Cabeças cortadas: “Na madrugada fria de Vila Rica, quando não tinha viv’alma na rua, arranquei a cabeça do mastro porque sabia que vocês inventariam um Tiradentes que não existiu” CRÉDITO: ILÉA FERRAZ_2021
Carta às cabeças brasileiras do futuro
Esta foi a minha revolução, e eu estava, finalmente, em paz
Eliana Alves Cruz | Edição 182, Novembro 2021
Portanto condemnam o réo Joaquim José da Silva Xavier por alcunha o Tiradentes Alferes […] depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Villa Rica aonde em o lugar mais público della será pregada, em um poste alto até que o tempo a consuma.
Trecho da sentença da Alçada Régia, de 18 de abril de 1792
Aos habitantes da colônia brasileira nos anos distantes de mim e que tiverem algum interesse nesta história, devo dizer que o sangue escorreu como uma gosma escura e grossa, afinal não havia coração como bomba para fazê-lo esguichar na cor vermelha e viva. Cor de sangue. O líquido era marrom e se misturou com a terra, que logo seria lavada. Nenhum vestígio sobraria de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes Alferes.
Nenhum mesmo, pois roubei a cabeça dele e a escondi do futuro para sempre. Assisti ao enforcamento do Tiradentes sem emoções. Depois, quando dilaceraram o seu corpo, a cabeça rolou como uma bola triste, estranha, meio amarelada, desgrenhada, assustada e macabra, com um rosto desenhado no meio e a língua saindo da boca. Meses antes de sua prisão eu bem que avisara, bem que dissera a ele para parar de falar a toda a gente sobre os planos que tinham. E, quando falo de toda gente, digo comerciantes e agricultores, estudantes e iletrados, padres e putas, velhos de quem ele arrancava os dentes e toda pessoa que dele se aproximava com alguma simpatia.
Eu, caríssimos habitantes dos séculos vindouros, me chamo Prático e era um dos escravos que o Tiradentes possuía no dia em que a guarda foi à casa onde estávamos escondidos e o prendeu. Ele tinha me levado à capital, pois aqui nestes tempos em que estou, não tem senhor que se mexa sozinho, sem que um de nós lhe carregue as tralhas, abra as portas, prepare um banho, corte as unhas, faça a comida, lave as roupas, recolha e jogue nas ruas suas merdas e o seu lixo. Por isso fui com o Tiradentes. Por isso vi. Por isso fugi ardilosamente após sua morte, mas não foi por isso que recolhi sua cabeça medonha e apavorante do alto daquele poste solitário das Minas Gerais.
Vou lhes contar uma coisa: passei a observá-los. Queria saber o que tanto falavam, liam e escreviam assim que a noite caía. Achava que Joaquim José confiava em mim, e eu, lá do meu jeito, até que aprendi a gostar dele. Um gostar assim diferente, assim meio de longe e ressabiado. Eu achava que ele era – como vocês dizem? – fanfarrão. Um grandíssimo fanfarrão e falador, e gastador de dinheiro nos prostíbulos de todas as estradas em que caminhou como alferes. Ah, esse Joaquim José!…
Um dia, aproveitando que ele estava tranquilo tomando sua aguardente preferida, me enchi de coragem e lhe disse, sério: “Ajude os pretos e lhe ajudaremos. Me deixe ser inconfidente!” Joaquim José, depois de um minuto pensativo, desatou numa gargalhada incontrolável e me mandou sair para cuidar dos porcos e da horta. Decepcionado e cabisbaixo, eu fui, mas não deixei de continuar estudando em segredo e vigiando ele e aquele grupo. Sabia que a minha hora de atuar chegaria.
Tinha uma dona chamada Dorothéa, que sempre estava na casa dele escondida em horas secretas quando estava só e o chamava de Quinzinho entre gemidos, antes de lhe arrancar alguns cobres. Ele, derretido e um tanto tonto, a chamava de Tézinha e, além dos réis, a enchia de esperanças, dizendo que seria muito rica depois da “revolução”. Falava que revestiria a casa dela com mais ouro que o teto da igreja matriz e lhe daria um cortejo com “vinte escravas da Costa da Mina”. Cá com meus farrapos, eu pensava: “Que diabo de revolução!”
Eu balançava a cabeça, ria comigo mesmo e continuava a varrer o chão, que é onde deve ter os pés um sujeito preto e que ainda por cima se chama Prático. Na presença de Dorothéa meus pés ardiam, mas nem tanto. Já com aquele grupo de conspiradores que se reunia na casa quando piava a coruja, parecia que eu pisava em brasas incandescentes. Explico: Sempre que eu encontrava alguém em quem não se deve confiar, meus pés ardiam. Isso significa que eu vivia fazendo escalda-pés, unguentos, pondo os pés de molho… Não havia como caminhar meio quarteirão sem que eles ardessem muito! No final, me acostumei com o fato de estar rodeado pela falsidade e me acostumei com a dor… Até o dia em que vi a cabeça de Joaquim José tombar.
