O asilo do Chagrin Valley quer passar aos portadores de demência a impressão de que a vida continua igual à do passado, com filhos pequenos, férias no litoral e uma casa para onde voltar FOTO: LANTERN OF CHAGRIN VALLEY
A casa da memória
Mentir para tratar a demência
Larissa MacFarquhar | Edição 156, Setembro 2019
Tradução de Sergio Flaksman
O amplo salão central da unidade de terapia da memória tinha sido projetado para emular a praça de alguma cidadezinha norte-americana do passado. Havia uma fonte, cercada por plantas e um muro baixo de pedra. Havia também dois postes, além de bancos, mesas e cadeiras que se distribuíam por todo o recinto. O tapete, em diferentes tons de verde, lembrava um gramado. Pelas paredes, espalhavam-se fachadas de construções que pareciam casas de madeira, com persianas, telhados de duas águas e varandas. Um par de extensos corredores, que saíam de lados opostos do salão central, fazia as vezes de ruas e exibia mais fachadas e varandas. Só que, agora, as fachadas não eram falsas: as portas da frente davam acesso a aposentos pequenos – com saleta, quarto e banheiro – que serviam de residência para os pacientes.
Em algumas das varandas, havia cadeiras de balanço nas quais se podia sentar para apreciar o movimento. Vários residentes se mostravam irrequietos e não tinham aonde ir, de maneira que muita gente zanzava de um lado para o outro. A luz do dia entrava por janelas altas, instaladas logo abaixo do teto, que reunia uma série de painéis luminosos, pintados de modo a evocar um céu azul com nuvens esparsas. Ao cair da tarde, quando começava a escurecer, as luminárias das varandas eram acesas. Pouco depois, os postes também se acendiam. Lá pelas 20 horas, os painéis do teto eram desligados, fazendo com que tudo lembrasse uma cidadezinha à noite.
A ilusão era supreendentemente eficaz. Embora o salão central não fosse uma área ao ar livre, tampouco parecia um ambiente fechado. Situava-se no meio do caminho e remetia a um lugar tanto privado quanto público. Pessoas que passaram algum tempo ali acabaram mesmo por chamar os corredores de ruas e os aposentos individuais de casas. Ainda que todo o conjunto tivesse sido criado para funcionar como um cenário nostálgico – um retorno à vida norte-americana de oitenta ou noventa anos atrás, quando boa parte dos residentes era criança –, o espaço na verdade lembrava muito o vilarejo que estava do lado de fora: Chagrin Falls, no estado de Ohio, em pleno Chagrin Valley, a Leste de Cleveland. Uma aldeiazinha repleta de casas de madeira com persianas, telhados de duas águas e cadeiras de balanço nas varandas.
A impressão de que as instalações correspondiam a uma área ao ar livre e aberta ao público em geral era reforçada pelo fato de que os pacientes que perambulavam diariamente no salão central não tinham nenhum propósito em comum nem ideia do que cada um fazia por lá. Alguns sabiam que haviam ido morar na unidade de terapia da memória porque não conseguiam mais viver sozinhos: não podiam dirigir, se esqueciam de tomar remédios e de desligar o fogão ou se perdiam quando saíam para uma caminhada. Outros sabiam que se encontravam numa unidade de terapia da memória, mas não admitiam que deviam estar internados e tentavam escapar. Já alguns nem sequer sabiam onde estavam, ou às vezes sabiam e às vezes não. Havia também os que tinham chegado a um ponto em que saber onde estavam não fazia a menor diferença.
Os funcionários procuravam manter os pacientes ocupados. Brincavam de forca, promoviam bingos e organizavam jogos de perguntas e respostas. Pela manhã, propunham exercícios de alongamento e testes cognitivos. Toda semana, havia rodas de estudos bíblicos, aulas de artesanato e serviço de manicure. No verão, os residentes acompanhavam as partidas do time local de beisebol pela tevê e, no outono, as de futebol americano. Em outro ponto das instalações, uma rua principal de mentirinha abrigava uma biblioteca, uma loja de presentes, um salão de beleza, uma capela onde se celebravam cultos dominicais e um par de fachadas falsas, que aludia a um posto de gasolina e uma loja de ferragens. Às vezes, os pacientes saíam em excursões. Iam fazer piqueniques ou pescar num lago próximo. Outras vezes, parentes vinham buscá-los para o almoço. Na maior parte do tempo, porém, a paisagem ilusória da unidade de terapia da memória equivalia ao único mundo no qual os residentes viviam.
O asilo Lantern of Chagrin Valley oferece cenários especialmente detalhados e convincentes, mas ficções desse tipo são bastante comuns em muitos lugares destinados a portadores de demência. Certas clínicas dão aos pacientes bonecos em forma de bebê, que vêm acompanhados de fraldas, mamadeiras e roupinhas. Alguns internos se apegam tanto aos bonecos que parecem vê-los como crianças de verdade, embora não seja fácil precisar o quanto acreditam nessa fantasia. Muitos ficam visivelmente mais calmos quando seguram seus bebês no colo. Entretanto, alguns parentes dos internos e até alguns funcionários responsáveis pelo tratamento consideram humilhante o uso de bonecos, já que acham difícil não infantilizar alguém que afaga uma criança de brinquedo.
Pacientes com demência frequentemente querem voltar para casa. Alguns manifestam essa vontade mesmo quando estão na residência onde moram há muitos anos. Nas instituições em que são internados, eles podem expressar tal desejo várias vezes por dia. Dizer a um interno que agora ele vive ali, que agora aquela é sua casa permanente, quase nunca o convence ou reconforta. Para contornar esse problema, muitos asilos e hospitais dispõem de falsos pontos de ônibus. Se um paciente teima em voltar para casa, um auxiliar de enfermagem o acompanha até o ponto, e os dois se põem a esperar sentados por um ônibus que nunca chega. Em algum momento, quando se cansa ou esquece o que fazia ali, o paciente é convencido a retornar a seu dormitório.
Anos atrás, uma empresa de Boston começou a vender um produto que batizou de Terapia de Presença Simulada. Era uma fita de áudio que encenava um dos lados de uma conversa telefônica. Parentes ou pessoas próximas de determinado interno faziam um apanhado das lembranças mais preciosas dele, desde anedotas até assuntos de seu especial interesse. A partir desse levantamento, desenvolvia-se um roteiro de diálogo e gravava-se uma fita com as falas de apenas um dos interlocutores e com pausas que davam tempo para as respostas do paciente. Quando a fita ficava pronta, entregavam-se fones de ouvido ao interno e dizia-se que ele estava recebendo um telefonema da pessoa que gravou o áudio. Como tinha memória curta, o paciente podia ouvir a mesma fita inúmeras vezes e encontrar algum conforto a cada audição. Havia um quê de sessão espírita naquilo: os papos simulavam a presença de alguém que não estava realmente lá e que poderia seguir conversando mesmo depois de morto.
Nos últimos anos, surgiram vários outros tipos de simulação. Além dos falsos pontos, inventaram-se ônibus de mentira: colocados no lugar das janelas, monitores de vídeo passam filmes que exibem paisagens e geram uma ilusão de movimento. Um asilo em particular criou uma praia fake, com lâmpadas de aquecimento, areia e o som de ondas que se quebram. Versões de cenários urbanos semelhantes ao do Lantern já existem em diversos países – Holanda, Itália, Austrália, Canadá. Em muitas dessas versões, os aposentos reproduzem, com detalhes de época, um mundo que remete à infância dos pacientes: o bucolismo holandês dos anos 1940, a Alemanha do período comunista. Todos esses simulacros foram concebidos com o intuito de aliviar o sofrimento, o pânico e a fúria que às vezes afetam os portadores de demência. No fundo, pretendem transmitir aos pacientes em estágio avançado da doença a impressão de que a vida continua igual à do passado, com filhos pequenos, férias no litoral e um lar para onde voltar.
Cinco décadas atrás, as clínicas de repouso costumavam amarrar os internos a uma cadeira ou à cama na esperança de que não se ferissem nem criassem problemas. Em 1987, porém, os Estados Unidos aprovaram uma lei federal que limitou o emprego de amarras a situações em que a segurança do interno ou de outra pessoa estivesse em risco. Ficou proibido usá-las como castigo ou apenas por conveniência dos cuidadores. Drogas substituíram as amarras, e os pacientes começaram a receber antipsicóticos poderosos, a exemplo do Haldol. Como muita gente achava terrível a administração desses medicamentos, iniciou-se a busca por alternativas não farmacológicas. Foi assim que os falsos pontos de ônibus e outros placebos psicológicos revelaram-se bastante eficazes. Pacientes que tomavam Haldol toda noite para deixar de gritar se mostraram tão calmos com a Terapia de Presença Simulada que passaram a prescindir de tranquilizantes.
