Meu pai se levanta. Ele passa por mim em silêncio. Tenho agora uma lembrança auditiva: não há nenhum barulho. O homem alto não me olha, mas vejo que ele está lacrimejando. Quando estendo o braço para tocá-lo, a porta do banheiro já se fechou FOTO: SAGNIK GANGOPADHYAY
Carta ao governador
Os noventa minutos do jogo entre Brasil e Itália, no estádio do Sarriá em 1982, foram os únicos em que de fato tive um pai. Precisamos só de um empate, meu filho, mas acho que vai ser 4 a 1
Ricardo Lísias | Edição 70, Julho 2012
Em 1982, tínhamos apenas um sofá. Como meu pai adorava assistir à televisão deitado, sobrava pouquíssimo espaço. Durante a semana, eu não o via. Aos sábados, ele acordava só depois do almoço. Percebo agora que não tenho na lembrança nenhuma imagem do meu pai tomando café da manhã. Ele se esticava no sofá por volta das 14 horas e saía apenas quando eu já estava dormindo.
Minha irmã é um pouco mais velha e acho que tinha autorização para brincar no quintal. Meu irmãozinho gostava de andar de um lado para outro, mas por algum motivo também não o tenho na memória cruzando a sala. Aquele era território meu e do meu pai.
Armazenei na imaginação diversas fotografias da minha primeira casa, mas curiosamente meus irmãos aparecem apenas no quintal, ou uma vez na rua quando o Opala vermelho morreu. Só agora, para fazer esse texto, descobri por que minha irmã chorou tanto naquele dia: Acho que eu estava indo para a primeira festa da minha vida, Ricardo, e aquela banheira não saía do lugar. Mas não lembro direito.
Meu pai se esticava no sofá e eu sentava na ponta. Se a imagem na televisão pendesse para o cinza-escuro, eu não enxergava direito. Não faz mal, respondi uma vez. Naquele dia, tinha aprendido um conjunto de sílabas na escola e estava treinando baixinho os sons. Acho que ele não me ouve. Por isso, coloco o caderninho de caligrafia no canto do sofá e encosto a perna na planta daqueles pés imensos. Senti alguma segurança com isso. Acho que fui dormir um pouco mais tarde: eram sílabas complicadas.
No dia do jogo entre o Brasil e a Itália na Copa do Mundo de 1982, meu pai não se deitou. Achei muito esquisito. Ele não precisou aumentar o volume da televisão: eu estava de férias e já tinha aprendido várias palavras inteiras. Como ficou sentado, precisei esticar o braço esquerdo para sentir o tronco dele. Quando cruzou a perna, na hora que chegou a pipoca, nossas duas coxas se encostaram. Hoje vai ser um dia inesquecível na sua vida, filho.
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Olha o Sócrates, meu pai exclamou quando mostravam a Seleção na tela. Pode esperar um massacre. Eu estava vestindo uma camiseta da Democracia Corintiana. Ele nunca me explicou direito do que se tratava, mas além do uniforme tinha me trazido uma vez um pôster. Nenhum time fez isso!
Sócrates, dali a dois anos, apoiaria as Diretas Já. Mas política nunca interessou meu pai. Na última entrevista que vi do doutor, ele falou uma frase que nunca vou esquecer: Para o Ataliba, você não explica nada, você o abraça. Foi uma coisa assim.
A pipoca acabou rápido. Naquele dia, ele quis dividir algumas coisas comigo. Os noventa minutos do jogo entre Brasil e Itália, no estádio espanhol do Sarriá em 1982, foram os únicos em que de fato tive um pai. Precisamos só de um empate, meu filho, mas acho que vai ser 4 a 1. Tentei encostar a mão esquerda naquele braço enorme, mas ele se afastou. Hoje ele não está querendo se deitar: vamos ver o jogo sentados um do lado do outro. Perguntei se Chulapa é o sobrenome do Serginho, que meu pai adorava. Ele não respondeu.
O Ataliba, você abraça.