Quando vi a cabeça rolar e o rosto de todos eles… Todos aqueles a quem eu servia bebidas e tirava as capas quando entravam na casa de Joaquim José jurando lealdade. Um deles nunca esquecerei. Um tal de José Rolim. O mais rico de todos. E me lembro bem porque era padre, contrabandista e comerciante de almas. Foi por ele que aqui chegou trazida da África a preta Lucinda, uma das escravas próximas à casa de seu Joaquim José.
Eu amava ardentemente Lucinda, e ela me contou coisas terríveis sobre Rolim. Ele estava lá, levado pela coroa sádica e sedenta de vingança, para que, em meio à multidão, assistisse como ópera ao martírio de Joaquim José. Fez o sinal da cruz e voltou para a prisão. Ficou uns anos na cadeia em Portugal, mas depois retornou ao Brasil para viver sua vida, ser indenizado após a Independência e morrer idoso e decrépito 43 anos depois da queda do único que pagou com a própria vida pela “revolução” que não houve. Aquela que foi sem nunca ter sido.
Não adianta. Essas pessoas que se acham muito inteligentes não ouvem ninguém. E o senhor Joaquim Tiradentes Quinzinho José da Silva Xavier se achava realmente importante, corajoso, influente, genial… Ele não era de todo ruim, mas jamais levaria a sério a palavra de um homem como eu, calejado de conhecer os homens. Principalmente os que se julgam de bem. O boquirroto Joaquim José, como todo peixe que morde a isca, morreu pela boca, pela gula da vaidade de se achar igual aos que nunca o enxergaram ou enxergariam como igual.
Foi na missa de um domingo, numa daquelas igrejas que ofuscavam o olho de tanto ouro cobrindo as paredes, os santos, o altar, talvez até as escarradeiras, que entendi tudo. Eu estava lá no fundo, no cercado que destinavam aos negros. Um lugar apertado e quase fora da igreja, mas, por outro lado, um lugar privilegiado, pois víamos quem entrava e quem saía. Estavam parados na porta Joaquim José, o tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrade e os poetas Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Inácio José de Alvarenga Peixoto. Meus pés ardiam como sempre, mas eu quase não consegui me aguentar de dor quando chegou o xará de meu senhor, aquele a quem chamavam Joaquim Silvério dos Reis.
Estavam todos animados, saudando uns aos outros, mas emudeceram quando entrou no templo o novo governador da Capitania, seguido pelos nobres seus amigos, as senhoras deles e uma fila de pretas ricamente vestidas e com braceletes de ouro. Os dois grupos se sentaram em lados opostos da igreja. Pensei: “Essa é a verdadeira guerra.” Os ricos perderam poder para outros ricos que ficaram ainda mais ricos. No fim, eram todos endinheirados brigando por mais dinheiro e poder, e Joaquim José… não era um pobretão, mas não chegava nem pro arreio do cavalo daqueles figurões.
Horas antes de sua prisão, Joaquim José estava agoniado. Tinha sido avisado de que a Coroa já sabia de toda a conspiração. Subimos para o sótão da casa que nos hospedava, mas antes ele pediu que buscassem informações sobre como andavam as coisas. Desavisado, imprudente e pouco perspicaz como sempre, mandou que procurassem ele, o seu amigo Joaquim Silvério dos Reis. Meus pés inflamaram na hora. Chamei-o em um canto e quase implorei para que não fizesse isso. Tudo inútil. Foram até Silvério e, pouco depois, o destacamento invadia a casa.
O futuro dirá que fui preso dias antes de Joaquim José, afinal não ficaria bem para o novo herói ser preso enquanto o seu negro conseguia se livrar das garras da justiça mais injusta deste mundo. Mas nesta carta digo que eu estava lá, que escapei e assisti a tudo do lado de fora da casa, escondido, pois enquanto Joaquim José se debatia aflito, esperando notícias, falando sozinho, repassando planos e delirando com revoltas, eu procurava um local no sótão por onde poderia escapar. Quando escutei o barulho da guarda revirando tudo no andar de baixo, saí escalando tralhas e alcancei uma abertura no teto. Obviamente, aquele machado não desceria na minha garganta, pois o suplício de um negro não faria medo a ninguém. Se me matassem, seria de forma menos teatral, mas a morte – eu pensava – seria o meu destino.
