ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
A casa dos mortos
A profissional que cuida dos pertences de quem se foi
Mari Faria | Edição 192, Setembro 2022
Quando o professor de química aposentado Marciano Coelho morreu, aos 70 anos, em junho de 2020, coube às filhas, Cintia e Flavia, lidarem com o luto. Os objetos que ele deixou em seu apartamento, no Rio de Janeiro, ficaram a cargo da produtora de shows Patrícia Silva.
Nos cerca de 60 m2 do imóvel no bairro da Tijuca havia roupas, lençóis, toalhas, livros, objetos de decoração, documentos, notas fiscais, eletrodomésticos, mochilas e dezenas de ferramentas. Havia também os objetos que ele utilizava em seu hobby, a pescaria, como carretilhas, varas (cerca de 50), molinetes (quase 80) e anzóis (inúmeros). Silva também encontrou uma dezena de embalagens cilíndricas de vitamina C efervescente cheias de palitos de fósforo. O fechamento hermético dos potinhos mantinha os fósforos secos durante as pescarias de Coelho no Pantanal.
Sem nenhum parentesco com a família, a produtora foi contratada para dispor desses objetos porque Cintia e Flavia haviam se desgastado com uma tarefa similar em 2019, quando morreu a mãe delas, Heliodora. “Eu e minha irmã ficávamos enrolando para voltar ao apartamento da minha mãe e continuar com o trabalho de tirar os pequenos objetos”, conta Flavia. “Entre idas e vindas, essa demora durou uns quatro meses. Patrícia foi muito rápida ao fazer esse trabalho com as coisas do meu pai. Tipo um mês e meio. Foi um grande alívio para nós.”
Patrícia Silva tem 47 anos e trabalhou como produtora de eventos. Hoje, atua sobretudo no backstage dos artistas Fernanda Abreu e Toni Garrido. Nascida em São Paulo, onde cursou psicologia, se mudou para o Rio em 2000 para organizar na Uerj a Segunda Bienal de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE), realizada no ano seguinte. Na época, foi convidada a trabalhar com a então reitora, Nilcéa Freire, responsável pela implantação pioneira do sistema de cotas raciais na universidade. Silva aceitou o convite e depois seguiu com Freire para Brasília, quando a reitora foi empossada ministra-chefe da Secretaria de Políticas para as Mulheres do governo Lula, em 2004.
A primeira vez que a produtora organizou a retirada dos pertences da casa de um morto foi em maio de 2019. Uma amiga ligou para fazer o pedido difícil: “Pati, eu não consigo desmontar a casa do meu pai. Não tenho condição emocional. Você pode fazer esse serviço para mim?” Não era só a amizade que motivava o pedido: nos dez anos anteriores, Silva às vezes organizava a mudança de amigos. Seu tino para planejamento e gestão, tão importante na produção de eventos, facilitava o serviço. “Perdi as contas de quantas mudanças fiz. As pessoas surtam quando falam em se mudar. Eu vou até lá e vejo tudo: se todos os tupperwares têm tampa e se o sofá entra na casa nova”, conta.
Ela já ajudou pessoas sem tempo livre a organizar suas coisas – e até pessoas que querem se ver livres de outras pessoas: “Uma amiga se separou e me pediu que eu fosse na casa dela, juntasse tudo que era do rapaz, encaixotasse, mandasse entregar na casa da mãe dele e trocasse a fechadura do apartamento.”
Até agora, Patrícia Silva realizou quatro “mudanças post mortem”, como ela diz. O trabalho se divide em três etapas. A primeira é a triagem, que ela realiza separando a casa – e a vida – do falecido em setores. Abre gavetas e caixas, verifica as prateleiras e organiza os objetos, fotos e documentos, um a um. “Quando você mexe na casa da pessoa, precisa ter um olhar afetivo, não só organizacional. Às vezes, você acha um terço dentro de uma caixinha. Para quem está só organizando, é um nada, e às vezes para a família aquilo é uma recordação de gerações”, ensina. Na categoria “documentos”, ela inclui não apenas as carteiras de identidade e de motorista, mas também aqueles papéis que dão significado a uma vida. “Já juntei numa pasta todos os desenhos que uma neta fez para a avó. Não posso considerar lixo o carinho de uma neta.”
Com tudo catalogado, começa a segunda etapa, quando Silva entra em contato com a família para combinar o que será doado e o que será vendido. Ela tenta incomodar os familiares o mínimo possível, mas algumas intervenções se fazem necessárias. “Num primeiro momento, muita gente diz: ‘Dá tudo, não quero nem ver.’ E aí eu respondo: ‘Calma, vamos esperar um pouco, você pode precisar de mais tempo.’” Em geral, os familiares precisam de quinze dias até se sentirem aptos a revisar os pertences do morto com serenidade.
A fase final é mais objetiva: Silva pesquisa na internet os preços médios dos itens a serem vendidos e apresenta uma tabela para a família. Pela carga emocional envolvida, seria de se imaginar que as primeiras duas fases são mais exigentes. Mas a última é mais difícil. No caso de Marciano Coelho, as carretilhas, varas, linhas e anzóis só foram vendidos depois de dias de ligações para associações de pesca e de várias pesquisas em grupos de Facebook. O processo só andou quando o integrante de um grupo online de pescadores foi autorizado a ver o material de perto. Esse pescador levou parte das varas e indicou outros compradores.
O preço cobrado pela desmontagem da casa depende do tamanho do imóvel e dos objetos que a pessoa deixou, mas os valores começam em 2 mil reais. Silva também recebe uma porcentagem pelo que consegue vender. Atualmente, em meio à produção de shows de Fernanda Abreu, ela está desmontando duas casas. Sobre uma delas, não pode comentar nada, pois assinou um contrato de confidencialidade. O outro serviço é o apartamento da mãe de Cintia e Flavia. As duas irmãs haviam acionado a produtora quando ainda elaboravam o luto do pai e agora a contrataram para desfazer de itens mais pesados e antigos da mãe, como móveis e quadros.
O serviço deve terminar até o final deste mês. É o tempo que Patrícia Silva tem para atenuar mais esse luto e dar um destino ao que os mortos deixaram para trás.
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