A Ana entrou na nossa vida três anos atrás. No nosso primeiro encontro, nós três já nos beijamos. Quando decidimos morar juntas, a Ana teve que se acostumar com as nossas manias FOTO: CACÁ HERMETO_2016
Cenas de um casamento
O trio de mulheres que divide a cama e a vida no Rio de Janeiro
Verônica, Nina e Ana | Edição 115, Abril 2016
Foi em outubro de 2015 que Verônica, Nina e Ana formalizaram a primeira união estável entre três mulheres no Brasil. O documento foi lavrado no Rio de Janeiro, onde elas vivem juntas há três anos. Verônica é empresária, Nina é gerente administrativa, Ana é dentista (as profissões e todos os demais detalhes são reais; os nomes foram modificados). Neste diário, escrito a seis mãos, elas falam de preconceito, maternidade e da complexa equação que permite acomodar três pessoas numa cama para duas.
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VERÔNICA, 32 ANOS, PEQUENA EMPRESÁRIA
30 DE NOVEMBRO DE 2015, SEGUNDA-FEIRA_As meninas me acordaram às 7 horas. Tomei café e fui deitar no sofá, estava com cólica e sono. Elas saíram para o trabalho. Fico mais em casa, tenho uma loja online de camisetas – blusas com estampas de cineastas, cenas de filmes, pop art, cultura em geral. Crio as estampas e faço algumas montagens de imagens. Sou formada em cinema e já trabalhei como produtora em grandes empresas.
Quando levantei, já eram quase dez da manhã. Resolvi algumas questões com o pedreiro sobre a reforma do apartamento que tenho nos fundos do prédio. Decidi alugar. De tarde, fiz café enquanto esperava a Nina chegar. Tomei banho e levei o Friedrich Nietzsche, nosso cachorro vira-lata, para passear. Sim, o mesmo nome do filósofo.
Logo ao anoitecer, as meninas voltaram. Jantamos e fomos dormir.
1º DE DEZEMBRO, TERÇA-FEIRA_Fiquei em casa resolvendo a contabilidade da família. Temos um planejamento mensal, com planilhas e registros dos gastos.
Amanhã tenho prova no curso de francês. Acho importante aprender uma nova língua. Quem sabe um dia não vamos à França? Tenho o sonho de conhecer os lugares onde foram rodados os filmes do Woody Allen, do Godard, e de tomar café em algum café parisiense. Sou fumante e consumidora compulsiva de café. Sei que num futuro próximo terei que largar o cigarro, já que pretendo engravidar.
2 DE DEZEMBRO, QUARTA-FEIRA_Minha mãe me ligou para perguntar sobre o pedreiro. Ela é uma ótima mãe. Sempre me assumi, ela me apoia em tudo e sabe do nosso casamento em trio. Mas nossa relação é um pouco distante, desde a infância. Ela é mais ligada ao meu irmão. Talvez por eu ser mais parecida com meu pai, não sei bem. Freud deve explicar.
Meu pai morreu de câncer há dois anos. Hoje ouvi Beatles e me lembrei dele. Ele me passou tudo que podia. Gosto de livros, músicas e filmes por causa dele. Éramos unha e carne, tipo irmãos, uma coisa cármica – sinto muita falta dele e ainda me pego chorando de vez em quando, antes de dormir ou, sozinha em casa, ouvindo Beatles, Jimi Hendrix ou Rolling Stones. Mas sei que ele deve estar por aí. Acredito em reencarnação.
Somos budistas. Duas vezes por semana frequentamos uma comunidade em Ipanema da linha Nitiren, a mesma da Angelina Jolie e do Brad Pitt. Não acredito que exista um deus que determine a nossa vida. Fazemos nossa própria história, pela lei de causa e efeito.
Nina chegou, conversamos sobre coisas da casa e fui dar um passeio com o Nietzsche. Na volta, abri meu Facebook e fiquei estarrecida: Eduardo Cunha havia aceitado o pedido de impeachment da nossa presidenta. Sei que estamos enfrentando uma crise grave, e isso tem nos afetado diretamente. Inflação alta, luz mais cara, gasolina mais cara, impostos, supermercado e até a ração do cachorro. Afeta não só a nossa família, mas todas as famílias brasileiras. Pena que as pessoas não pensam como isso está atingindo a classe média e os pequenos e microempresários.
Antes de cursar cinema, fiz faculdade de história na Universidade Veiga de Almeida. Tenho uma boa base política e posso expor minhas opiniões de maneira clara. Não me considero nem de esquerda nem de direita, apenas vivo e observo – e pago impostos. Tenho amigos “esquerda caviar” que nunca colocaram os pés na Zona Norte. Usam drogas e depois tocam a falar mal da polícia dentro das favelas. Bem, eu nasci na favela do Jacarezinho e sei como é opressor o sistema ditatorial e fascista que limita a liberdade dos moradores das comunidades.
Também não sou socialista. Já tive minha fase marxista e andava com camiseta do Che Guevara. Hoje sou realista, e vejo que o Cunha está querendo restringir os meus direitos de mulher. Está difícil ligar a tevê.
Hoje a Ana chegou tarde. Vimos o pronunciamento da Dilma e ficamos conversando sobre política o resto da noite. Tomamos banho e fomos dormir. Eu durmo no meio, Nina e Ana se revezam entre o canto e a beirada da cama. Levamos nossas garrafas de água, cada uma tem a sua. Na hora de deitar, eu subo pelo pé da cama, para não atrapalhar ninguém.
3 DE DEZEMBRO, QUINTA-FEIRA_Minha mãe veio me visitar, e só falamos sobre contas. Sinto falta de uma mãe que me pergunte como estou, se eu estou bem. Ela só fala do meu irmão, sempre dá um jeito de elogiar. Depois da morte do meu pai, passei a me sentir mais sozinha, e a cada dia que passa vejo que minha família são mesmo as meninas. O Freud já dizia que a mulher é mais agarrada com o pai.
Quando minha mãe e a Nina saíram, coloquei Chico Buarque. Fui de Cotidiano e Deus lhe Pague. À tarde, dei um pulo na lotérica para pagar algumas contas. Além da contabilidade, a arrumação da casa é por minha conta. Não sei cozinhar, não gosto.
Aqui é grande: são três quartos, duas salas, cozinha, banheiro e varanda. Um dos quartos é meu escritório – da empresa – e minha biblioteca. Tenho uma vasta coleção de livros de arte, economia, direito, filosofia, história. Li meu primeiro livro de filosofia aos 6 anos. Aos 7, li A Revolução dos Bichos. Ainda tenho tudo guardado, caso eu venha a ter um filho. Quero dar a ele a mesma educação que tive.
Combinei com uma grande amiga de encontrá-la amanhã. Nós nos conhecemos quando eu fazia cinema. Ela é roteirista de uma emissora de televisão. As meninas toparam. Dei uma última lida na matéria de francês, amanhã é a prova oral e o último dia de aula. A turma vai fazer uma festa de confraternização.