Escondi-me, pois as estradas por muito tempo estariam vigiadas. Foram, vejam só, quase dois anos de aventuras até que julgassem Joaquim José e o levassem à forca. Ora em esconderijos de que apenas negros sabiam ou entre bandidos perigosos, ora executando trabalhos aprendidos com o Tiradentes inconfidente, como moldar dentes feitos de ossos, que eram comprados por outros “tiradentes”.
Antes de eu deixar a capital, São Sebastião do Rio de Janeiro, acompanhei, oculto entre a multidão, o suplício de Joaquim José em praça pública. Sua morte me acordou para a vida e, ao pensar nisso, lembrei de Lucinda e de que eu não podia me acostumar com a dor nos pés. Foi esse sentido de alerta na base que sustentava o meu corpo que me fez atravessar as estradas, os rios e voltar a Vila Rica. Ali, onde Joaquim José viveu e tanto tramou imaginando o futuro, empalaram sua cabeça no alto de um mastro, para que ninguém jamais esquecesse que a morte cruel era o fim dos que conspiravam contra eles, como se os conspiradores não fossem, de alguma forma, parte “deles”.
Subi no mastro com a agilidade dos meus tempos de menino na distante terra dos reis de Ilê Ifẹ̀, cidade sagrada onde as cabeças reais viravam bronze. Em minha terra, quando um chefe morria, sua cabeça viajava para ser copiada em bronze por ferreiros habilidosos e enterrada no solo de Ilê Ifẹ̀. Depois, a réplica de metal da cabeça do rei era devolvida à sua cidade de origem.
Enquanto eu subia no mastro, me esforçando para não cair, lembrava da história que corria por todo canto sobre Zumbi dos Palmares, numa terra distante chamada Alagoas, e ocorrida cem anos atrás. Ele também foi inconfidente, pensava eu. Também lesou a Coroa que deveria e precisava ser prejudicada, derrubada!
Pelo que soube, Zumbi também foi traído, preso, lhe arrancaram a cabeça, exibiram-na em praça pública e depois a descartaram como lixo. Eu pensava que ele não deve ter ouvido algum conselho, pois tem sempre alguém que alerta, ô se tem! Mas, se as pessoas negras da colônia não podiam ajoelhar-se e orar porque não sabiam do local onde estava enterrada a cabeça de Zumbi, que, assim como eu e Lucinda, só desejava viver sem as amarras do cativeiro, não seria Joaquim José, aquele que sonhava com uma “revolução” cheia de escravos para servir Dorothéa, que teria a cabeça preservada. A Coroa poderia descartá-la como lixo ou algum dos inconfidentes, no desejo de tornar seu movimento relevante para a história e não um motivo de vergonha, poderia resgatá-la para fazer dele um herói. Nem uma coisa nem outra. Eu – e somente eu – a enterraria para devolver ao Tiradentes algo que, creio, é mais que tudo isso: sua humanidade.
Desde o dia em que pedi a Joaquim José para participar, sabia que de alguma forma eu faria a minha inconfidência. Na madrugada fria de Vila Rica, quando não tinha viv’alma na rua, subi no mastro da praça e arranquei a cabeça ressecada porque sabia que, ao longo dos séculos, vocês inventariam um homem diferente daquele que conheci, um Tiradentes que não existiu. Sabia que essa cabeça de homem branco seria idolatrada.
Na verdade, eu fazia um favor a vocês, caríssimos habitantes do futuro, que era não terem mais essa relíquia de um santo que não foi santo para adorar. E fazia um favor também a Joaquim José, como peço aos céus que alguma alma boa tenha feito a Zumbi: enterrar a principal parte do seu corpo, onde afinal estão guardados sentimentos, ideias e sonhos, para que ele pudesse, não como ídolo infalível ou herói, mas como qualquer ser humano, sair deste mundo e entrar no outro.
Fui viver minha vida ao lado de Lucinda, escondido de todos, depois de ajudar também os outros escravizados do Tiradentes a escapar da casa do alferes conspirador. Como sua condenação destruiu tudo o que lhe pertencia e nós éramos considerados bens, moedas, objetos, coisas… qual seria o nosso destino?
Depois de o torturarem e apagarem seus vestígios, vocês, afinal, resolveram transformá-lo em um herói nacional, com tronco, membros e um rosto inventado, pois dele não ficou nenhum retrato nem uma réplica em bronze. Minha vingança é que jamais saberão onde este negro, escravizado e esquecido chamado Prático, escondeu a cabeça de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Meus pés pararam de arder. Esta foi a minha revolução. Eu estava, finalmente, em paz.
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