Ocorre que os placebos psicológicos, como qualquer placebo, são uma forma de engano. Utilizá-los acarreta alguns problemas. Talvez signifique um retorno à época, não tão distante, em que se considerava normal e aceitável que médicos mentissem para os doentes. Até pouco tempo, contar a verdade sobre uma doença fatal podia soar inútil e cruel. O Juramento de Hipócrates, proferido pelos médicos recém-formados, não fala nada sobre a mentira – só proíbe os doutores de fazerem o mal. E quão maléfico seria ocultar de alguém uma sentença de morte que o privaria de qualquer esperança? Hoje, mentir nessas circunstâncias parece obviamente um erro. Quando se trata de pacientes com demência, no entanto, não há consenso. Mentir é violar o respeito que se deve ao outro, mas mentir para uma pessoa com demência pode protegê-la de constatações horrorosas e inalteráveis. Se uma mulher esquece que o marido morreu e pergunta por ele dia após dia, será correto dizer a verdade e lhe causar um sofrimento terrível toda vez que a indagação se repetir? Não parece melhor responder que o marido está no trabalho? Será que mentiras desse tipo diferem substancialmente de outras espécies de mentira? O que é mais importante – a dignidade ou a felicidade?
No Lantern, numa noite de verão, Rachel e Jane sentaram-se lado a lado para jantar numa mesinha perto da janela (alguns nomes foram trocados nesta reportagem a fim de assegurar a privacidade dos pacientes). Rachel, com cabelos grisalhos e encaracolados, usava óculos pequenos de metal e, às vezes, emitia um som agudo, semelhante a um guincho.
– Que som é esse? – perguntou Jane. – Está tudo bem?
Jane vestia um casaco vermelho com capuz e uma camisa de algodão estampada. Rachel não respondeu. Por uns instantes, as duas continuaram a comer sem falar nada.
– Querida, você está fazendo uns barulhos – disse Jane novamente.
– Eu sei – admitiu Rachel. – Mas não consigo parar.
– Consegue, sim.
– Como?
Becky se encontrava sozinha no canto oposto da sala de jantar. Tinha um rosto com traços fortes, olhos de um azul muito vívido e as faces coradas. Os cabelos cinza, rebeldes, escapavam de um coque frouxo, como se ela houvesse caminhado contra o vento. De tempos em tempos, tentava se levantar, mas esbarrava na beira de uma mesa e voltava a cair sentada na cadeira de rodas. Becky era casada com outro residente, Cal, só que não o reconhecia mais. Mesmo assim, a presença do companheiro às vezes lhe causava certa tensão, o que os cuidadores interpretavam como um possível sinal de reconhecimento. Em algumas ocasiões, Cal parecia reconhecer a parceira – sentava-se junto dela e lhe acariciava a nuca –, mas em outros momentos não dava indícios de que a identificava. Becky já não conseguia falar e passava a maior parte do dia sob cuidados individuais.
George, Angela e Carmen sentaram-se próximo a uma mesa comprida, no meio da sala de jantar. Eleanore entrou no recinto, empurrando um andador, e dirigiu-se ao trio:
– O que vão querer comer hoje à noite?
Eleanore havia chefiado grupos de bandeirantes durante muitos anos e se acostumou a tomar conta dos outros. Seus cabelos, finos e bem curtos, estavam tingidos de castanho-claro. Seus óculos eram redondos. Ela manifestava problemas de memória e se confundia algumas vezes, mas sabia que morava numa casa de repouso. Continuava sendo a mesma pessoa que fora antes da internação.
– Hoje eu não trouxe nada para o jantar – disse Angela.
– Não achei que você fosse trazer – retrucou Eleanore. – Só quero saber se podemos lhe preparar algo.
– Quem está aí atrás? – indagou George, enquanto agarrava os braços da cadeira de rodas e tentava virar o corpo. – Por que você está aí atrás? Por que não fala comigo?
Naquele momento, não havia ninguém atrás de George. Frequentemente, porém, algum funcionário surgia às costas dele e saía empurrando a cadeira de rodas sem alertá-lo.
– Mas eu estou falando com você – replicou Eleanore. – Estou tentando descobrir o que você quer para o jantar.
– O que você está fazendo? – prosseguiu George. – O que está acontecendo aí atrás?
– Pode dizer o que quer para o jantar? – repetiu Eleanore. – Quer espaguete? Ou outro tipo de massa?
– Não sei o que fazer – resmungou George. – Que merda devo fazer?
– Me responda só sim ou não. Você gosta de massa? – insistiu Eleanore, com paciência.
– Do que ela está falando? – perguntou Carmen para Angela.
– Ela está falando demais – resumiu Angela.
– Você come as coisas, você bebe as coisas, você não tem porra nenhuma aí – protestou George.
– Não diga palavrões – ralhou Angela.
Um funcionário informou para Eleanore que o menu daquela noite era fixo. Ela, então, se sentou na mesa de sempre, junto da porta, em companhia do dr. Joe, um dentista aposentado. Como ele não era de muita conversa, os dois geralmente jantavam em silêncio. Mas havia ocasiões em que Eleanore discorria em voz alta sobre o rumo que sua vida tomara. Durante a Segunda Guerra Mundial, ela trabalhou como telefonista para as Forças Armadas. Depois, nunca mais teve um emprego e dedicou-se apenas à criação dos filhos. A experiência como telefonista se revelou tão marcante que Eleanore ainda evocava muito aquela fase.
Em menos de um mês, completaria 100 anos e não sabia bem como lidar com a estranha situação. “É ridículo”, afirmou num tom alegre. “Quem vive cem anos? Eu nunca acreditei que viveria. Se fizerem uma festa no meu aniversário, me tornarei definitivamente uma centenária. Não estou reclamando, não. O problema é que não vou ficar nisso. Os anos não param de chegar e de me atropelar. No ano que vem, faço 101, depois 102 e daqui a pouco já vou estar com 105. Aí o que vão fazer comigo? Vão me encostar numa cerca e falar: ‘Olhem só aquela adorável senhora. Tem 105 anos e ninguém sabe o porquê. Estamos tentando descobrir.’ Qual a vantagem de viver tanto assim se você não vive direito? Eu acho que não estou vivendo direito. Estou só existindo. Depois que o tempo passar e eu disser ‘ah, mais um ano, completei 102, 103, 104’, o que acontecerá? Preciso chegar a que idade para acontecer algo em minha vida? A 110? Aí vou virar outra coisa? O quê? De que adianta isso tudo? É o que gostaria de saber, mas não encontro as respostas.”
J |
im Beitel estava agitado demais para se sentar e jantar. Ele chegara ao Lantern dois dias antes. Nas primeiras 48 horas, sua mulher, Sondra, o acompanhou, e ambos pareciam profundamente aborrecidos. Não fazia muito tempo que Sondra se obrigara a ir embora. Beitel tinha 58 anos e recebera o diagnóstico de Alzheimer aos 53. Agora, mal falava. Atlético, com 1,85 metro de altura e pouco mais de 100 quilos, usava uma camiseta do Led Zeppelin, um cordão entrelaçado no pescoço, bermuda preta de surfista, chinelos de borracha e um par de óculos escuros, que mantinha preso na cabeça. Seus cabelos grisalhos estavam cortados à escovinha e a barba, também grisalha, era curta. Ele andava sem parar, de um lado para o outro. Enveredava pelos corredores, entrava no refeitório e saía, passava por várias portas. De vez em quando, interrompia a caminhada e erguia os braços ao céu, num gesto de absoluta perplexidade.
Mais tarde, naquela mesma noite, Sondra retornou. Miúda e de cabelos louros bem curtos, tinha pouco menos de 50 anos. Ao lado de Beitel no salão central, tentava lhe mostrar como lançar uma bola de borracha numa pequena cesta de basquete. Quando entregou a bola para o marido, ele olhou na direção da cesta como se nunca tivesse visto aquilo. Apertou a bola contra o peito e começou a chorar.
Beitel e Sondra trabalharam como engenheiros numa empreiteira multibilionária em Columbus, Ohio. Ele supervisionava grandes projetos – centros de convenções, hospitais, estádios. O casal se conhecera vinte anos antes, quando jogava num time local de futebol. Em 2009, um irmão muito próximo de Beitel morreu de câncer no rim com pouco mais de 50 anos. Sondra acredita que a perda pode ter desencadeado algo no marido, porque os sintomas do Alzheimer começaram a se apresentar nessa época.