4 DE DEZEMBRO, SEXTA-FEIRA_A prova de francês foi fácil. No meio da tarde senti falta das meninas e escrevi no WhatsApp do grupo que eu amo as duas e que não sei viver sem elas.
Chegamos à choperia por volta de dez da noite, por causa do trânsito. Foi maravilhoso. Nossa amiga nos apresentou o novo namorado e um amigo guitarrista. Tomei cerveja alemã e mexicana. Falamos de política, religião, sociedade, Cunha e feminismo. Afinal, somos um trio de mulheres casadas. Quer algo mais feminista do que isso?
5 DE DEZEMBRO, SÁBADO_A nova inquilina me ligou às dez da manhã, dizendo que já estava lá embaixo com a mudança. Nina e eu corremos para entregar a chave e ajudar com as coisas. Ela é namorada de uma amiga minha que trabalha num hotel cinco estrelas.
Voltamos para casa para tomar café e ver um filme. A Ana estava no trabalho. Fiquei com saudade. Odeio quando ela trabalha no sábado.
Depois do almoço ela chegou, almoçou e foi dormir um pouco. Nina foi ao salão de beleza, queria mudar o visual. Voltou às sete da noite, loira: tinha feito luzes. Ficou lindo! Eu agora tenho uma mulher loira e uma morena! Noite em família: nós três em casa, comendo e vendo filme.
6 DE DEZEMBRO, DOMINGO_Acordamos juntas. Amo o domingo, é o único dia que consigo ficar com elas.
Fomos a um supermercado grande para as compras de mês, coisa que gostamos de fazer juntas. Se depois falta uma ou outra coisa, eu me encarrego de comprar. Na volta, a Ana foi para a cozinha preparar o almoço e eu fui botar a roupa na lavadora.
Decidimos pegar o piano que meu pai me deixou de herança. Estava na casa dele, que fica no mesmo prédio, no andar de baixo. Não sei tocar, mas já estou procurando alguma escola que não seja cara. A Ana e a Nina desmontaram o piano, mas mesmo assim ele era pesado para carregar do 1º para o 2º andar. Até tentamos pedir ajuda a algum homem, mas era o dia da última rodada do Campeonato Brasileiro – onde moramos tem muito vascaíno. Ninguém podia ajudar.
Acabou que o Vasco caiu mesmo para a segunda divisão, e que o meu time, o Botafogo, subiu. Não sou muito ligada em futebol, como também não sou muito ligada em Carnaval. Mas, como boa carioca, torço pelo Botafogo e pela Mocidade Independente de Padre Miguel. Tenho duas estrelas no meu coração.
Terminamos a noite conversando. É o que sempre fazemos (às vezes discutimos). Eu sou a mais estressada, mas no final todas se envolvem nas brigas. Ninguém fica alheia ou fazendo papel de moderadora. Em geral discutimos por detalhes da convivência, do cotidiano, coisas de casamento.
7 DE DEZEMBRO, SEGUNDA-FEIRA_As meninas foram trabalhar. Na rua onde moramos tem feira toda segunda. Desci para fazer as compras da semana. Logo em seguida, o homem que iria trazer o piano ligou, dizendo que já estava na porta, me esperando.
Ele vinha acompanhado de dois rapazes. Embalaram, amarraram, empurraram tudo pela escada, deu certo. Pronto, o piano já estava na minha sala – agora faltava montar e aprender a tocar.
Nesse meio tempo Nina chegou, seu patrão tinha dado folga. Ainda não sabemos se ela será demitida de vez ou se vai tirar férias antes. Fomos comprar tinta para pintar as portas da casa. Esperamos Ana chegar para poder montar o piano. Lá pelas nove elas tinham conseguido juntar todas as partes. Eu dei auxílio moral. Ficou demais! Queria que meu pai estivesse aqui para ver.
8 DE DEZEMBRO, TERÇA-FEIRA_Acordamos cedo e Ana foi trabalhar. Nina e eu tentamos organizar a casa, em meio à tinta, poeira e roupa suja. Percebemos que o sol estava batendo no piano. Então mudamos toda a arrumação da sala e decidimos comprar cortinas novas. Nossa, quem dá 900 reais em cortinas? Bem, eu não dei – e consegui uma outra, linda, por um preço acessível.
Nina fez a janta e eu continuei a arrumação da casa. Quando Ana chegou, as duas foram instalar a cortina nova. Eu sou a mais baixa das três, com 1,61 metro. Sou também a mais dengosa, romântica, carente. Choro vendo filmes de romance ou de guerra.
9 DE DEZEMBRO, QUARTA-FEIRA_Acordei por volta das dez da manhã. Nina e eu decidimos terminar de arrumar a casa, afinal marca de tinta no chão não sai fácil. Ouvimos música o dia inteiro, no rádio: rock e MPB.
Jantamos vendo tevê. As três muito cansadas: Nina e eu pela arrumação da casa, a Ana por ter ido trabalhar na Zona Oeste.
10 DE DEZEMBRO, QUINTA-FEIRA_Acordei e me deitei no sofá. Nina precisava assinar as férias no escritório, Ana foi para a Baixada Fluminense. Fiquei assistindo ao jornal da manhã. Tenho medo de quando ela vai para a Baixada de carro. Vejo nos jornais que sempre acontecem assaltos e arrastões nas vias expressas. Só fico tranquila quando ela manda mensagem no celular dizendo que chegou bem.
Adormeci, e Nina logo chegou com o café da manhã. Assistimos The Big Bang Theory, amamos. Conversamos sobre família, filhos, parentes. Todos sabem da minha vontade de engravidar, mas tenho muito receio da família. Da parte da Ana, os pais dela querem 100%, são loucos para ter netos. Meu receio vem da família da Nina. A mãe dela é muito católica e a irmã acabou de ter um filho. Tenho dúvidas se a mãe da Nina vai amar realmente a nossa criança, assim como ela ama o outro neto. Não vai ser a Nina que vai gerar o filho, e minha sogra preza muito essa questão sanguínea. Sinto que sou colocada de lado – ela tampouco me considera “tia” do seu neto.
Ana chegou tarde, jantamos e ficamos vendo Os Simpsons. Depois não consegui dormir, com todas essas questões na cabeça. Levantei, fumei e chorei. Fiquei um bom tempo olhando para as duas, deitadas. Voltei para a cama, pensando que enfrentaria qualquer coisa por elas.
11 DE DEZEMBRO, SEXTA-FEIRA_Ana saiu para o trabalho, Nina e eu acordamos tarde. Ela quer aprender piano. Passou a tarde lendo sobre partituras e tocando algumas notas. Já eu fiquei meditando em frente ao meu Gohonzon (o objeto de devoção de fé na prática do budismo de Nitiren Daishonin). Preciso intensificar minha meditação nesse final de ano.