Lembro-me da televisão enorme. Como tinha o nome sujo, meu pai não podia comprar nada à prestação. Quem a trouxe foi minha avó. Tem garantia até a próxima Copa, ele me disse quando elogiei a imagem. Meu pai gostava de assistir a todo tipo de programa, menos os telejornais. O comício pelas Diretas Já, na Praça da Sé, não passou direito, não perdi nada. Mas quando Tancredo morreu, queria ter assistido ao Jornal Nacional. O anúncio da morte de Carlos Drummond de Andrade, com o apresentador em pé, eu vi.
Minha tia, irmã da minha mãe, quis nos levar para o comício, mas meu avô não achou a ideia boa. Você não viu como seu primo saiu da cadeia? Tudo pode mudar de uma hora para outra. Quando Paolo Rossi fez o primeiro gol, meu pai ergueu o punho como se estivesse comemorando. Eu não falei, vai ser 4 a 1. Na hora em que se acalmou, colocou a mão no meu joelho. Se me concentrar, acho que ainda consigo sentir o peso dos dedos dele na minha pele. Coitados, eles têm esperança. Nesse momento, apareceu o rosto de Telê Santana na tela. Meu pai, então, falou outra frase que não esqueço: Esse cara tem honra.
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A mãe do meu pai morreu em 11 de setembro de 2001. Bin Laden tinha acabado de derrubar as Torres Gêmeas quando o telefone tocou. Eu estava com os olhos pregados na tela da CNN. Não gosto de televisão, mas adoro geopolítica. Há alguns dias, o governo sírio assassinou noventa pessoas, incluindo muitas crianças, e o Brasil declarou que não vai expulsar o embaixador.
Minha irmã, que naquela noite tinha dado plantão no hospital onde minha avó ficara internada, avisou sem muita surpresa. A gente já esperava. Dois meses antes, eu estava na Austrália e recebi um e-mail dela: Ricardo, acho que a vó Julia não tem mais muito tempo. É melhor eu voltar? Não precisa. Fiquei o resto de julho em Sydney e cheguei a conhecer uma parte do deserto.Dizem que o caminho até Alice Springs é cheio de psicopatas. Estive no Marco Zero, em Nova York, exatamente 28 dias antes de sofrer um colapso emocional e me ver morto.
Segundo o atestado de óbito, minha avó morreu dezoito minutos depois de Bin Laden derrubar as Torres Gêmeas. Eu tinha passado dez anos sem ver meu pai. No velório, ele parecia meio curvado. Aquela barriga não existia na Copa do Mundo de 1982. As pálpebras dele pareciam frouxas. Vai ser 4 a 1, meu filho. Fiquei de um lado e ele acenou do outro canto do salão. Não conversamos. Eu já tinha um livro publicado, mas ele não sabe até hoje. A Liga do Norte atacaria Cabul em algumas horas.
Depois, em 2006, vi meu pai pela última vez. Não sei onde ele mora atualmente. Acho que tenho uma outra irmã. Ele com toda a certeza nunca ouviu falar da revista piauí. Eu estava afoito porque embarcaria para Buenos Aires naquela noite mesmo e precisava de uma mochila nova. Entrei correndo no metrô e ele estava sentado em frente à porta. Meu pai franziu a testa e abriu bem os olhos. Levei um susto e voltei para trás. A campainha tocou quando ele segurou no apoio para levantar. Fiquei na plataforma e o trem saiu. Não gostei muito do metrô de Nova York, mas o de Berlim é lindo. Decidi tomar o trem seguinte do outro lado da estação. Se o senhor tiver ficado me esperando naquele dia, pai, desculpe.
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O capitão Sócrates empatou logo depois. Meu pai comemorou o gol em pé. Eu não te falei, filho. Como não sabia o que fazer, também levantei. Até hoje minha irmã não sabe dizer onde estava na hora do jogo. Meu irmão diz que só veio para o sofá comigo quando ganhamos um videogame.
Nunca deu certo. Primeiro, as cores muito fortes da tela me incomodavam. Minha irmã não dava bola para os bonequinhos se mexendo e o Alexandre detestava os jogos de tiro. Tentamos então os que imitavam esportes como tênis e futebol, mas eu não tinha muita paciência para as longuíssimas disputas. Meu irmão logo desenvolveu certa habilidade para resistir. Ganhar não lhe interessava, o importante era ficar um tempão me segurando ali. Uns poucos meses depois chegou o piano e desistimos do tal Atari. Os videogames mais modernos não chegaram em casa: meus pais já estavam estremecidos e não comprariam um presente desses. A nova geração de escritores colocou na cabeça que videogames são uma forma de arte.