A primeira coisa que ela notou foi uma mudança nos reflexos de Beitel. Um dia, os dois estavam juntos no computador e Sondra lhe pediu: “Feche essa janela e abra uma nova.” A engenheira reparou que Beitel precisou de certo tempo para dar conta da instrução. Depois percebeu que, durante reuniões, o companheiro solicitava aos outros que repetissem o que haviam falado e anotava tudo num papel. Uma vez, ele marcou consulta com um médico que já frequentava havia 25 anos e não conseguiu se lembrar do caminho até o consultório. Como era jovem, ninguém suspeitou de demência. Médicos o examinaram à procura de alguma inflamação, ou do mal da vaca louca, ou de uma doença autoimune. Fizeram punções em sua medula e lhe receitaram esteroides. Quando finalmente pediram uma tomografia do cérebro, diagnosticaram o Alzheimer.
Beitel se aposentou por invalidez e Sondra comprou um cão treinado, da raça setter, para fazer companhia ao marido enquanto ela trabalhava. O cachorro entregava os remédios de Beitel ao escutar um alarme. Quando ainda conseguia dirigir, o engenheiro se atrapalhava em estacionamentos grandes. Nessas ocasiões, bastava dizer a palavra “camionete” e o cão localizava o veículo do dono. Se Beitel saísse sozinho para passear nas imediações de casa e não conseguisse voltar, o setter o encontrava. O cachorro possibilitou que Sondra mantivesse o emprego por algum tempo. Mas, após um ano, o marido já não dava conta de tarefas simples, como achar a própria caneca de café. Beitel chegava exausto ao final de cada dia. Sondra acabou largando o trabalho para passar mais tempo com o companheiro enquanto ele ainda tinha noção de quem era. Impulsionado pelo desejo de realizar alguns sonhos, o casal sacou dinheiro do fundo de aposentadoria mantido por Beitel e viajou à Nova Zelândia, à Itália e ao Havaí.
A engenheira resolveu que não iria corrigir o marido caso ele fizesse alguma coisa estranha ou falasse bobagem. Se Beitel colocasse quatro bonés de beisebol ao mesmo tempo, ou se calçasse sandália num pé e tênis no outro, Sondra simplesmente não comentaria nada. Como ele sempre havia sido bastante teimoso, a atitude dela não representava uma mudança tão grande no relacionamento conjugal. “Quando o Jim cismava em dizer que a grama era azul, todo mundo sabia que não valia a pena contrariá-lo. E isso só piorou com a doença.”
A partir de um momento, Sondra já não conseguia cuidar do parceiro sem ajuda e começou a procurar um asilo. Entre os que visitou, o Lantern lhe pareceu o melhor: não tinha aqueles carpetes característicos das funerárias, nem corredores sombrios e cobrava praticamente o mesmo preço dos demais. Por um lado, a engenheira temia deixar o marido lá. Mas, por outro, imaginava que o fato de haver mais gente para auxiliá-lo no dia a dia permitiria ao casal se reaproximar. “Eu passava tantas horas cuidando do Jim que já não conseguia ser mulher dele”, contou Sondra. “Quando finalmente me sentava no sofá e lhe dava as mãos, estava tão exausta que não tinha forças nem mesmo para folhear um álbum de fotos. Espero que agora resgatemos nossa relação conjugal. Ainda existe muita coisa entre nós, mas faz tempo que não vivenciamos essa intimidade.” Várias pessoas me disseram o mesmo – que, enquanto cuidavam da mulher ou do pai em casa, não se viam mais como marido ou filho. Sentiam-se apenas uma espécie de babá ou enfermeiro.
Beitel perdeu quase toda a capacidade de falar logo no início da doença, mas ainda reconhecia rostos e demonstrava emoções. Se diversos pacientes com demência tendem a se irritar ou dificultar o trabalho dos cuidadores, o engenheiro comportava-se de maneira diferente. “Ele ficou bem mais agradável”, disse Sondra. “Não que antes fosse um chato. Era apenas muito sério, muito certinho. Sua personalidade mudou com a doença. As pessoas hoje me perguntam: ‘Quem é esse cara?’ Jim se tornou mais afável, deixou vir à tona um lado gentil que ninguém conhecia.” Antigamente, quando se frustrava, o marido de Sondra tinha acessos de fúria. Agora, costuma cair no choro.
Deixar de falar e, ao mesmo tempo, continuar identificando rostos, como ocorreu com Beitel, é incomum. A maioria dos pacientes que sofrem de demência fica confusa bem antes de perder a fala. Muitos confundem os parentes – a filha com a mãe, o filho com o marido – ou esquecem que seu cônjuge já morreu. Não raro, desconfiam de quem lhes diz que estão num asilo. É mais frequente acreditarem que estão em outro lugar, como um hotel, uma prisão ou um navio. Há aqueles que tomam como verdadeiras as ficções que passam na tevê. Às vezes, os que sofrem de demência por corpos de Lewy[1] manifestam alucinações visuais ou auditivas. Certos doentes perdem a noção de profundidade e não conseguem fazer distinção entre buracos e simples manchas escuras no chão. Outros migram para o passado – retornam à época em que tinham um emprego e buscavam os filhos na escola. Ou então revivem a fase em que eram pequenos e dependiam dos pais. Os médicos já notaram que pessoas cuja memória começa a falhar tendem a se lembrar mais vivamente de dois períodos: o fim da infância ou o começo da idade adulta. Tal fenômeno é conhecido como “choque de reminiscências”.
Por causa dessas confusões tão típicas da demência, o tratamento da enfermidade acaba recorrendo a mentiras igualmente típicas. “Quase sempre, o mais apropriado é nos concentrarmos no aqui e agora”, afirma Jennifer Karp, ex-diretora de enfermagem no Lantern. “Afinal, tudo indica que, dali a alguns minutos, os pacientes já não vão se recordar do que acabou de acontecer. Vejo como pura crueldade repetir para eles que o marido ou a mulher que estão esperando morreu. Ou lhes dizer, quando chamam pela mãe aos prantos: ‘Você completou 94 anos. Onde acha que sua mãe está?’ Melhor falar algo do gênero: ‘Pode ser que ela tenha ido fazer compras.’ Outro dia, uma paciente indagou: ‘Cadê as crianças?’ Em vez de perguntar ‘Que crianças?’, respondi: ‘Acho que resolveram brincar lá fora. O dia está tão bonito.’ A paciente me disse então: ‘Que ótimo! As crianças fazem bem de ir brincar.’ Era só o que ela precisava ouvir.”
Todo mundo mente no tratamento da demência. Embora algumas casas de repouso obriguem seus funcionários a falar a verdade, uma pesquisa recente mostrou que quase 100% deles admitem já ter mentido para os pacientes, assim como 70% dos médicos. No Lantern e na maioria das instituições, não existem regras sobre o assunto, mas a crença entre os integrantes do staff é de que vale a pena recorrer à mentira compassiva. “Acredito que, no fundo, todos saibam que mentir é melhor”, escreveu Barry B. Zeltzer, especialista em cuidados com idosos, no American Journal of Alzheimer’s Disease & Other Dementias. “Depois que passa a dominar a arte de mentir bem e compreende que esse tipo de desonestidade é um procedimento ético, o cuidador se torna capaz de controlar o paciente a fim de lhe proporcionar mais segurança e paz de espírito.” Familiares dos doentes e funcionários dos asilos mentem o tempo inteiro e não cogitam abrir mão dos engodos. Mesmo assim, muitos se sentem desconfortáveis com a tática. Para aliviar a culpa, dão nomes eufemísticos à mentira, como “fabulação terapêutica” ou “tranquilização passageira” ou “esforço para entrar na realidade do doente”.
A conduta de hoje é, em parte, uma reação à postura oposta, que reinou em meados do século passado. Curiosamente, na mesma época em que os médicos costumavam mentir para os pacientes comuns acerca de seus diagnósticos, os experts no tratamento da demência defendiam expor os doentes à realidade. No início da década de 1960, a enfermeira Lucille Taulbee e o médico James Folsom, funcionários de um hospital em Tuscaloosa, no Alabama, desenvolveram um programa batizado de “orientação para a realidade”. A dupla trabalhava com idosos que tinham problemas psiquiátricos, inclusive demência. De acordo com o programa, grupos pequenos de pacientes se reuniam com um instrutor que, de pé diante da turma, apontava vários objetos: um relógio, um calendário, uma foto, um mapa, números de plástico e um quadro de “orientação para a realidade”. Esse quadro, o item mais importante de todos, indicava o nome e o endereço do hospital; o ano, o mês e o dia da semana; qual seria a refeição seguinte; quando cairia o próximo feriado nacional; e como estava o tempo lá fora. O instrutor também dizia o nome de cada paciente e o local exato em que cada um se encontrava. Ele repetia tais dados até os alunos conseguirem retê-los, ao menos momentaneamente. Em seguida, lhes passava outras informações: qual a idade deles, onde nasceram, que profissão tiveram. Reiterados ao longo do dia, os ensinamentos não se limitavam à sala de aula. Todos os doentes usavam etiquetas com o próprio nome. Uma segunda etiqueta identificava a cama de cada paciente e uma terceira, o assento dele no refeitório. Antes das refeições, lembrava-se ao grupo que horas eram.