O dia voou. A melhor hora é à noite, quando estamos juntas. Conversamos sobre política na janta, vi nas redes sociais que nesse fim de semana haverá protestos por todo o país. Detestamos o Eduardo Cunha, ele e a forma como preside a Câmara. Também não gostamos do governo da Dilma. Estamos sofrendo muito. Algumas contas chegaram hoje – a de luz, por exemplo, teve reajuste de novembro para dezembro. Pagaremos 13 reais a mais.
Nina está praticamente desempregada. Justificaram a demissão falando da crise. Para quem afirma que a crise é forjada, eu simplesmente digo para ir ao supermercado toda semana, como nós fazemos.
Fomos dormir tarde, conversando sobre isso. Vamos ter que apertar mais um pouco, economizar mais.
12 DE DEZEMBRO, SÁBADO_Coloquei roupa na máquina para aproveitar o tempo bom. Lavei até os tapetes da casa. Ana chegou no final da tarde e nos trouxe duas camisetas dos Rolling Stones de presente. Disse que era para irmos ao show deles em fevereiro. Amamos.
Jantamos vendo um filme, maravilhoso por sinal. Chama-se A Teoria de Tudo. É sobre um cientista famoso que descobriu coisas sobre buracos negros e sobre o Big Bang.
13 DE DEZEMBRO, DOMINGO_Combinei com a Nina que amanhã iria junto com ela visitar sua mãe, que mora em outro município. Ela precisa de ajuda para resolver algumas questões de regularização de imóveis.
Vi num programa de tevê que o vírus zika está muito preocupante. Uso repelente, incenso e vela de citronela. Ana e Nina passaram parte da tarde lendo coisas sobre partituras de música, enquanto eu lia Vida: Um Enigma, uma Joia Preciosa. É um livro sobre o budismo, desde o buda histórico de Sidarta até as várias correntes atuais, no mundo todo.
14 DE DEZEMBRO, SEGUNDA-FEIRA_Eu e Nina acordamos tarde, atrasadas para o compromisso com a mãe dela. Ana foi para o trabalho. Saímos de casa às pressas, e só conseguimos chegar na casa da minha sogra depois de quase duas horas de trânsito. Fazia um calor de quase 40 graus.
Ela parecia estressada. Cobrou Nina por não visitar o sobrinho mais vezes. Quase discutimos. Entrei na conversa, dizendo que não tínhamos tempo para nos deslocar do Rio com frequência. Ela olhou para mim e disse: “Então que ela venha sozinha, afinal, é a única tia.”
15 DE DEZEMBRO, TERÇA-FEIRA_Acordei às dez para as seis da manhã, tive insônia. Logo Ana e Nina também se levantaram. Tomei café e vi tevê. No jornal da manhã só passa tragédia e crise no estado, principalmente nos hospitais e nas universidades. Logo em seguida apareceu o governador sorrindo, dizendo que tem verba para pagar tudo e todos. Sei.
À noite, Nina e eu fomos ao templo budista, na Zona Sul. Ana não conseguiu largar o trabalho a tempo para nos encontrar.
16 DE DEZEMBRO, QUARTA-FEIRA_Passei o dia pensando em novas camisetas para o ano que vem. Pretendo fazer bolsas também, umas bolsas estilo sacola. Com estampas da Frida Kahlo, pinturas do Picasso, Monet, tenho muitas ideias.
Na hora do almoço pedi comida de uma pensão que fica perto de casa. Não tenho paciência para cozinhar. Preciso começar a me alimentar direito e a diminuir o café e o cigarro. Para ter um filho, terei que estabelecer prioridades. O cigarro será a etapa mais difícil.
18 DE DEZEMBRO, SEXTA-FEIRA_Resolvemos ir ao Centro. Achei loucura ir até lá praticamente na véspera de Natal, num calor de quase 40 graus, mas acabei convencida. Tomamos café na Casa Cavé, compramos um porta-chaves de parede da Frida Kahlo, visitamos alguns sebos da rua da Carioca e a feira de antiguidades da rua do Lavradio. A Ana não conhecia, ficou encantada com tantas coisas lindas e de boa qualidade.
Chegando na feira, encontrei uma amiga de longa data. Ela e o marido moram em Saquarema e fazem cintos e bolsas de couro artesanais. Ela nos parabenizou pelo casamento e sugeriu que eu também participasse da feira com minhas camisetas. No próximo ano estarei lá.
22 DE DEZEMBRO, TERÇA-FEIRA_Ana acordou cedo para trabalhar. Nina e eu fomos ao mercado, comprar coisas da casa e produtos não natalinos em promoção. A alcatra, por exemplo, estava mais barata do que o frango ou o chester. Como não fazemos ceia, aproveitamos.
De noite, já em casa, recebi um telefonema da minha mãe: pedia para eu ir à casa dela, no dia 24. Minha avó que mora no interior estaria lá. Aceitei, mesmo não acreditando no Natal e na cultura cristã que o envolve. Mas acredito em reencarnação, e que o nosso relacionamento, meu e da minha mãe, é algo cármico. Tínhamos que nos encontrar aqui, de alguma forma.
24 DE DEZEMBRO, QUINTA-FEIRA_Acordei com dor de dente. Que ironia, esposa de dentista com dor de dente. Ana e Nina me levaram às pressas para o consultório dentário onde Ana atende, perto de casa. Era problema de canal.
Saímos do consultório, eu toda anestesiada, e ainda paramos no mercado atrás de coisas que tinham faltado nas compras do mês, como leite e açúcar, que no outro supermercado estavam muito caras. Nessa crise é assim: as compras são feitas em vários lugares diferentes.
Ana comprou uma batedeira. Ela adora fazer bolos, e eu adoro comer. De noite, ela levou um bolo com nozes para a casa da minha mãe. Quando chegamos, minha mãe estava cozinhando a ceia, como sempre com sua cervejinha. Minha avó, sentada no sofá, tentava ver a novela. Meu irmão, sua esposa e a filha também estavam lá.
Preciso estudar muito o budismo para entender certos conceitos. Minha avó na novela, meu irmão e minha mãe na cerveja, minha cunhada no zap, minha sobrinha de 2 anos entre panelinhas e bonecas, Ana e Nina na rabanada, e eu ali, pensando em quanto as amo. Quero ter filhos com elas.
27 DE DEZEMBRO, DOMINGO_Fomos levar minha mãe para Maricá, onde ela vai passar o Ano-Novo. Ela é professora do município, e as aulas só voltam depois do Carnaval. Insistiu para que ficássemos com ela até o Ano-Novo. Mas, como esse é o nosso primeiro ano depois de casadas, ficaremos em casa.
De noite, já chegando em casa, comemos um churrasquinho de gato na esquina.
31 DE DEZEMBRO, QUINTA-FEIRA_Véspera de Ano-Novo. Já acordo com fogos dos vizinhos e o cachorro latindo. Ana foi ao mercado comprar gelo de última hora, Nina ficou na cozinha, começando a preparar a ceia, e eu com TPM, de mau humor. Tomei remédio, fiquei deitada, tentei colocar a leitura em dia. Comecei a ler um livro do Júlio Verne, Paris no Século XX. Depois peguei meu caderno e comecei a estabelecer metas. Parar de fumar foi a primeira. Parar de beber café em excesso, a segunda. Emagrecer foi a terceira: estou dez quilos acima do peso.