Telê Santana, sim, sabe o que é jogar futebol. Imagina se ele escalaria um bandido, meu pai me explicou quando Paolo Rossi apareceu na tela. Bem que ele podia vir para o Timão. Não entendi nada. Resolvi não perguntar porque ele tinha outra vez colocado a mão direita na minha perna. Se virar para falar comigo, talvez mude a posição do corpo.
Tive a minha primeira aula de inglês justamente quando o Brasil não sabia se Tancredo Neves ainda estava vivo. Meu avô me deu de presente um semestre inteiro. Voltei para casa com todo o material e apontei o lápis com o logotipo da escola para fazer a tarefa. Meu pai chegava todo dia às sete e meia da noite. Comecei a fazer a lição quando ouvi um barulho no trinco. Ele passou direto e não me perguntou nada.
Acho que meu pai ficou com vergonha quando Paolo Rossi fez o segundo gol. Vai para lá que eu quero deitar. Sentei-me no canto do sofá e vi que ele tinha encostado os pés no meu cotovelo. Vou ficar quietinho aqui.
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Antônio Britto, que se parecia muito com o namorado metido da minha tia, anunciou a morte de Tancredo Neves mais ou menos às dez e meia da noite. Eu estava morrendo de sono, mas continuei na mesa da sala com o meu caderno de inglês. Depois de nove aulas, já sabia algumas palavras. Pelas minhas contas, tinha memorizado 21, sete por semana! Minha ideia era aprender um termo em inglês por dia. Quando as primeiras regras gramaticais apareceram, mudei o cronograma.
Minha mãe pediu para trocar o canal, mas meu pai insistiu e deixou a televisão no único que não transmitia direto do Instituto do Coração. Ele detestava telejornais e preferiu continuar vendo um filme qualquer. É lógico que mataram o cara: ele foi besta de querer ser presidente. O Ataliba a gente abraça.
Certas coisas não podem ser perdoadas: elas ultrapassam um limite. Não entendo por que o senhor não mudou de canal. De vez em quando, dou aulas de inglês, mas gosto mesmo é de português para estrangeiros. Cobro caro, mas os caras pagam e aí posso viajar. Faz seis anos que vi o senhor no metrô. Eu estava indo para Buenos Aires. Não sei se consegui continuar aprendendo uma palavra por dia. Mas fui para a Austrália e conheci toda a Europa. Publiquei cinco livros. No ano passado, a família fez uma eleição para ver se eu precisava ser internado. Nada de mais, uma casa de repouso. É assim que chamam os hospícios chiques. Mas o senhor não votou. No final, não precisou. Eu não sabia que em 1987 o senhor iria se matricular no supletivo. Estou morando em um galpão nos fundos de uma casa, mas na semana que vem vou mudar para um apartamento de novo. Quatro endereços em um ano, pai! Fica perto da rua dos travestis. Não tenho mais os caderninhos de inglês. Fui para Nova York. O metrô de lá é legal. No pior dia da minha vida, o senhor não apareceu. Não faz mal, ninguém me ajudou mesmo. Talvez até achasse interessante o hospício chique. Vou confessar: como tinha visto o senhor no metrô seis anos antes, achei que talvez a gente se encontrasse. Olhei em todas as plataformas. Fiquei uma hora chorando sem nenhum controle enquanto vagava pela estação Consolação do metrô de São Paulo às 14 horas e ninguém falou nada. Aconteceu alguma coisa na minha cabeça, pai. Como se fosse um blecaute. Quantas vezes minha imagem foi captada pelas câmeras? Deve ter sido 4 a 1: o menino de ouro da família não vai para a casa de repouso. O hospício chique. Teve uma época que eu achava o senhor meio burro, pai. Mas eu que tive um blecaute na cabeça. Bem feito.
