelência do Coral Rafaelis, nas suas palavras, “famoso no Brasil inteiro”.
Esgotados os encômios, a multidão, com a escolta dos marronzinhos (os fiscais da Companhia de Engenharia de Trânsito), seguiu pela avenida Paes de Barros até o busto do padre José de Anchieta – que, diga-se, não consta ter sido residente do bairro. Um grupo de crianças depositaria buquês de flores ao pé da estátua. No caminho, o grande ausente Eustachio foi flagrado num ponto de ônibus, discreto e sorrateiro em suas noventa décadas de vida. É que ele tinha mais o que fazer: ia à reunião marcada com um dono de mercearia, à cata de anúncios para A Voz do Bairro.