Ouvimos Madonna a noite toda. Somos loucas por ela. À meia-noite, com fogos para todos os lados, nos beijamos, nos abraçamos e comemoramos. Brindamos à vida, à saúde, ao casamento e à felicidade de estarmos juntas. Depois fomos meditar em frente ao Gohonzon.
1º DE JANEIRO DE 2016, SEXTA-FEIRA_Primeiro dia do ano. Acordamos e eram quase três da tarde. Ócio total, entre a tevê e o rádio. Decidimos ir para uma balada. Procurei nas redes sociais. Achamos uma em Copacabana, numa boate famosa chamada Fosfobox. Galera alternativa.
Chegando lá, de certa forma acabei me arrependendo. Acho que envelheci. Fui da época da famosa Bunker 94, onde conheci a Nina, em 2002. Mas os tempos são outros. Não se toca mais New Order, Pet Shop Boys, The Prodigy, Depeche Mode, nem mesmo alguma coisa bate-estaca que eu sempre ouvi em raves ou boates alternativas.
O que eu vi foi uma galera vestida de hipster dançando Anitta e Naldo. Nada contra eles, pelo contrário, acho toda forma de música e cultura válida. Mas, no meio daquilo tudo, resolvi beber. E bebi.
NINA, 34 ANOS, GERENTE ADMINISTRATIVA
30 DE NOVEMBRO, SEGUNDA-FEIRA_Acordei às sete, como de costume. As meninas ficaram na cama, então hoje, excepcionalmente, preparei o café. Em geral é a Ana quem cuida disso, já que acorda antes de mim. Chamei a Verônica, que migrou da cama para o sofá. Ela é difícil de acordar.
Tempo chuvoso, um daqueles dias que dá vontade de ficar em casa. Peguei o carro e saí para o trabalho. Muito trânsito, por causa da chuva. Cheguei atrasada, lógico. Sou gerente administrativa e de pessoal numa empresa de serviços. Abaixo do dono, quem comanda sou eu. Trabalho só com homens, ninguém sabe da minha vida pessoal. Não sabem da minha sexualidade e muito menos que sou casada com duas mulheres. Fico imaginando o que aconteceria se meu chefe descobrisse: ele é machista ao extremo, além de homofóbico. No trabalho sou obrigada a viver uma vida dupla.
À noite, em casa, fizemos a lista de mercado. Na verdade, a Ana fez, enquanto a Verônica estudava e eu pesquisava na internet como está o mercado de trabalho para a minha área.
1º DE DEZEMBRO, TERÇA-FEIRA_De manhã, o trânsito estava bem tranquilo, hoje eu fui de ônibus. Nós revezamos o carro, eu e a Ana. Ela trabalha cada dia num lugar diferente, então algumas vezes vai de carro. Em geral fico com o carro dois dias na semana.
Fui chamada à sala da chefia. A conversa tomou um rumo que eu já esperava, aquelas coisas de sempre: a empresa não cresce, estamos em crise, perdemos clientes, blablablá. Ele disse que me colocaria de aviso prévio a partir de hoje. Já faz algum tempo que não estou satisfeita com o trabalho, não tenho as gratificações prometidas e, além disso, tenho que fingir ser heterossexual, o que vai contra tudo que penso. Com essa notícia logo pela manhã, mandei uma mensagem para a Verônica. Precisava falar com ela, conversar para tomar decisões e dizer o quanto me dediquei e fiz essa empresa crescer. Ela respondeu: “Vem para casa, fica comigo.”
Eu fui, e logo depois do almoço já surgiu outra proposta de trabalho bem melhor, por convite de uma amiga. Enviei o currículo e ficamos curtindo o sofá. À noite, a Ana chegou com as compras e ajudei a guardar. Hoje foi dia de comprar produto de limpeza no atacadista. A casa é grande, são muitos cômodos, gastamos muito, fora o cloro que tem que ser em quantidade maior – a Ana trabalha de branco e temos um cão que suja bastante a área. Os alimentos, deixamos para comprar no fim de semana.
Jantamos e fomos dormir. Temos o costume de jantar juntas, e de deitar juntas.
2 DE DEZEMBRO, QUARTA-FEIRA_Ana preparou o café da manhã. Acordamos a Verônica, que tinha prova no curso de francês. Era o meu dia de ficar com o carro, e quem fica com o carro dá carona para a outra. Deixei a Ana no caminho. O clima estava ótimo, e eu ganhei um chocolate do chefe, talvez para se redimir da conversa de ontem. O trabalho seguiu tranquilo e na saída passei no mercado para comprar carne. Tem dois mercados no caminho da volta – quando tem promoção, compro em algum deles.
Fiz a janta. As tarefas aqui em casa são divididas: durante a semana, eu preparo a comida; no fim de semana, a Ana. Nós duas também nos revezamos com o ferro de passar. Verônica cuida da arrumação, da lavagem da roupa e do controle das contas. A louça é de todo mundo. Enquanto cozinhava, soube que o Cunha havia aceitado o pedido de impeachment. Ana chegou e ficamos vendo o pronunciamento da Dilma. Fomos jantar e conversamos sobre como será, se de fato a Dilma sair.
Sempre falamos de política e – ainda bem – nossas opiniões são bem parecidas. Não gostamos do Cunha, achamos que ele é um atraso para o país. Temos ideais de liberdade que a bancada religiosa condena. Sobre o processo do impeachment, não adianta a Dilma sair e o Temer assumir, é necessário fazer mudanças radicais. O impeachment não vai solucionar a crise do país.
3 DE DEZEMBRO, QUINTA-FEIRA_Mandei uma mensagem para meu chefe dizendo que iria chegar mais tarde. Ana saiu cedo e tomei café com a Verônica e a mãe dela, que veio nos visitar. Tenho uma ótima relação com minha sogra, afinal já nos conhecemos há treze anos e meio. Eu e a Verônica já tínhamos uma relação de oito anos quando conhecemos a Ana. Desde então foram mais cinco. Passa rápido. Fui para o trabalho lá pelas dez, e o dia foi bem tranquilo. Na verdade, desde que meu chefe disse que me colocaria de aviso prévio, fiquei esperando assinar os documentos – e nada. Depois disso, ando sem vontade nenhuma de trabalhar.
4 DE DEZEMBRO, SEXTA-FEIRA_Encontramos uma amiga num bar supersimpático em Jacarepaguá – é daqueles bares que servem cerveja artesanal, cerveja importada, de boa qualidade. Amo essa nossa amiga, ela é roteirista, estudou jornalismo na mesma faculdade que eu, divide apartamento com a minha professora da faculdade. Ela nos deu apoio desde o início da relação a três, deu conselhos e acha que somos corajosas por assumir esse tipo de relação. Sempre brinca que será a quarta, mas sabe que aqui não entra mais ninguém. A nossa relação poliafetiva simplesmente aconteceu, não planejamos e não buscamos isso. Na época, nem existia esse rótulo. Estamos felizes assim.