Excelentíssimo senhor governador Geraldo Alckmin, gostaria de saber por que nenhum funcionário do metrô de São Paulo me ajudou quando tive sérios problemas na estação Consolação, no dia 5 de agosto de 2011. Minha imagem foi captada pelas câmeras diversas vezes. Ninguém fez nada. Ninguém! Por favor, envie a resposta para o meu e-mail: rlisias@yahoo.com.br.
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Não lembro o que fizemos no intervalo. Quando começou o segundo tempo, meu pai estava completamente esticado no sofá, com os pés encostados em mim. Não vou me mexer. O mundo está em silêncio. Um colapso emocional é muito barulhento. Parece que havia um trem dentro da minha cabeça. Ficou tudo escuro e as plataformas do metrô se inclinaram. Se andar devagarzinho, não vou cair na via. Será que estou dormindo?
Talvez o silêncio seja o único traço elegante da personalidade do meu pai. Ele fala muito pouco. O Ataliba, a gente abraça. Quando Falcão empatou o jogo, meu pai sorriu. Um golaço. Olhei para ele e pensei em perguntar o que poderia acontecer. O empate favorece o Brasil, o locutor se adiantou. Fiquei algum tempo calado e quis, então, saber por quê. A Itália quase fez um gol. Meu pai estava esticado no sofá e me deu uma pernada. Cala a boca, quero ouvir a televisão.
Para mim, a década de 80 começou agora, com o antebraço latejando. Depois, Cazuza morreu na televisão. O Fantástico ficou ressabiado em falar do verão da lata. Não sei quantos quilos de maconha vieram do mar, em 1988. Àquela altura, meu pai já tinha ido embora de casa. Fiquei quinze anos assistindo aos telejornais: não me lembro da Guerra das Malvinas, mas tenho na memória, como todo mundo da minha geração, uma imagem da Praça da Paz Celestial.
Também não me esqueço dos fiscais do Sarney. Minha mãe e meu avô tinham medo de que a ditadura voltasse. Eles fantasiam até hoje. Mesmo assim, explicaram-me que aquele Collor era um farsante. Nunca tive mesada, mas meu avô pagou oito anos de curso de inglês. Gosto muito de marcos históricos: ejaculei pela primeira vez muito tardiamente, no mesmo mês em que Zélia Cardoso de Mello confiscou as poupanças. Meu pai não tinha nada e ficou rindo. Acabo de chegar para passar o domingo com ele: agora quero ver como vão te pagar tanta coisa. O pessoal da sua mãe te trata como um reizinho.
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O terceiro gol de Paolo Rossi é uma lembrança nebulosa. Um bandido, meu pai repetiu. Com medo de levar outra pernada, afastei-me ainda mais e fiquei colado à parede. Um pouquinho antes do final, o Brasil cabeceia e o fantástico Dino Zoff, o goleiro da Itália, defende. O jogo acaba.
Meu pai se levanta. Como não sei o que dizer, levanto também. Ele passa por mim em silêncio. Tenho agora uma lembrança auditiva: não há nenhum barulho, o que teria que me deixar muito calmo. O homem alto não me olha, mas mesmo assim vejo que ele está lacrimejando. Quando estendo o braço para tocá-lo, a porta do banheiro já se fechou. Essa foi a única vez em que vi esse homem chorando. No enterro da vó Julia, estávamos em lados opostos do salão, mas fiquei olhando.
Saí para a rua e não encontrei ninguém. Voltei para pegar o cachorro e demos duas voltas completas no quarteirão. Se o senhor ficou com vergonha, tudo bem: no ano passado, quase fui parar em um hospício chique. Mas a família decidiu que não precisava. Ao menos por enquanto. Quando acontece uma vez, a gente precisa ficar sob observação.
Continuei na calçada pensando se eu e o cachorro devíamos voltar para dentro. Zof foi o nome do meu primeiro gato. Então, o vizinho da casa da frente apareceu, aparentemente sem nenhum incômodo por causa do jogo, e propôs que eu pegasse a minha bola para brincarmos de gol a gol. Cada um defenderia o próprio portão e tentaria acertar o do outro. Um chute por vez, ganha quem fizer mil primeiro.