ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2009
Castigo Magistral
As sentenças literárias de um juiz de Natal
Alex de Souza | Edição 29, Fevereiro 2009
Não se sabe que romances teriam afetado o juízo do advogado Mário Azevedo Jambo. O certo é que um dia, em dezembro de 2000, ele decidiu largar o emprego num banco estatal, em Brasília, para arriscar a sorte como magistrado. Com muito estudo – e leitura –, a empreitada acabou dando certo. Seis anos depois, já exercendo o ofício de juiz federal, Jambo foi transferido para Natal, no Rio Grande do Norte, na condição de substituto na 2ª Vara Federal Criminal. Foi então que uma idéia pouco ortodoxa lhe passou pela cabeça.
Indignado com a condição dos presídios nacionais, Jambo passou a determinar punições alternativas que poderiam ser descritas, no mínimo, como idiossincráticas. Resolvendo uma espécie de equação toda sua, ele atribui a pena conforme um peculiar arranjo de variáveis. Para chefe de tráfico, não há dúvida: é cadeia na hora. Já um jovem traficante de primeira viagem, dependendo de quanta droga carrega, candidata-se a pena mais branda – bem mais branda. “Percebi que esses traficantes são jovens, pobres e filhos de pais separados”, disse. “Além disso, a maioria havia abandonado os estudos.” Então, pensou, que voltassem aos estudos.
Assim foi com a estudante de direito Estela Taques, presa em flagrante no aeroporto de Natal, em maio de 2007, quando voltava da Holanda com 4,6 quilos de maconha e 20 mil comprimidos de ecstasy. Era crime para cinco anos de cadeia, no mínimo. Quando a sentença foi proferida, Estela teve a boa surpresa: havia sido condenada a dois anos e meio em regime aberto, desde que concluísse a universidade.
Jambo se permite uma linguagem menos técnica do que a costumeiramente adotada nas sentenças penais. Eivado de um lirismo contido, o texto dizia: “Aqui a sentença penal não é ato de vingança, mas ato de amor, de um amor equilibrado, que pune quando necessário.” Para não facilitar a vida da ré, o magistrado aplicou-lhe uma multa de 2 533 reais parcelados. “O número de parcelas será igual à média final dela no primeiro ano”, explicou ele, feliz com o dispositivo. Resumindo: se tirar dez, Estela paga em dez vezes. Se tirar cinco, em cinco. (Há uma torcida para que ela não tire zero.)
Jambo decidiu então dar um passo adiante nos seus bons propósitos legais. Sim, era ótimo que os seus condenados voltassem às aulas, mas, em face da precariedade geral da educação brasileira, quem lhes garantiria um ensino de qualidade? O juiz pensou, pensou e chegou a uma solução magistral: ele próprio.
Em abril de 2008, ao receber quatro hackers presos por roubo de senhas bancárias, achou que era o momento de pôr o plano em marcha. “Um dos rapazes, o Patrick, de 18 anos, era um gênio, um programador de mão-cheia. No dia da audiência, esse menino começou a chorar de um jeito… Com o tempo, você acaba identificando os que querem te enganar. O Patrick só chorava”, lembra-se Jambo. Era um rapaz sincero.
Compadecido, o juiz concedeu liberdade provisória aos quatro acusados, com uma condição: que lessem Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e A Hora e Vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa. Não eram livros escolhidos a esmo. “Durante a audiência, eles disseram que tinham se envolvido no esquema por falta de dinheiro. Eu pensei: vão ler para ver o que é passar dificuldade na vida.” E Guimarães Rosa? “Esse eu indiquei para mostrar que é possível a recuperação de uma pessoa”, diz, referindo-se ao conto do matador que busca se regenerar. (Há controvérsias quanto ao poder regenerativo da história, visto que Augusto Matraga acaba matando seu desafeto.)
A cada três meses, os rapazes deverão entregar ao juiz, pessoalmente, breves ensaios sobre o que leram, sempre escritos à mão para evitar o recorta-e-cola da internet. Ao término da pena – que será definido pelo término das leituras –, Jambo aplicará um questionário: “A prova vai versar sobre pontos específicos do texto, e também exigirá que eles reflitam sobre o impacto que a leitura teve sobre eles.”
No Ministério Público Federal, acostumado à lógica segundo a qual lugar de ladrão é na prisão, as sentenças de Mário Jambo têm causado mal-estar. Os procuradores da República não gostam de ver um praticante do tráfico de drogas – crime considerado hediondo desde 1990 – ir para casa com um livro embaixo do braço. Algumas decisões do juiz foram contestadas nas instâncias superiores da Justiça Federal. “Até me acusaram de patrulhamento ideológico por causa da escolha dos livros”, reclama Jambo.
Apesar dos obstáculos, ele insiste nas inovações. Em dezembro último, confrontado com mais um caso de tráfico internacional, ele resolveu internacionalizar a pena. Certo de que um cidadão francês haveria de preferir um Proust a um Joyce e de que um inglês se espelharia melhor em Shakespeare do que em Machado de Assis, Jambo obrigou a portuguesa Íris (cujo sobrenome foi mantido em sigilo) a encarar Fernando Pessoa. “Embora ela tenha nascido em Portugal, nunca tinha lido Pessoa. Achei que deveria.”
Na sentença, proferida em novembro passado, Jambo intimou a ré “a comparecer e permanecer, diariamente, nos dias úteis, no horário entre 14 e 17h, na biblioteca da Justiça Federal do Rio Grande do Norte, para realizar trabalho de próprio punho sobre o poeta”. O juiz lhe prescreveu Poema em Linha Reta, O Guardador de Rebanhos, A Liberdade, Sim, a Liberdade! e Saí do Comboio, entre outras obras. (Por se tratar de uma traficante internacional, ele talvez tenha preferido mantê-la longe dos versos da Tabacaria: “Depois deito-me para trás na cadeira/ E continuo fumando./ Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.”)