5 DE DEZEMBRO, SÁBADO_Acordamos de supetão com a campainha tocando, o cachorro latindo e o telefone berrando, foi uma loucura. Uma amiga está alugando o apartamento de trás, que pertence à Verônica.
Decidi ir ao salão, preciso pintar o cabelo, mudar um pouco. Fiquei três horas: fiz luzes, é um processo. As meninas elogiaram. Depois ficamos em casa. Mercado, só amanhã.
6 DE DEZEMBRO, DOMINGO_Acordamos às oito para ir ao mercado, mas só conseguimos sair de casa às dez. Verônica precisa de tempo para acordar, tomar café, fumar. O mercado estava cheio: tínhamos esquecido que o Natal está aí. Não é uma data que comemoramos, somos budistas e não temos um deus. Fizemos as compras do mês. É impressionante como as coisas estão mais caras.
7 DE DEZEMBRO, SEGUNDA-FEIRA_Hoje é o quinto dia útil do mês, dia em que o chefe fica bem estressado por ter que remunerar quem trabalha para ele. Há muito tempo trabalho como analista de departamento pessoal em escritórios de contabilidade, já trabalhei em grandes empresas e sei como funcionam os dois lados desse sistema. O patrão sempre reclama de pagar, não reconhece o direito real do trabalhador e acha que paga mais do que deve. O empregado acha que ganha pouco, que trabalha muito e que seu valor profissional não é reconhecido. Não existe quem tenha sempre razão.
Bem, no meu caso, acho que trabalho pouco, sou capacitada e habilitada para fazer muito mais do que faço, mas acabo limitada pelo meu chefe, que prefere centralizar as tarefas administrativas e delegar as mais simples para mim. Mas ele não consegue administrar bem o próprio tempo. Resultado: clientes cancelam contratos, atrasam mensalidade ou recebem cobranças indevidas.
Fui a primeira a entrar na sala dele para assinar a folha. Antes do pagamento, ele me disse que ia me dar folga por dois dias, para depois me colocar de férias. Perguntei se, ao retornar, estaria de aviso prévio, como ele me havia dito na semana passada. Não, só estava me colocando de férias. Ótimo!
Saí do trabalho logo após o almoço, e já estava de folga. Eu havia morado com a Verônica num bairro próximo, alguns anos antes, quando éramos ainda só nós duas. Lembrei de uma lojinha onde eu comprava uns mimos para ela, e já que estava de carro decidi passar lá. Achei duas canecas lindas e estilizadas. A alça das canecas é um soco inglês: a cara das meninas! Uma coisa muito fofa. Comprei duas, pedi para embrulhar para presente. Era uma lembrança pela véspera, quando tínhamos completado dois meses de casadas.
Assim que cheguei entreguei o mimo para a Verônica. Em seguida já vieram os homens para carregar o piano. Muito interessante como se carrega um piano por uma escada em caracol: eram três homens magros e um piano de 158 quilos. Valeu a pena contratá-los, eles já estão habituados, tiveram todo o cuidado de embalar em cobertores e amarrar com cordas.
Quando a Ana chegou, montamos o piano e conversamos as três sobre as minhas férias e a arrumação da sala. Elas amaram as canecas.
8 DE DEZEMBRO, TERÇA-FEIRA_Estar de folga em casa é… acordar cedo para arrumar a casa. Eu gosto de mudar as coisas de lugar, me dá prazer estar num ambiente limpo e organizado. Hoje estou pintando as portas da sala. Renovou o ambiente. Verônica e eu mudamos para a sala da tevê os móveis da sala de jantar, onde deixamos o piano. Ficou muito melhor. O Gohonzon saiu da antiga sala de jantar e foi para um terceiro espaço, onde era a sacada da sala.
10 DE DEZEMBRO, QUINTA-FEIRA_Estou oficialmente de férias. Acho que terei tempo de me organizar e até de escolher um novo emprego. Quero aproveitar o mês para estudar e aprender a tocar piano. Tenho paixão por música, tiro som de qualquer coisa, já toco violão e guitarra, mas não leio partitura. A Ana ontem me passou uns livros de quando ela fazia curso de teclado.
Aqui em casa, as artistas somos Verônica e eu. Verônica estudou cinema e teatro, eu estudei teatro e tenho habilidades para música e desenho. Ana adora música também, e aos poucos é inserida no nosso mundo da arte. Fiquei em casa conversando com a Verônica. O tema que agora está sempre na pauta do dia, entre nós, é a maternidade. Verônica vai engravidar, e nós vamos registrar o bebê com uma certidão multiparental, algo que já é possível fazer. Essa criança está sendo muito bem planejada e desejada. Sempre conversamos sobre a criação. Queremos um menino, mas ainda não escolhemos o nome, se bem que todos os nomes em que pensamos têm origem bíblica. Se for uma menina, será Sophie ou Alice.
Verônica está apreensiva com minha mãe. Ela acha que nosso filho não será amado por ela, porque não sou eu que vou gerá-lo. Não sei, realmente não sei como será para a minha mãe quando essa criança nascer. A relação das duas já foi muito conturbada, no início. Quando eu era adolescente, tocava na banda da igreja – não que fosse muito devota, mas fui levada pela minha mãe aos 4 anos de idade, não pude escolher. Conheci Verônica em 2002, foi minha primeira namorada. Lutei muito para assumir minha homossexualidade, pois tive uma educação que me travava, tudo era proibido. Isso me conturbou e moldou de certa forma minha personalidade.
A Verônica é tudo que eu sempre mais admirei numa pessoa: personalidade forte, transparente, determinada, fala o que pensa, doa a quem doer. Foi criada assim pelo pai. Sempre me disse que a religião era o ópio do povo. Mais tarde, quando li os grandes pensadores, pude entender a essência desse pensamento. Verônica tinha 18 anos quando a conheci, e eu tinha 21. Ela me ensinou muito mais do que eu pude ensinar a ela. Nós nos conhecemos numa boate de música alternativa em Copacabana, e logo no primeiro dia nos apaixonamos. Parecia filme, não podíamos ficar longe uma da outra, e logo ela passou a frequentar minha casa. (Como amiga, obviamente.)
Aos poucos, deixei a banda da igreja – não podia ser hipócrita a esse ponto. Quando percebemos, ela já estava dormindo na minha casa por dez dias seguidos, e por fim minha mãe acabou descobrindo. Ela ficou possessa, não queria que eu voltasse a ver a Verônica, mas já não conseguíamos viver longe uma da outra. Decidimos morar juntas. Em 2004, eu com 23, ela com 20, passamos a dividir o mesmo teto. A questão é que minha mãe parte do princípio de que “o inferno são os outros” – e culpa Verônica por eu não acreditar mais em Deus. Só que eu havia sido levada muito cedo a acreditar em algo, por pressão social e familiar.