Taulbee e Folsom alcançaram certo sucesso com o método. O senhor R., por exemplo, vivia internado em hospitais psiquiátricos desde 1923 e deixara de falar havia quinze anos. Após sete meses e meio de programa, não apenas lia em voz alta todo o quadro de “orientação para a realidade” como puxava conversa com enfermeiros fora das aulas. O método se apoiava, sobretudo, na confiança de que mesmo o paciente mais isolado poderia, com a devida atenção, retornar ao mundo. A chave para que isso acontecesse residia nos fatos – o real é que ajudaria os doentes a se reerguerem. “Quando chegaram aqui, todos os pacientes estavam com medo, infelizes e constrangidos”, escreveram Taulbee e Folsom. “Mas a esperança substituiu o desalento assim que dissemos seus nomes, onde estavam e qual o dia da semana.”
Por décadas, o programa imperou no tratamento dos portadores de demência. Até hoje, é raro o asilo que não tenha um quadro de “orientação para a realidade” exposto em algum canto. O método representou um dos primeiros esforços para deter e reverter os estragos cognitivos da doença. As equipes dos asilos o enxergavam como uma alternativa mais promissora que a infindável rotina de banhar, vestir e alimentar os internos. No entanto, ao mesmo tempo que se tornava obrigatória em muitas instituições, a técnica exibia uma rigidez que motivava a zombaria de doentes e cuidadores. Dois sociólogos que estudaram asilos do Meio-Oeste norte-americano no começo da década de 1970 descobriram que os exercícios do programa haviam degenerado a ponto de se transformarem numa farsa:
Cuidador [apontando para “chuva” no quadro]: “Como está o tempo hoje, Emma?”
Emma vira ligeiramente a cabeça e olha pela janela: “Parece que faz sol. Lá fora o dia está bem claro.”
Cuidador [ainda apontando para o quadro]: “Tem certeza? Aqui diz que está chovendo. Não é mesmo?”
Emma: “Daqui vejo diferente.”
Cuidador [atraindo a atenção de Emma para o quadro]: “Mas o que está dizendo aqui, Emma?”
Emma: “Diz que está chovendo.”
Cuidador [satisfeito]: “Resposta correta. Muito bem!”
Em alguns casos, os exercícios pareciam não só inúteis, mas cruéis, pois obrigavam os pacientes a encarar realidades que talvez devessem ignorar. Uma doente que os sociólogos conheceram se mostrava calma até iniciar o programa e ser lembrada repetidamente de que a puseram num asilo. Depois de absorver essa informação, ela passou a chorar o tempo inteiro. Caminhava sem tréguas no pátio e pedia que a levassem para casa. Não estava claro se as verdades transmitidas pelo método beneficiavam os internos de longa data. Saber que temperatura faz lá fora parecia inútil para pacientes que permaneciam trancados num pavilhão. Acompanhar o correr das horas e do calendário só chamava a atenção para a aridez do cotidiano no asilo, onde todos os dias acabavam sendo mais ou menos iguais. Os acontecimentos mais relevantes para os portadores de demência não equivaliam àqueles exibidos no quadro do programa: “Hoje é segunda/terça-feira e chove/faz sol.” Outra espécie de registro é que realmente importava: “Seu marido/sua mulher se chama ____. Ele/ela está vivo(a)/morto(a).”
No início da década de 1980, a assistente social Naomi Feil inaugurou a “terapia de validação” e rejeitou o absolutismo da “orientação para a realidade”. Ela julgava errado mentir sistematicamente, mas também discordava de corrigir os pacientes. Recomendava que os cuidadores entrassem no mundo emocional dos doentes e validassem os sentimentos deles. Sentimentos, afinal, contavam mais do que fatos. A noção de que o apego rigoroso à verdade era desnecessário e até nocivo trouxe um alívio enorme para vários profissionais que trabalhavam com demência.
Os defensores do método de Taulbee e Folsom encaravam a “terapia de validação” menos como uma forma de empatia e mais como uma cumplicidade duvidosa. Ainda assim, a abordagem proposta por Naomi Feil ganhou espaço e, com o tempo, a devoção excessiva à realidade passou a ser considerada uma postura heterodoxa. Na década de 1990, Penny Garner propôs um tratamento para demência que rejeitava ainda mais radicalmente a verdade e, por isso, despertou críticas acaloradas.
Quando se aproximava dos 60 anos, Dorothy, a mãe de Garner, começou a perceber que ficava confusa e que sua memória às vezes falhava. Não por acaso, insistiu em fazer exames de imagem no cérebro. Os testes revelaram uma atrofia bastante extensa do órgão. O marido de Dorothy, um médico, achou por bem não contar o resultado à mulher. Ele apenas falou que não tinham encontrado nenhum tumor e que não havia motivo para preocupação. Caso a parceira quisesse se lembrar das coisas, sugeriu o marido, bastava se esforçar um pouco mais. Só que Dorothy desconcertava-se diante dos próprios erros, e a filha concluiu que a melhor maneira de lidar com a situação era apoiar tudo que a mãe dizia, por mais estranho que soasse. Como viajara muito, Dorothy imaginava estar num aeroporto, à beira do embarque, quando se via rodeada de desconhecidos, fosse numa fila de supermercado ou numa sala de espera. Nessas ocasiões, Garner participava da fantasia materna. Já o marido de Dorothy não conseguia agir do mesmo modo e fazia questão de corrigir a companheira. A filha acabou percebendo que até gostava daqueles momentos em que se transferia para uma espécie de País das Maravilhas junto da mãe.
Depois que Dorothy morreu, Garner decidiu usar o que aprendeu no período em que cuidou dela, embora não tivesse nenhuma formação médica. Era dona de casa e morava em Cotswolds, região bucólica da Inglaterra, a Oeste de Oxford. No início dos anos 1990, foi trabalhar como voluntária com portadores de demência num hospital próximo, em Burford. Ao longo de uma década, refinou suas ideias e as converteu num sistema. Primeira regra do método de Garner: jamais perguntar nada. Perguntas só trazem dificuldades. Podem fazer o paciente entrar em pânico por lhe exigir respostas que às vezes ele simplesmente não consegue dar. Em vez de sair perguntando, Garner preferia começar os papos com os doentes por um assunto bem tedioso – em geral, o clima – a fim de ganhar suavemente a atenção deles, sem ameaçá-los. Quando principiava as conversas, empregava as mesmas palavras dos interlocutores, imitava-lhes os gestos e se declarava fascinada pelo que falavam. Os pacientes tinham, assim, a sensação de que finalmente alguém os compreendia.
Outra regra de Garner: nunca se opor àquilo que o doente diz, mesmo que seja uma tremenda bobagem. A ideia é poupá-lo da decepção de se confrontar com o próprio declínio. Mas não adianta simplesmente deixar de corrigi-lo. Para alegrá-lo de fato, Garner achava necessário descobrir em que papel cada paciente se realizava mais e, depois, fazê-lo vivenciar tal personagem em situações corriqueiras, tantas vezes quanto possível. A estratégia já funcionara com Dorothy, que se sentia feliz quando acreditava estar num aeroporto. Garner instruía os familiares dos doentes a encontrar esses papéis. Por exemplo: uma das mulheres internadas no hospital, Alice, tinha sido exímia jogadora de bridge. Por sugestão de Garner, duas novatas no carteado pediram que a veterana lhes ensinasse o jogo. Com o tempo, Alice já não conseguia jogar direito – e nem precisava. Para a paciente acreditar que havia uma partida de bridge em curso, era só forrar a mesa com certa toalha de veludo. “A vida de Alice passou, então, a girar em torno do jogo”, escreveu Oliver James, psicólogo e genro de Garner, no livro Contented Dementia (A demência satisfeita). “Minha sogra criou para Alice uma rotina que consistia em esperar o início de uma partida, jogar, tomar chá durante o jogo, descansar após a partida e traçar os planos para o jogo do dia seguinte, como numa versão radiante do filme Feitiço do Tempo.”
Garner percebeu que o caso de Alice não era exceção. Muitas vezes, um mero gesto ou a presença de um objeto fazia o paciente imaginar que desempenhava um papel costumeiro – isso, claro, se o cuidador soubesse estimular a ilusão. De tão simples, a técnica permitia orquestrar várias cenas simultaneamente. “Você podia cuidar de dez ou doze doentes na mesma sala e cada um julgar que estava fazendo uma coisa diferente”, diz Jan Dewing, que dirigiu o hospital de Burford na década de 1990 e hoje leciona enfermagem na Universidade Rainha Margaret, em Edimburgo. “Um interno que frequentou o centro financeiro de Londres por muitos anos pensava estar num clube. Outro paciente achava que todos haviam se reunido no salão paroquial de uma igreja para ter aulas de piano. Um terceiro imaginava-se no anexo da lavanderia onde trabalhara. Uma senhora que servira no corpo feminino da Marinha Real Britânica acreditava participar de um encontro com as colegas de outrora.”
