ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
Capital polinésia ─ cinco letras
Trinta e sete anos de luta contra o diagrama em branco
Roberto Kaz | Edição 9, Junho 2007
Alvaro Ancelmo Cardoso de Magalhães, 56 anos, é inspetor de polícia aposentado. No dia em que se aposentou, jogou fora a farda e vestiu o uniforme com o qual gostaria de ir para o paraíso: sandália havaiana, calça jeans, pochete e camisa de botão aberta até o umbigo. Há um tipo de leitor – vamos chamá-lo de Fulano, para facilitar – que não imagina a importância que Magalhães tem na sua vida (ou na vida de alguém que lhe é próximo). Magalhães está ali, embaixo do braço, quando Fulano vai à praia, no domingo. Está presente nas páginas do jornal que Fulano recebe em casa. Acompanhou-o naquela longa viagem de ônibus. Soube acalmá-lo na fila do banco, no aeroporto, na sala de espera do dentista. Magalhães foi duro: impôs a Fulano desafios imensos. Alguns ele soube superar. Outros o derrotaram. A salvação, felizmente, estava na última página.
Alvaro de Magalhães cria palavras cruzadas para a Coquetel, a empresa que, na prática, detém o monopólio das palavras cruzadas no Brasil. A cada mês, ela imprime 56 títulos, que somam 1,5 milhão de exemplares, dez vezes mais do que a sua principal concorrente, A Recreativa. Além disso, em troca de espaço publicitário, a Coquetel cede diagramas para 610 publicações de todo o país.
As revistas são divididas em cinco níveis: infantil, mais fácil, fácil, médio e difícil. Para públicos seletos, há publicações temáticas: Coquetel Cinema, para os cinéfilos; Crosswords, para os que querem salpicar a conversa com palavras em inglês; Coquetel Bíblico, útil a quem deseja impressionar os irmãos evangélicos. Em média, cada revista conta com 25 diagramas, quarenta palavras por diagrama. São cerca de mil palavras por edição. “Pato” vai direto para o nível fácil. “Patogênico” cabe melhor no difícil. “Búfalo” costuma aparecer nos desafios médios. Já seu nome científico, Bubalus bubalis, só pode ser achado num diagrama difícil. Algumas palavras são polivalentes. “Futebol”, no nível fácil, é definido como “o esporte de Ronaldinho”. No difícil, é “o esporte de Puskas”. “Lula”, para os iniciantes, é “o presidente do Brasil”. Para os avançados, “o alimento preferido do golfinho”.
Até ficar pronta, cada revista passa por uma rigorosa linha de montagem. Primeiro, atua o criador, responsável pela escolha das palavras e o arranjo no diagrama. A segunda etapa diz respeito ao redator. Diante das palavras já diagramadas, cabe a ele formular as perguntas. Palavras cruzadas são construídas de trás para frente: primeiro as respostas, depois as perguntas. Aí, entra em ação o editor, cuja função consiste em identificar palavras consideradas fracas (por exemplo, aquelas terminadas em particípio, como “atrasada”), feias (as que são repletas de consoantes, como “Schwarzenegger”) ou inócuas (que não acrescentam nada ao leitor, como o nome de um rio do Cazaquistão). No fim da linha, senta-se o técnico de qualidade. A ele compete testar obsessivamente os passatempos. Se ele não resolver, ninguém resolverá.
Nos últimos tempos, esse processo artesanal vem sendo substituído por programas de computador. A equipe da Coquetel responsável pelas palavras cruzadas – são trinta funcionários fixos e trinta colaboradores externos – vem minguando ano a ano. Hoje, dois terços dos diagramas, sobretudo os de nível fácil e médio, são compostos eletronicamente. O processo só não foi totalmente informatizado porque “por trás do software tem que haver talento”, como diz Henrique Ramos, diretor editorial da empresa. É onde entram figuras como Alvaro de Magalhães. Dos seus 56 anos de vida, ele passou 37 confeccionando diagramas. A redatora Maristela de Souza Bezerra Ramos diz que ele “é a estrela do time, dono de um talento nato para cruzar palavras”. E conclui, exaltada: “A criação é uma arte”.