A Ana entrou na nossa vida cinco anos atrás. Eu e a Verônica fazíamos parte de um fã-clube da Madonna na internet e sempre adicionávamos pessoas de outros estados no Messenger. A Verônica adicionou a Ana e ficaram trocando e-mails durante um mês, até que a Ana, que morava em outro estado, teve que vir ao Rio a trabalho. Então combinaram de se encontrar.
Eu e Verônica sempre conversamos muito. Ela me contou que tinha conhecido a Ana, e que havia se interessado. Fiquei intrigada em saber quem era, e então decidi conhecê-la. No início eu tive ciúme, lógico. A gente nunca tinha falado de ter uma relação a três.
Mas no nosso primeiro encontro, numa boate no Centro, nós três já nos beijamos. A partir daí, quando a Ana vinha, ficava na nossa casa. Peguei afinidade por ela, a gente conversava muito por telefone. Em 2012, nós três decidimos morar juntas. Rolou então uma adaptação. A Ana teve que se acostumar com o nosso cotidiano, com as nossas manias. Quando dava problema, a gente conversava e acertava os pontos. Hoje sou muito feliz com o que tenho com a Ana, a Verônica e meu budismo.
12 DE DEZEMBRO, SÁBADO_Passei a manhã empenhada na minha prática musical. Depois fiquei assistindo tevê com a Verônica, as duas jogadas no sofá. Ana estava trabalhando. Acho que é o último sábado de serviço dela, antes da folga de fim de ano. Chegou à tarde, com presentes: camisetas dos Stones.
À noite, assistimos A Teoria de Tudo. Foi maravilhoso. Conversamos sobre relacionamento, companheirismo e física quântica.
14 DE DEZEMBRO, SEGUNDA-FEIRA_Hoje eu e Verônica fomos até a casa da minha mãe, num município vizinho. Passamos na prefeitura para resolver questões relacionadas ao imóvel dela. Estava muito calor, e pegamos muito engarrafamento até chegar. Conversei com minha mãe sobre algumas questões burocráticas, e ela logo me cobrou pela minha ausência. Discutimos, o clima ficou tenso mas no fim se acalmou. Chamei minha mãe para passar uns dias com a gente – ela anda cansada e tem ido todos os dias ajudar minha irmã com o neto, acho que está sobrecarregada.
No caminho de volta, liguei para a Ana, pedindo que ela aquecesse o jantar. Chegamos em casa tarde.
16 DE DEZEMBRO, QUARTA-FEIRA_Quando eu era mais nova, trabalhei como assistente de dentista. Eu adorava, era meu primeiro emprego e por causa disso em algum momento da minha vida pensei em estudar odontologia, mas passou. Sou de humanas.
Na quarta passada, a Ana trabalhou muito, mal teve tempo para comer, foi uma correria. Então hoje fui trabalhar com ela. Foi legal ajudá-la, formamos uma boa equipe. Temos planos de no futuro abrir uma clínica e todas trabalharmos juntas. Mas é um plano a longo prazo.
22 DE DEZEMBRO, TERÇA-FEIRA_Ana ligou para eu ir buscá-la. Hoje ela está atendendo no bairro vizinho. Na volta, aproveitei o trânsito para conversar sobre a virada do ano. Decidimos passar em casa, só nós três. No ano passado fomos para a casa dos pais da Ana durante o Natal, e depois passamos o Réveillon na casa de praia da mãe da Verônica. Tinha muita gente, foi divertido, mas decidimos que esta virada será só nossa.
Ana ficou de comprar o champanhe. Nós duas faremos a comida.
24 DE DEZEMBRO, QUINTA-FEIRA_Verônica se queixou de dor de dente. Ana estava de folga, mas reservou um consultório para atendê-la. Fomos todas. Verônica tem pavor de anestesia, só de pensar em ir ao dentista ela fica nervosa.
Na volta, paramos no bar para comprar água. Fomos abordadas por um senhor muito simpático e galanteador de 80 anos (ele fez questão de mostrar os documentos). Estava comprando cerveja, disse que foi atleta quando jovem e que a vida toda tinha sido casado com a mesma mulher. Disse que a velhice fez dela uma baranga e disparou: “Minha filha, eu penso o seguinte: ‘Se eu comi do filé mignon, tenho que roer o osso.’” Depois se despediu, dizendo: “Estou encantado com vocês, mas principalmente com a Verônica, e olha que de mulher eu entendo.” Eu achei uma graça.
Não fizemos ceia. Fomos para a casa da mãe da Verônica, onde estavam o irmão, a sobrinha, a cunhada, a avó e a mãe dela. Conversamos, comemos e voltamos trazendo rabanadas e bacalhau.
27 DE DEZEMBRO, DOMINGO_Está fazendo 40 graus no Rio de Janeiro, com sensação térmica de 50. Não é exagero, essa semana tem sido assim. Fomos para a casa de praia da mãe da Verônica. Ela nos pediu para levar algumas coisas, já que vai passar o Réveillon por lá.
31 DE DEZEMBRO, QUINTA-FEIRA_O último dia do ano é muito significativo. Costumo fazer uma reflexão sobre o que passou, o que aprendi, o que foi bom ou ruim e o que posso mudar. É o fechamento de um ciclo, e a abertura de um novo.
De tarde começamos a preparar a ceia. Ana comprou o champanhe e a cerveja que nós três gostamos de beber. Ela fez a rabanada, eu fiz os canapés e já preparei a minifeijoada para amanhã. Montamos a mesa, ouvimos nossas músicas, bebemos. À meia-noite estourei o champanhe, entornei em mim, como sempre faço. Liguei para minha mãe e fui meditar. Todas meditamos depois da meia-noite, é o momento de traçarmos um objetivo. A noite foi maravilhosa.
1º DE JANEIRO DE 2016, SEXTA-FEIRA_Primeiro dia do ano. Acordamos tarde, almoçamos a feijoada que eu já havia deixado pronta e depois o tédio tomou conta de nós. Resolvemos ir à Fosfobox, em Copacabana. Verônica e eu nos conhecemos numa boate e contrariamos a lenda que diz que amor de balada não dura. Sempre fomos a baladas, mesmo casadas e mesmo quando éramos só nós duas. Acontece que somos órfãs da Bunker e não encontramos mais boates como aquela aqui no Rio. Hoje em dia as baladas GLS tocam pop e funk, e mesmo a Fosfo não escapa.
Dancei o que pude e o que deu para dançar, e não quis beber. Já Verônica tomou um porre. Foi bom sair, descarregar e recarregar as energias. Chegamos em casa pela manhã – geralmente só saímos das boates quando acendem as luzes.
ANA, 32 ANOS, DENTISTA
1º DE DEZEMBRO DE 2015, TERÇA-FEIRA_Tomei banho, acordei a Verônica, me arrumei e fui atender. Poucos pacientes, condensados no final do expediente. Tive tempo até de fazer compras no mercado, na hora do almoço. Quando saí da clínica, comprei duas rosas amarelas para as minhas meninas, como sempre faço às terças. Cada semana compro de uma cor diferente.