Para garantir a segurança do doente em seu mundo fantasioso, convinha mapear as características e os limites desse universo: Quem mais vivia nele? Que atividades desenrolavam-se por lá? Em que época se estava? Dessa maneira, era possível minimizar os problemas sempre que o paciente recorria ao passado na esperança de interpretar o presente. Caso ele sentisse falta de alguém que morreu ou se mudou, deviam-se oferecer explicações plausíveis para a ausência da pessoa, o que exigia uma habilidosa dedução. Tome-se o exemplo de doentes que teimavam em perguntar: “Cadê meu filho?” Primeiro, era necessário observá-los meticulosamente com o intuito de descobrir a idade daquele filho. Se os pacientes pensavam ter uma criança de colo, responder que o filho viajou para um congresso de medicina os deixaria perplexos ou cabreiros. Por outro lado, se os doentes achavam que o filho já entrara na universidade, não adiantava dizer que ele estava brincando no jardim. A coerência era fundamental. Um simples deslize nas respostas podia resultar num trauma horrível para os doentes, sobretudo porque alguns não se lembrariam exatamente do que os abalou e ficariam apenas com a sensação de que algo indecifrável os ameaçava.
O método de Garner se assemelhava muito às improvisações dos comediantes e adotava regras parecidas: jamais negue a realidade que lhe é apresentada, aceite tudo o que o interlocutor disser e nunca faça perguntas. O método também exigia virtudes idênticas às dos improvisadores – raciocínio ágil, falta de timidez e capacidade de se deleitar com o absurdo. O melhor caminho para quem desejava cuidar de pessoas com demência, defendia Garner, era aprender técnicas de improviso numa escola de teatro. Atores pareciam pensar o mesmo. A companhia Lookingglass Theatre já trabalhara em parceria com a faculdade de medicina da Universidade do Noroeste, em Chicago. As atrizes Karen Stobbe e Mondy Carter, por sua vez, já haviam percorrido os Estados Unidos ministrando oficinas sobre o uso da improvisação no tratamento da demência.
Familiares de certos doentes temiam não dar conta da técnica porque se julgavam maus atores. Achavam perturbador manipular os fatos constantemente e se preocupavam em ser desmascarados. Garner reconhecia que a adesão a seu método tinha como pré-requisito algum distanciamento emocional. Para que a coisa funcionasse, era preciso que os parentes deixassem de encarar o paciente como pai, mãe, marido ou mulher. Eles deviam vê-lo como um cliente.
Determinados familiares também associavam a mentira à traição, à quebra de confiança. Nesses casos, Garner costumava lhes dizer: “Cresçam!” Ela sustentava que insistir na verdade era sinal de egoísmo e imaturidade. Depois de presenciar como a ansiedade desesperada podia transformar a vida dos doentes e de sua família num inferno, Garner acreditava que se importar com a mentira significava não entender o que estava de fato em jogo.
Alguns especialistas em demência consideravam o método antiético. A Sociedade Britânica de Alzheimer chegou a emitir uma nota sobre o assunto: “Temos dificuldade em compreender como o ato de enganar um paciente pode contribuir para uma relação genuína de confiança, em que a voz do doente seja ouvida e seus direitos, defendidos.” Garner contra-argumentava dizendo que a realidade vivida pelos portadores de demência não correspondia propriamente a uma alucinação, como se eles julgassem ser a rainha Vitória ou Napoleão. Tratava-se de memória e não de delírio. Os pacientes apenas retornavam ao passado para trafegar pelo presente. Além do mais, Garner não encorajava as fantasias. Ela simplesmente evitava fazer correções: “Você não vai até um doente e afirma que Fred está vivo, sabendo que ele morreu. Você somente se limita a não questionar a presença de Fred. Imagine uma conversa entre duas pessoas em que a primeira comenta: ‘Fred joga tênis tão bem…’ E a outra retruca: ‘Verdade, joga muito bem! Mas não podemos esquecer que Fred morreu.’”
As desconfianças sobre o método derivavam principalmente do fato de Garner ser uma outsider sem treinamento médico. Houve, no entanto, quem se impressionasse com o que ocorria em Burford a ponto de promover estudos acerca da técnica. As publicações Aging & Mental Health e Journal of Social Work Practice divulgaram alguns resultados positivos do trabalho de Garner. Mais recentemente, Niall McCrae – professor do King’s College, em Londres, que se especializou em saúde mental de idosos – começou uma pesquisa para avaliar tanto a eficácia do método em garantir o bem-estar dos pacientes quanto a viabilidade de aplicá-lo em instituições bem maiores do que a de Burford. “Nos manuais sobre saúde mental, não encontramos a recomendação de reforçar as fantasias dos doentes”, afirma McCrae. “Entretanto, na prática, é o que as melhores enfermeiras e os melhores cuidadores acabam fazendo.” A técnica de Garner permitiu a muitos portadores de demência driblar o pânico e o sofrimento para atravessar os derradeiros anos num estado de ilusão feliz – como isso pode ser considerado incorreto?
Tempos atrás, o filósofo Robert Nozick levantou uma hipótese: imagine a possibilidade de conectar alguém a uma máquina que lhe proporcionasse usufruir de qualquer experiência à sua escolha pelo resto de seus dias. A cobaia em questão teria a impressão de viver a experiência, ainda que não se tratasse de algo real. Será que haveria candidatos dispostos a se conectar à máquina? Nozick pensava que não, porque – como argumenta a especialista em ética médica Maartje Schermer – “a gente não deseja apenas experimentar ilusoriamente certas coisas, mas também fazer aquilo de fato, ser um tipo específico de pessoa e viver em contato com a realidade”. Schermer acredita que o recurso às fantasias no tratamento da demência lembra a tal máquina e, por isso, deve ser encarado com algum ceticismo. Ela pondera, no entanto, que os danos provocados pela doença num indivíduo podem colocar em xeque tal ceticismo.
“A máquina indica que uma vida satisfatória não é composta apenas de experiências virtuais”, afirma a especialista. “O bem-estar transcende as sensações agradáveis. Mas isso não significa que experiências ilusórias e prazerosas sejam desprovidas de qualquer valor.” Rejeitar por princípio o recurso a fantasias positivas lhe soa puritano e rígido demais. Afinal, depois que perde a capacidade de distinguir entre o verdadeiro e o falso, ou mesmo de acreditar em algo, o paciente de demência deixa de ser afetado por mentiras. “Quando só existe a dor, sem a possibilidade de compreendê-la, de absorvê-la e até de se lembrar dela por um breve momento, a verdade já não contribui para uma vida boa e plena.”
Era hora dos exercícios cognitivos matinais de terça-feira no Lantern. Kelly, enfermeira da unidade de terapia da memória, distribuía aos pacientes folhas de papel em que as letras do alfabeto apareciam tracejadas para que pudessem ser completadas com linhas contínuas. Certos residentes faziam os exercícios com grande facilidade e outros nem conseguiam começar. Muito concentrada, Rachel desenhava as letras cuidadosamente, mas só enxergava as que estavam à esquerda. “Jimmy, escreva uma frase qualquer”, pediu Kelly, oferecendo um lápis. Jimmy Carter, de 70 e tantos anos, destacava-se como um dos pacientes mais capazes do grupo. Ele pegou o lápis e anotou: “Eu, Jim Carter, gostaria de usar a esperança para sair deste lamaçal.”
O idoso costumava fazer piadas, embora sofresse por não poder deixar o asilo. “Não entendo como vim parar aqui”, dizia. “Nunca me contaram. Só me largaram neste lugar e pronto. Noto que alguns doentes estão mal. Mas eu… Eu não devia estar aqui.” Kelly olhou por cima do ombro dele e leu a frase. “Por que você não conta algo sobre sua empresa?”, sugeriu. Carter, então, escreveu: “Minha mulher e eu começamos nossa empresa em parceria com nossas três filhas. Estamos há quatro anos nisso.” Um paciente de nome Paul sentou-se à frente de Jimmy Carter para desenhá-lo. O retrato ficou muito bom. George, que cochilava, acordou e se pôs a entoar a canção Yankee Doodle Dandy com sua voz grave, enquanto batia as mãos nos braços da cadeira para marcar o ritmo.