Para chegar ao ateliê de Magalhães, é preciso atravessar uma galeria escura que abriga a Eletrônica Lopes e Rodrigues, a Eletrônica Joel, a Eletrônica Oxford, o bar do Márcio (carne assada e macarrão a 3,50 reais) e a barbearia do seu Ari (6 reais o corte). Chega-se então ao edifício Irapuã. Magalhães mora no quarto andar, num quarto-e-sala alugado. O trilho do trem da Central passa rente à sua janela.
Magalhães trabalha na sala de jantar. Há dois computadores (um dos quais não funciona), dois ventiladores, um pequeno aquário com quinze peixes e duas minilagostas, uma bicicleta Monark enferrujada e seis fotos 3 x 4 dos netos. Um aparelho de som toca pagodes do grupo Sorriso Maroto. Ao lado do teclado, há um cinzeiro repleto de guimbas – Magalhães fuma três maços de cigarro Le Grand por dia, com piteira: “É o mais barato, oitenta centavos o pacote”. Para rebater a nicotina, toma café frio. “O gosto é horroroso, para evitar que eu tome muito.” A bebida fica numa xícara coberta com papel alumínio. Vale para o dia inteiro. Se o telefone toca, Magalhães não atende. Se toca muito, tira do gancho. Não gosta de ser atrapalhado.
Não existe um só livro na sala. Quando precisa de novas palavras, Magalhães procura nas apostilas do filho que prestou concurso para o Exército. Se tem necessidade de atualidades, lê a revista Seleções do Reader’s Digest. Jornal, nem pensar: “Se eu fosse me basear no que aparece na imprensa, meu diagrama ficaria cheio de termos como ‘corrupção’, ‘violência’, ‘telefone celular’. Seria um absurdo. Palavra cruzada tem que ser uma válvula de escape. Imagina se o cara está preso, ganha uma revista e se depara com ‘alvará’, ‘mandado’, ‘juiz'”.
Magalhães faz noventa diagramas por mês, que lhe rendem 1 500 reais. Para atender a demanda, usa um software cujo nome esconde como segredo de Estado: “Ele facilita as coisas, mas acaba com o romantismo que havia no tempo do trabalho artesanal”. Assim que o programa é aberto, surge um diagrama de dez células por quinze, o tamanho convencional. Cabe a Magalhães determinar as células nas quais aparecerão os futuros enunciados: “Carnívoro que ri”, “Animal da Lapônia”, “Anjo da primeira hierarquia”, por exemplo. O computador se encarrega de propor as palavras, pré-selecionadas num banco montado pelo próprio Magalhães. Surge na tela: “relaxamento”, “strogonoff”, “tenentismo”, “motocross”, “Zaratustra” e “rider“. Magalhães troca “rider” por “rédea” – é o elemento humano por trás do software. Quanto às outras, acata.
Em 2006, Magalhães gastou três meses preparando o que considera sua obra-prima: a maior palavra cruzada do mundo. Eram 16 mil células e 3 200 perguntas, cem vezes mais do que um diagrama normal. O gigantismo permitiu ousadias. Magalhães escolheu versos de Vinicius de Moraes. Deixou-se tomar por orgulho patriótico e incluiu os primeiros versos do Hino Nacional e da “Canção do exílio” (“Minha terra tem palmeiras.”). Durante os dez dias em que ficou exposto na Bienal do Livro de São Paulo, o diagrama monumental foi preenchido por centenas de pessoas. Entre elas, o então governador Geraldo Alckmin e o professor-celebridade Pasquale Cipro Neto. Como de hábito, o nome de Magalhães não apareceu nos créditos. O político e o docente foram apenas mais dois Fulanos na vida de um dos únicos homens do ocidente capazes de responder, sem hesitar, “monarquia da Polinésia cuja capital é Nuku’alofa”. (Cinco letras.)