Cheguei tarde em casa, às 20 horas. Nina já me aguardava na portaria para ajudar com as compras. Depois foi preparar o jantar. Durante a semana é ela quem cuida da comida, pois costuma chegar mais cedo. Eu cuido da comida nos fins de semana e tento deixar tudo organizado, armazenado e congelado para depois. A parte de arrumação da casa e administração das contas fica com a Verônica.
Cheguei e entreguei as rosas, nos beijamos e fomos organizar as compras, tagarelando sobre nosso dia. Verônica foi estudar para a prova de francês, fiquei na cozinha com Nina. Ela me contou que foi colocada de aviso prévio no trabalho. Aparentemente ela está bem – não era um emprego que oferecesse boas perspectivas. Jantamos assistindo ao jornal e depois aos Simpsons. Sempre jantamos juntas.
2 DE DEZEMBRO, QUARTA-FEIRA_Acordei às seis e meia. Ia para a Baixada, por isso me levantei mais cedo. Não tenho consultório próprio e trabalho prestando serviço odontológico em clínicas particulares. Cada dia estou num lugar diferente. Preparei o café da manhã e acordei minhas esposas. Verônica demora para acordar, Nina é bem mais fácil. Tomamos café, Verônica foi para o curso de francês e eu peguei carona com a Nina para a estação de trem. Temos um carro que dividimos durante a semana.
Trabalhei muito, mal tive tempo para almoçar, quase não falei com as meninas. Cheguei em casa quando a Dilma fazia o discurso em resposta à aceitação do pedido de impeachment. Eu estava morta de cansaço, tomei banho primeiro e deitei. Verônica e Nina logo foram para a cama, mas não dormiram. Enquanto eu cochilava, elas ficaram conversando sobre o vírus zika, cólicas e gravidez.
Sempre deitamos juntas. Verônica dorme no meio, e Nina e eu nos revezamos no canto ou na beirada da cama. Cada uma tem seu travesseiro. A cama é bem grande, uma king-size com um edredom também king-size, mas sempre deixamos um edredom pequeno de reserva, pois Verônica às vezes se embola no meio e ficamos descobertas. Nossa noite de sono é bem tranquila. E o melhor: ninguém ronca.
3 DE DEZEMBRO, QUINTA-FEIRA_Hoje era meu dia de carro e fui para a Zona Oeste. Atendo nessa clínica também aos sábados, mas decidi que vou parar. Tenho ficado muito ausente de casa, ainda mais agora com os planos de ter filho. Quero dedicar mais tempo a mim e a elas, estar mais descansada e presente na vida de todas, para podermos planejar e curtir cada momento desse projeto. Verônica é quem vai engravidar, sempre foi o sonho dela. Pretendemos fazer reprodução assistida utilizando o óvulo da Verônica e um banco de sêmen.
Na volta para casa, muita chuva. Comuniquei às meninas que vou parar de trabalhar aos sábados. Elas me apoiaram.
4 DE DEZEMBRO, SEXTA-FEIRA_Acordei Verônica, que tinha outra prova de francês. Além disso, sua mãe viria aqui em casa para resolver assuntos pessoais. Eu me dou muito bem com minhas sogras, elas sempre são atenciosas comigo, cuidam de mim como das meninas. Não tenho sogros, pois eles já faleceram há algum tempo.
Fui ao curso de especialização em endodontia para resolver os últimos detalhes da monografia. Hoje só trabalho no período da tarde, numa clínica na Zona Sul. De noite, fomos encontrar uma grande amiga que não víamos havia quase um ano. Estava linda como sempre, sorridente, e muito feliz por nós. Ela sempre apoiou nossa relação.
5 DE DEZEMBRO, SÁBADO_Fomos dormir quase às quatro da madrugada, mas tive que acordar às seis e meia. Trabalhei pouco, cansada, logo voltei para casa. Nina resolveu mudar o visual. Enquanto eu descansava, ela foi ao salão de beleza. Verônica ficou vendo um filme. Por volta das 18 horas, elas me acordaram. Nina estava loira. Fez reflexo no cabelo. Agora tenho uma esposa morena e uma loira. Ela ficou linda, mais jovem e mais sexy.
Valorizamos muito o estilo de cada uma e sempre nos elogiamos. Nina é a mais racional, séria e crítica das três. É carente, mas transparece menos. Verônica é a mais passional, demonstra mais a sua carência. Eu sou mais centrada. Somos muito ciumentas e não escondemos isso umas das outras.
6 DE DEZEMBRO, DOMINGO_Passamos mais de duas horas no supermercado. Sempre preparamos uma lista antes: Nina e eu ficamos encarregadas de pegar a maioria dos produtos. Verônica é mais ansiosa e impaciente, toda hora sai para fumar.
Fiz lasanha no almoço. Não cozinhava esse prato há um tempão. É o favorito das minhas esposas.
7 DE DEZEMBRO, SEGUNDA-FEIRA_Dia de feira aqui na nossa rua. Amanheceu com chuva, mas mesmo assim a feira estava animada, bem barulhenta. Verônica disse que o piano seria transportado para o nosso apartamento à tarde. Ela herdou o instrumento do pai. No domingo, Nina e eu tínhamos desmontado o bicho, mas a base ficou para ser transportada por uma equipe especializada. Cheguei cedo em casa, remontamos o piano. Ganhei um presente de Nina, uma caneca linda. Adoramos canecas. Verônica também ganhou uma.
O presente foi pelos dois meses de casamento, que completamos no domingo, dia 6. É, passou rápido. Parece que foi ontem que estávamos falando sobre a possibilidade de oficializar nossa relação. A ideia foi da Verônica, pois já morávamos juntas havia três anos, e sempre tivemos o sonho de oficializar a relação. Todo mundo sonha casar no papel, é uma prova de amor escrita.
Parecia ser algo impossível no caso da nossa relação. Foi só depois de uma conversa sobre esse assunto, no início de setembro, que entrei em contato com a dra. Marta Bastos, tia de uma amiga minha. Eu sabia que ela atuava em causas de família. Liguei para ela e apresentei nossa situação. Ela foi muito receptiva, se dispôs a pesquisar sobre o assunto. Na semana seguinte já tinha uma resposta positiva. Entrou em contato com a tabeliã Fernanda Leitão, responsável pelo 15o Ofício de Notas. Foi ela quem disse que nossa união seria possível. Demos entrada nos trâmites normais, documentação pessoal das três. Estávamos ansiosas. Sugeriram que fizéssemos testamentos. Sabíamos que não poderíamos obter uma certidão de casamento, só uma declaração de união estável.
Três semanas depois desse contato com a advogada, assinamos nossa união. Foi no dia 6 de outubro. Agora estamos oficialmente casadas, após namorar cinco anos e meio e morar juntas outros três. Foi um dia de muita ansiedade, e também lindo, emocionante. Na hora de assinar os papéis, meu coração batia disparado. Aquele foi um momento nosso, apenas nós três – concretizava-se um sonho que até então parecia impossível. Eu me sinto mais feliz e realizada desde aquela data.