Jim Beitel continuava inquieto e caminhando a esmo, mas parecia menos angustiado do que na véspera. Quando tentou abrir uma porta trancada, um alarme disparou. Ele levantou as mãos, fingindo medo, riu baixinho e seguiu adiante. Na entrada do refeitório, quase esbarrou em Carmen e ficou se movendo jocosamente, como quem não sabe para onde ir. Carmen não achou graça e esperou Beitel parar. Ele voltou ao salão central, onde localizou a cesta de basquete e as bolas de borracha. Uma funcionária o avistou com uma das bolas – pequena, cor de laranja – nas mãos e lhe mostrou uma de praia, maior. Beitel não conseguiu dizer nada, mas arregalou os olhos e jogou a cabeça para trás como se exclamasse: “Uau, que bola enorme!” Um minuto depois, se lembrou das palavras: “Essa é bem grande, né?”
Mais tarde, ao anoitecer, aproximou-se de Jimmy Carter, que descansava numa cadeira de balanço.
– Como você veio parar aqui? – perguntou Carter.
– Não sei! – respondeu Beitel.
– Os Beatles! – disse Carter apontando para a camiseta com a foto do quarteto na Abbey Road que Beitel usava. – Uma banda maravilhosa.
– E daí? – desdenhou Beitel.
– Você descobriu algum modo de dar o fora daqui? – emendou Carter.
– Não.
– Eu também não.
Os dois caíram na risada.
Alguns dos que se dedicam ao estudo e tratamento da demência, especialmente os membros do Bradford Dementia Group, criado em 1992 pelo psicólogo Tom Kitwood na Universidade de Bradford, no Norte da Inglaterra, acham que encarar a doença como um flagelo é menosprezar os pacientes. Eles afirmam que, sob os devidos cuidados, um portador do transtorno pode viver tão bem quanto alguém saudável – e em determinados casos, dependendo do ponto de vista, até melhor. Às vezes, as relações entre os doentes e seus familiares se tornam mais íntimas e afetuosas, na medida em que a fala deixa de ser o único modo pelo qual se comunicam. Morto em 1998, Kitwood defendia que os pacientes tinham, inclusive, muito a ensinar. “Pessoas com demência frequentemente apresentam uma vida emocional intensa, sem as amarras habituais da inibição”, escreveu o psicólogo. Elas nos convidam, portanto, “a retomar aspectos de nossa existência que são muito antigos em termos evolutivos e mais sintonizados com o corpo, com o instinto”.
Edward Magee, residente do Lantern que raramente saía do quarto para participar de qualquer atividade, tem 84 anos e nasceu no Mississipi. Trabalhando como engenheiro eletricista em usinas nucleares, viajou pelo mundo. Morou na Indonésia, na China e no México. Depois que se aposentou, vivia sozinho na Flórida – era divorciado e a ex-mulher já havia morrido. A filha deles, Linda, começou a perceber que, em conversas telefônicas, o pai repetia inúmeras vezes as mesmas perguntas. Um dia, Magee caiu, bateu a cabeça e desmaiou no jardim de casa. Foi diagnosticado com demência e logo transferido para o Lantern, que fica relativamente perto de onde Linda mora. Ela gostou de encontrar no asilo apetrechos que lhe pareceram adequados para pacientes do sexo masculino: uma cesta de basquete, uma mesa de pingue-pongue e até um tapete que simulava um campo de golfe. “Meu pai não toparia ficar numa bancada fazendo coelhinhos com caudas de algodão ou colando miçangas num livro de colorir.”
Linda evitava mentir para Magee – não por razões morais, mas por motivos práticos. Queria que o pai acessasse a realidade enquanto lhe fosse possível e, por isso, procurava mantê-lo sempre informado. Prendeu fotos de família nas paredes do alojamento paterno e as legendou com o nome de cada pessoa retratada. Arranjou um quadro branco em que redigia mensagens do tipo: “Não deixe de jantar!”; “Use sempre o aparelho de audição! Fique ligado!”; “Se está no calendário, é porque está certo.” Por algum tempo, Magee se atormentou com a ideia de que precisava visitar uma casa que possuía no Alabama. Linda, então, escreveu no quadro: “Você não tem de se mudar para o Alabama nem ver aquela casa. Você vai ficar aqui… em caráter permanente.”
Ela enfatizava que o pai iria permanecer no Lantern porque, apesar de compreender que estava internado, Magee parecia achar que se tratava de algo temporário e que receberia alta. Com frequência, o engenheiro manifestava a intenção de ir trabalhar e telefonava para Linda ou os irmãos dela. Pedia que viessem buscá-lo. Às vezes, um dos irmãos entrava no jogo e prometia que o pegaria, mas Linda se recusava a participar da farsa. Acreditava que o pai ainda dava conta da verdade. “Um dia, ele se aborreceu porque ninguém apareceu para buscá-lo. Eu expliquei: ‘Papai, você está aposentado desde 1998.’ Ele respondeu que não estava. Eu reiterei que estava, sim, e perguntei: ‘Cadê seu cartão de ponto?’ Papai respondeu: ‘No computador.’ Eu pedi que me mostrasse.” Quando Magee tentou encontrar a agenda de trabalho no computador, Linda começou a filmá-lo. Queria que o pai não se esquecesse daquele momento. “Depois de uns instantes, ele percebeu que não havia agenda nenhuma no computador. Virou-se para mim e disse: ‘Caramba, preciso voltar à realidade.’”
Magee costumava ligar inúmeras vezes no meio da noite, de tal maneira que Linda não conseguia mais dormir. Ela configurou o telefone para só tocar se a ligação partisse dos funcionários do asilo. As outras chamadas cairiam automaticamente na secretária eletrônica. Certa manhã, ao acordar, Linda viu que recebera vinte telefonemas de Magee entre uma e quatro da madrugada. “O primeiro dizia: ‘Oi, Linda, é seu pai. Só queria informar que sua mãe sumiu. Não sei onde foi parar. Vou pedir na recepção que avisem a polícia.’ Os recados seguintes indagavam: ‘Ei, cadê você, está no hospital, encheu a cara, acabou presa?’ Já as últimas mensagens começavam assim: ‘Alô, Annie, é o Edward.’ Annie era o nome de minha mãe.”
Magee já havia telefonado em outras ocasiões e agido de maneira idêntica: queria descobrir por onde andava a ex-mulher. Ele se esqueceu do divórcio e da morte dela. Sob a ótica de Linda, se o pai não introjetasse aquelas informações básicas, estaria perdido. Daí ela lutar ferozmente para que o engenheiro não naufragasse de vez. Naquela manhã, ligou de volta e ficou repetindo: “Mamãe morreu. Mamãe morreu. Mamãe morreu. Mamãe morreu.” No entanto, por mais que repetisse, sentia que a ficha do pai não caía. Então lhe ocorreu que precisava recuar no tempo. “Eu finalmente disse: ‘Annie morreu.’ Ele se calou por um momento e falou: ‘É verdade. Tinha me esquecido.’”
Embora a realidade perturbasse Magee, Linda não achava que deixar de forçar o pai a encará-la fosse um gesto piedoso. Muitos pacientes de demência – os que ainda dispõem de meios para se manifestar – tendem a concordar com ela. Poucos anos atrás, o psicólogo clínico Graham Stokes, especialista britânico no tratamento do distúrbio, organizou um estudo sobre questões éticas nessa seara e ouviu vários doentes. “Todos perguntavam: Por que vocês mentem justo quando nós estamos mais vulneráveis? Vocês gostariam que suas relações com outras pessoas se baseassem em mentiras? Por que vocês criam mundos falsos para nós? Por que dão aos asilos a aparência de bares ou cinemas?” Stokes diz que, diante de tais questionamentos, “a lâmpada acendeu”. “Percebi que, para os pacientes, o mais importante não é mentir ou cessar de mentir. É dar algum sentido à vida deles no presente em vez de mantê-los presos à nostalgia.”
Stokes figurava entre os profissionais que pressionaram a Sociedade Britânica de Alzheimer a divulgar uma nota contra o método de Penny Garner. Para o psicólogo, as mentiras – incluindo os mundos artificiais, as falsas paradas de ônibus – não passam de uma solução preguiçosa, de curto prazo, que contorna alguns problemas e cria outros. “Tudo isso só gera confusão. Realmente é um desafio cuidar de alguém que deseja muito voltar para casa. Mas também é uma oportunidade de conversar sobre o assunto com o paciente, que de fato está sentindo falta de um lar. Me parece bem mais produtivo do que inventar mentiras deslavadas, como um ponto fictício de ônibus.”