8 DE DEZEMBRO, TERÇA-FEIRA_Hoje Nina está em casa. Ela tem alguns dias de folga, e depois entra de férias. Verônica e ela vão pintar as portas. Não vou poder ajudar, tenho trabalho. A casa está de cabeça para baixo com a vinda do piano. Tivemos que reposicionar todos os móveis.
À noite, quando cheguei em casa, ainda estava tudo fora do lugar. Tinha tinta no piso e nas minhas mulheres. Rimos muito.
11 DE DEZEMBRO, SEXTA-FEIRA_Dei carona para Nina. Ela foi assinar as férias, e eu segui para o trabalho. Na volta, ficamos conversando sobre música. Agora, com o piano, as meninas vão começar a estudar. Eu não toco muito bem piano, mas sei ler partituras, já fiz aulas de teclado e piano elétrico. Nina é musicista, ela toca de ouvido, só não tem teoria, que estou passando para ela. Verônica também quer aprender. A única música que ela sabe tocar é aquela do filme De Olhos Bem Fechados, do Kubrick. Somos três pianistas curiosas.
12 DE DEZEMBRO, SÁBADO_Foi meu último dia de trabalho, e também a festa de confraternização. Chamei as meninas, mas elas preferiram ficar em casa. Lá no trabalho as pessoas sabem da minha homossexualidade, sabem que sou casada, conhecem as meninas – mas acham que sou casada apenas com a Verônica. Sempre me respeitaram, nunca tive problemas de convivência.
Depois da festa, passei na loja de artigos de rock para comprar uns mimos para minhas meninas. Elas curtem rock, e eu estou me descobrindo roqueira. Tudo que sei e que ouço me foi apresentado por elas. Elas são da área das artes, sabem muito sobre cinema, cultura, música. Foram elas que me levaram ao teatro e ao museu pela primeira vez. Sou de uma cidadezinha do interior, não tive contato com uma vida cultural mais intensa. Quando passei a estudar numa cidade que tinha mais recursos culturais, não podia usufruir deles. Apesar de ter me formado numa faculdade pública, meus pais tinham que bancar meus materiais e moradia, o que limitava os outros gastos.
Devo muito do que sei e sou às meninas. Eu me vejo como uma pedra bruta, que foi e está sendo permanentemente lapidada. Cada dia um novo aprendizado: assistimos filmes, conversamos muito sobre política, economia, saúde, música, vamos a museus, cinemas, teatros, shows. Hoje não me vejo sem elas ao meu lado e sem tudo o que elas representam na minha vida. Dei os presentes: camisetas e suspensórios dos Rolling Stones, porque vamos ao show deles. À noite assistimos ao filme A Teoria de Tudo, e depois ficamos conversando sobre Einstein, física quântica, matemática. Amanhã é domingo. Como é bom saber que vou poder acordar com elas e curtir a cama e a preguiça, sem me preocupar com horário.
14 DE DEZEMBRO, SEGUNDA-FEIRA_Um dia atípico. Quando voltei do serviço, só tinha o cachorro me esperando. Foi estranho, pois sempre chego e a casa está cheia. É que as meninas foram para a cidade natal da Nina, resolver assuntos de imóveis da minha sogra. Fiquei com saudade. Chegaram tarde.
15 DE DEZEMBRO, TERÇA-FEIRA_Mais um dia em que volto e encontro a casa vazia, só o cachorro. Hoje elas foram à reunião budista. Pena que não pude ir, saí tarde do trabalho. No fim de semana costumo ir com elas. Preparei a janta e fiquei esperando. Voltaram tarde, mas renovadas. Fico feliz de vê-las assim.
22 DE DEZEMBRO, TERÇA-FEIRA_Verônica se queixa de dores num dente que eu já havia tratado.
24 DE DEZEMBRO, QUINTA-FEIRA_Verônica continuou com as dores de dente. Fomos a um dos consultórios onde trabalho, para que eu pudesse cuidar dela. É ruim atender alguém que amamos, por quem zelamos diariamente. E, para piorar, ela não gosta de ir ao dentista. Fica muito ansiosa, ainda mais quando tem que tomar anestesia (e eu fico ansiosa também, por ela). Fiz o procedimento de acesso ao canal. Depois, corremos para a farmácia para comprar remédio. Verônica já apresentava dores pós-tratamento.
Fomos ao supermercado adquirir uma batedeira. Sempre que tenho tempo, gosto de fazer bolos e sobremesas.
À noite nos arrumamos para jantar na casa da mãe da Verônica. Além da minha sogra, estavam a avó da Verônica, o irmão com a esposa e a filha deles de 3 anos. Logo após a meia-noite, liguei para os meus pais. A casa deles estava cheia. No ano passado, comemoramos o Natal com eles.
27 DE DEZEMBRO, DOMINGO_Fomos levar a mãe da Verônica a Maricá, onde ela tem uma casa de veraneio. Vai passar o mês todo de férias lá. Voltamos ao Rio no fim da tarde. Em períodos de festas ou de feriados prolongados, quase não frequentamos a casa de Maricá, pois somos mais reservadas e gostamos de mais tranquilidade.
31 DE DEZEMBRO, QUINTA-FEIRA_Hoje é um dia importante para nós, pois será o primeiro Ano-Novo depois que casamos. Desde que comecei a namorar as meninas, nós só não passamos juntas a virada para 2011.
Acordamos mais cedo, para organizar e preparar a ceia. Nina fez canapés e minissanduíches naturais. Cozinhamos arroz com lentilha, feijoada – um dos nossos pratos favoritos – e rabanada. Arrumamos a mesa, com muitas frutas, flores e velas. Na virada do ano estávamos juntas, em casa, só nós três. Fizemos nossas orações colocando metas e objetivos para o novo ano.
Nina estourou o champanhe e se molhou toda. Brindamos ao amor, a 2016, aos nossos sonhos, ao primeiro Ano-Novo de nossa união oficial. Essas foram nossas primeiras festas de fim de ano como família de fato. Foi uma noite inesquecível. Ouvimos Madonna, Bon Jovi, Roxette. Depois coloquei um vídeo da música dos Detonautas Você Me Faz Tão Bem e fiz uma pequena serenata para as minhas esposas. Vimos 2016 amanhecer.
8 DE JANEIRO DE 2016, SEXTA-FEIRA_Ao longo da semana, como Nina estava em casa, ela ficou encarregada de resolver sobre plano de saúde para nós três. À noite recebemos a corretora. Diante do nosso documento, é possível termos um plano de saúde familiar com titular e dependente. Fechamos o negócio, preenchemos os papéis. Foi nossa primeira conquista depois da nossa união estável poliafetiva. Aos poucos nosso documento vai nos embasando, para que possamos ter os direitos simples de qualquer família, nas mais variadas situações. Estou feliz por isso. É mais uma forma de reconhecimento da minha família.
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