Os engodos também trazem dilemas práticos. A demência não costuma avançar a um ritmo constante. Na maioria dos casos, doentes que se encontram nos primeiros estágios ou em estágios intermediários da enfermidade alternam períodos de confusão com rasgos de lucidez. Suponha que você diga a um paciente que a mãe dele vem buscá-lo. Se naquele exato momento o doente tiver um lapso de consciência e se recordar de que a mãe morreu há mais de trinta anos, acabará concluindo que você não merece confiança. Pior: ele pode passar a desconfiar de todo mundo. Mesmo que venha a esquecer o motivo da desconfiança, há a possibilidade de a sensação permanecer. (Um estudo publicado em 2014 na revista Cognitive and Behavioral Neurology concluiu que, nos pacientes com mal de Alzheimer, as emoções persistem muito além da lembrança daquilo que as gerou.) Caso o portador de demência nunca perceba o quanto está sendo manipulado por alguém, ainda assim perderá alguma coisa nessa relação.
Existe igualmente o risco das contradições. O que aconteceria se um doente perguntasse pela mãe e alguém respondesse “Ela foi às compras” enquanto outra pessoa dissesse “Sinto muito, mas sua mãe morreu” e uma terceira completasse com “Você está triste?” Essa não é uma questão menor. Vários pacientes já suspeitam de todos que os rodeiam. Uns desconfiam de que lhes contam mentiras (não raro, com razão) ou de que seus parentes são, na verdade, impostores. Outros lamentam o desaparecimento de objetos pessoais (e nisso podem, mais uma vez, ter razão, pois é comum que os residentes de asilos entrem em quartos alheios e peguem coisas que não lhes pertencem). Há os que acreditam correr perigo de alguma agressão e os que creem que seus filhos foram sequestrados por cuidadores. Ainda que não cultivem ideias tão perturbadoras, os doentes podem notar que, depois de diagnosticados, passaram a ser vistos como se estivessem confusos o tempo inteiro, mesmo que não estejam. Assim, acabam concluindo que as pessoas duvidam de tudo o que dizem e que tomam decisões por eles sem consultá-los. Elevar o grau de desconfiança nos pacientes é, portanto, um grande risco que familiares e cuidadores assumem quando recorrem ao logro com a intenção de justamente aliviar a ansiedade dos doentes.
Existe, por fim, mais uma questão: mentir tende a desencadear uma série de desrespeitos contra os portadores de demência. “A maioria dos cuidadores exerce o ofício em caráter temporário e nem todos possuem um alto nível de instrução”, afirma Graham Stokes. “Quando veem um familiar mentindo para o paciente, eles podem interpretar isso como um sinal de que o doente não é propriamente uma pessoa. Em decorrência, tornam-se mais negligentes. Deixam, por exemplo, que o paciente use o banheiro sem fechar a porta, coisa que habitualmente não permitiriam.”
É possível lidar com as farsas por meio de documentos em que o doente especifica qual tratamento deseja no futuro se vier a perder a capacidade de tomar decisões. Alguém que valorize a satisfação pode escolher as mentiras e os remédios. Já quem considera que viver com demência avançada não vale a pena pode optar pela realidade e pela morte. O problema é que tais documentos acabam suscitando alguns impasses. Imagine que uma mulher tenha resolvido não ser enganada e que, ao atingir os estágios mais graves da doença, comece a amargar uma aflição terrível em consequência daquela resolução. Os familiares deveriam respeitar a escolha dela? Ou, então, considere que um homem tenha autorizado a suspensão de qualquer tratamento, mesmo com antibióticos, no caso de manifestar demência severa e que, quando o transtorno se instala, ele pareça satisfeito – ainda sinta prazer em receber visitas (embora não consiga identificá-las), comer, ouvir música e caminhar ao sol. É legítimo acatar a decisão anterior e precipitar a morte dele?
O filósofo Ronald Dworkin, falecido em 2013, acreditava que as diretrizes expostas nesses documentos precisavam ser acatadas. Os humanos, argumentava, não vivem somente em função do prazer. Também desejam preservar a dignidade e manter a coerência de suas trajetórias. As pessoas temem a dependência total na última fase da demência não só pelos transtornos que causarão, mas também porque não querem distorcer suas biografias. Para alguns, a perspectiva de passar o resto da vida sob o império de prazeres pueris e mentiras benevolentes não significa alívio e, sim, horror. Nessas circunstâncias, bem como nos casos de estado vegetativo irreversível, não é legítimo contrariar as resoluções antecipadas dos pacientes, dizia Dworkin.
Segundo o raciocínio do filósofo, aquele homem que temia a fase derradeira da demência e o que, depois, se mostrou perfeitamente satisfeito eram o mesmo. Suponha, porém, que o homem satisfeito já não tivesse lembranças de quem havia sido. Ainda poderia ser considerado o mesmo? Caso fosse visto como outro indivíduo, seria correto pôr fim à vida feliz dele em nome da dignidade de alguém que já não existia? E a opinião dos parentes, contaria? Importaria saber se, nas etapas mais avançadas da doença, a família ainda enxergava o paciente como a pessoa de quem gostara? Se ainda o considerava presente, apesar de tantas mudanças? Se ainda reconhecia o cheiro, os olhos e as mãos dele? Os humanos devem ser definidos por seus pensamentos e memórias? As emoções e os corpos não bastam?
Em geral, os partidários da mentira pensam acima de tudo, ou exclusivamente, na felicidade a curto prazo do doente. Eles se perguntam: uma farsa bem estruturada pode atenuar sofrimentos imediatos? É a atitude mais gentil a tomar? No entanto, como pondera a filósofa Sissela Bok – autora do livro Lying (Mentindo), de 1978 –, os portadores de demência não são os únicos que contam e nenhuma mentira pode ser encarada como um fato isolado. “Há que se ter muito cuidado”, alerta. “Convém avaliar quais danos a mentira provoca e levar em conta que as consequências dela também recaem sobre quem mente. Que mal farei para mim mesmo se o ato de mentir virar um hábito? Vou me permitir enganar ainda que sem necessidade? Se aceito lançar mão de mentiras com um paciente, por que não aceitarei em outras circunstâncias?” A filósofa diz que é fácil encarar uma impostura como algo caridoso e inofensivo. Só que a maioria das mentiras prejudica alguém. A mentira se assemelha à violência, porque pode forçar as pessoas a agirem contra a própria vontade. Mesmo a mentira bondosa corre o risco de se converter numa espécie de paternalismo coercitivo e gerar corrupção, como qualquer exercício irrestrito de poder.
Além disso, o que está em jogo não é apenas o caráter de quem mente, mas também o de quem presencia as falsidades. “Digamos que se trate de uma família com crianças”, prossegue Bok. “Como os pequenos aprenderão a distinguir as mentiras contadas para um doente das disseminadas em outras situações?” O compromisso das sociedades com a verdade se revela bastante frágil, na opinião da filósofa. Só pode ser preservado se cada um acreditar que todos estão empenhados nessa tarefa. “O verniz da confiança social é fininho”, escreveu Bok em Lying. “À medida que as mentiras se multiplicam – por imitação, ou em retaliação, ou para evitar alguma constatação –, a confiança vai se deteriorando. Acontece que a confiança é um bem público que precisa de proteção tanto quanto o ar que respiramos e a água que bebemos… Quando a confiança é destruída, as sociedades se desfazem e desmoronam.”
A poucos quilômetros de Amsterdã, na pequena cidade de Weesp, fica Hogeweyk, o asilo para portadores de demência avançada que adotou pioneiramente muitas das ideias agora aplicadas tanto no Lantern quanto em outras partes do mundo. A casa de repouso europeia, fundada em 2008, é bem mais sofisticada que a norte-americana. Ocupa uma área de quase 15 mil m2 e reúne construções de dois andares que evocam um bairro moderno de alguma cidade holandesa. A entrada principal abre-se para um pátio com uma fonte, cercada de árvores e arbustos floridos. Num dos cantos, há um teatro, onde regularmente se montam espetáculos. Em outro canto, uma porta de vidro conduz a um diminuto centro comercial. Ali se encontram um restaurante, o Café de Hogeweyk, um mercado e uma sala para aulas de arte e culinária. Do pátio, sai um corredor que leva a um centro de fisioterapia e ao salão Mozart, que abriga as reuniões do clube de música clássica. O corredor também dá acesso a outros pátios, onde se localizam as residências dos internos.
A equipe da instituição refere-se aos lugares por onde os doentes transitam como “cenário”. Os “bastidores” – a infraestrutura administrativa e médica – não ficam à vista dos pacientes. Ao longo de todo o asilo, nota-se a preocupação com os detalhes. O salão Mozart, por exemplo, exibe lustres rebuscados, espelhos com molduras douradas e bustos de compositores famosos para criar um ambiente reconhecível pelos admiradores de música erudita. O Hogeweyk considera que os passatempos e atividades sociais destinados aos residentes são mais agradáveis quando ocorrem em locais apropriados e não nos dormitórios, que devem se parecer com lares. Afinal, não é comum que estranhos entrem na sala de uma residência dizendo para os moradores começarem a tricotar, cozinhar ou ouvir Mozart. Embora o Hogeweyk lembre um bairro cenográfico, nem tudo é completamente falso. No mercado, por exemplo, quase não se veem etiquetas de preço porque a maioria das transações não envolve dinheiro, mas a comida é de verdade e usada na preparação de refeições pelos doentes. Quando os funcionários levam os internos para comprar algo ali, os produtos passam por um caixa.
Os criadores do Hogeweyk queriam que a rotina no asilo lembrasse a de fora. Para tanto, acreditavam que os pacientes deveriam viver em pequenos grupos, com sete pessoas no máximo, como se fossem famílias. Os membros de cada grupo precisariam ter origens, gostos e ideias semelhantes. Assim, as 27 residências que compõem a instituição se dividem em diferentes tipos. As casas Gooise destinam-se à alta burguesia (o nome deriva de Het Gooi, região próspera no centro da Holanda). Lá, se toca música clássica, tomam-se vinhos ou drinques e cultivam-se maneiras mais polidas. Os integrantes desse grupo comem em mesas bem-postas, sob lustres em formato de candelabros. O jantar é servido em pratos individuais, como num restaurante, e não em travessas. Já as casas do tipo urbano abrigam moradores de hábitos informais, que gostam de cores vivas, música popular e cerveja. As residências em estilo caseiro têm decoração mais simples. Ali se escuta música folclórica e as refeições são tradicionais, com muita batata e sem pratos de origem estrangeira, como massas italianas. Antes, a instituição também contava com uma casa cristã e outra para os remanescentes das antigas Índias Orientais Holandesas,[2] em que os cômodos eram mantidos sob temperatura e umidade superiores às das demais residências.
O staff do Hogeweyk considera que os portadores de demência já não estão abertos para o novo. Daí o asilo priorizar a familiaridade, o conforto e a reunião de pessoas com interesses similares. Embora algumas das moradias sejam mais luxuosas – as casas Gooise possuem roupas de cama e louças refinadas, por exemplo –, todos os pacientes pagam o mesmo. Pouco antes de eles se mudarem, seus familiares são entrevistados para que a equipe descubra em que tipo de habitação os doentes se encaixariam melhor.
Na tentativa de deixar as casas bem parecidas com um lar, o preparo das refeições ocorre dentro das próprias moradias e não numa cozinha central. De manhã, os funcionários de cada residência vão ao mercado, em geral acompanhados de um paciente, para escolher os suprimentos que serão consumidos durante o dia. Os doentes podem ajudar a fazer a comida ou a lavar a louça, o que torna o cotidiano menos monótono. Mesmo que não queiram cooperar (nas moradias da área Gooise, dificilmente querem), acabam sentindo o cheiro das refeições sendo preparadas. Isso diminui a probabilidade de se surpreenderem quando um prato aparece diante deles e alguém os convida a comer.
O Hogeweyk almeja se diferenciar em tudo dos asilos tradicionais. “Nas casas de repouso comuns, você passa o tempo inteiro trancado com um grupo enorme de internos e com enfermeiros de uniforme branco que pedem: ‘Fique sentado, por favor, fique sentado’”, diz Eloy van Hal, um dos fundadores da instituição holandesa. Num asilo convencional, os pacientes se acomodam em cadeiras distribuídas por salas grandes e barulhentas, com a televisão ligada em alto volume. Veem-se rodeados por um bando de desconhecidos e por funcionários agitados. As luzes são fortes demais. Os móveis e os quadros, horríveis. Não há nada para fazer, exceto atividades infantis, e nenhum lugar para ir, já que os doentes quase nunca saem ao ar livre. Nesse contexto, concluem Van Hal e seus colaboradores, é natural que os residentes se comportem de maneira hostil, esmurrando as mesas, gritando, chutando as portas e tentando fugir.
O portão principal do Hogeweyk permanece sempre trancado. Muitos doentes costumam andar a esmo e correm o risco de se perder caso saiam desacompanhados. Dentro do asilo, porém, os internos capazes de se deslocar sem ajuda passeiam por onde desejam. Alguns especialistas alertaram o staff do perigo de tais passeios, já que certos pacientes poderiam entrar na fonte ou comer as folhas das plantas. Mesmo assim, os fundadores preferiram apostar na liberdade. Desde que a instituição começou a funcionar, apenas uma residente invadiu a fonte. Fez a travessura de propósito, para aborrecer os cuidadores, porque se irritou com a proibição de sair sozinha.
De manhã bem cedo, alguns funcionários e pacientes deixaram as casas da vilazinha e foram às compras enquanto os membros do clube do forno se encaminhavam para a sala de culinária. Por todo o centro comercial, ouvia-se um agradável burburinho – cuidadores trocavam cumprimentos, carrinhos de supermercado sacolejavam no chão de lajotas e acordes de jazz ecoavam pelo Café de Hogeweyk. Uma senhora com echarpe lilás e jaqueta cor-de-rosa choque pilotava uma cadeira de rodas motorizada. Outra mulher, de jeans vermelho e casaco roxo, cruzou rapidamente o centro comercial, segurando uma bolsa grande, e voltou pouco depois, sempre em passo acelerado. Uma idosa de ar aflito, com uma longa trança grisalha, andava devagar, falando baixinho consigo mesma.
No fim da manhã, um grupo de jovens mães se reuniu no pátio principal. Semanas antes, um cuidador avistara uma mulher brincando com o filho no tímido gramado de uma rua vizinha e a convidou para levar o bebê até os jardins espaçosos do Hogeweyk. A partir de então, entre dez e doze mães almoçavam no asilo às quartas-feiras e deixavam as crianças soltas por lá. Como os residentes não podem sair, a casa de repouso busca atrair o público externo. É justamente para seduzir os clientes de fora que a decoração do restaurante se assemelha à de um estabelecimento urbano chique, com belos lustres e um bar iluminado. Perto do meio-dia, dois agentes funerários – um homem e uma mulher, ambos vestidos de preto – atravessaram depressa o centro comercial rumo às moradias. Retornaram logo depois, carregando um caixão, e passaram pelas mães e crianças.
As jovens recolheram os filhos assim que terminaram de almoçar e foram embora. Trajando uma parca bege, um senhor que estivera inquieto durante toda a manhã se aproximou das mesas agora vazias. Pegou as cadeiras uma a uma e as reorganizou de acordo com o formato. Em seguida, catou as folhas mortas e o lixo que se espalhavam pelo chão.
Havia um concerto de piano e harpa marcado para as 14h30 no centro comercial. Duas fileiras de assentos se estendiam em frente aos instrumentos, e cada residente foi conduzido até uma cadeira. Antes da apresentação, um funcionário que empurrava um carrinho ofereceu ao público copos cheios de advocaat, tradicional licor holandês que tem a aparência de uma gemada grossa – hoje a bebida já não é muito consumida, mas as gerações mais velhas costumavam servi-la em ocasiões especiais.
A pianista tocou composições antigas que todos conheciam – Edelweiss, O Sole Mio, Danúbio Azul, Moon River. Na plateia, muitos cantaram: mesmo os portadores de demência que não falam mais às vezes ainda conseguem se lembrar de letras de música. Depois, a harpista também executou composições bem populares – Jesus, Alegria dos Homens, de Bach, Ode à Alegria, de Beethoven, e Berceuse, de Brahms. No meio do público, uma senhora de casaco azul sabia a letra de Berceuse e a entoou vigorosamente. Um homem numa cadeira de rodas, vestindo um blazer cinza claro, marcou o andamento com os olhos e uma expressão de imensa felicidade.
Algumas pessoas – as que ainda conseguiam – resolveram dançar. Levantaram-se das cadeiras, de mãos dadas com os funcionários, e se puseram a balançar lentamente, de um lado para o outro. A idosa com trança grisalha e ar aflito andou até a metade da pista, parou e ficou escutando o piano. De pé, a harpista sorriu e lhe estendeu as mãos. A idosa devolveu o sorriso, aceitou as mãos estendidas e começou a se mexer ao ritmo da música. O homem de parca bege, que passara a manhã inteira em movimento, agora estava sentado na última fila da plateia. A música não soava falsa nem verdadeira. Evocava tanto o passado quanto o presente e podia ser compreendida sem medo de confusão ou esquecimento.
A harpista tocou Greensleeves. A pianista executou Für Elise. O pessoal do administrativo que saía de uma reunião no segundo piso do centro comercial se apoiou na balaustrada de uma varanda para escutar as músicas com os residentes.
[1] A demência por corpos de Lewy (DCL) resulta da degeneração e morte de células nervosas no cérebro. Tais células se deterioram quando apresentam depósitos anormais de proteína, os “corpos de Lewy”. A DCL é um dos tipos mais comuns de demência e apresenta sintomas parecidos com os do mal de Alzheimer.
[2] Colônia holandesa que abrangia todo o território da atual Indonésia.