"Os carcereiros gritavam: 'Aqui não é a Itália, seu assassino de policiais, aqui você vai se foder, filho da puta!'", contou Battisti. As provocações aumentaram. Até que ele recebeu uma joelhada nas costas, teve o braço torcido, foi jogado no chão, chutado e cuspido FOTO: FRANCESCO GATTONI
À espera
Cesare Battisti, o último preso político no Brasil, aguarda a decisão do Supremo para saber se passará o resto da vida na cadeia
Mario Sergio Conti | Edição 11, Agosto 2007
Um grupo de jovens armados tentou assaltar a pizzaria Transatlantico, em Milão, na noite de 22 de janeiro de 1979. Um dos clientes, o joalheiro Pierluigi Torregiani, se fazia acompanhar por guarda-costas. Eles reagiram e, na troca de tiros, morreram um bandido e um freguês. Menos de um mês depois, veio a vingança. De revólver em punho, meia dúzia de rapazes entrou na joalheria de Torregiani. O comerciante sacou a sua Smith & Wesson e fez fogo. Errou o alvo e atingiu o próprio filho adotivo, Alberto, de 13 anos. Torregiani levou um disparo no coração e morreu na hora. O filho sobreviveu. Mas, com uma bala na medula, ficou paraplégico. Alberto só anda de cadeira de rodas.
No mesmo dia, 16 de fevereiro, a 500 quilômetros de Milão, na cidadezinha de Santa Maria di Sala, um bando armado matou a tiros o açougueiro Lino Sabbadin, que pouco antes também havia reagido a um assalto e matado um ladrão. As duas mortes foram assumidas pela organização Proletários Armados para o Comunismo, os PAC. Além de julgá-los assassinos, o grupo acusou o açougueiro de integrar um partido fascista, o Movimento Social Italiano, e o joalheiro (por ter guarda-costas), de ser o xerife do bairro. Os PAC reivindicaram outras duas execuções naquela época: a do comandante de prisão Antonio Santoro, numa emboscada de rua, em Udine, e a do policial Andrea Campagna, na frente da casa da namorada, em Milão. Ambos foram condenados à morte porque teriam torturado militantes da organização.
Os Proletários Armados para o Comunismo eram uma organização pequena e regional, que foi fundada em 1976 e deixou de existir apenas três anos depois. Nunca tiveram a expressão das Brigadas Vermelhas, que seqüestraram e mataram Aldo Moro, o líder democrata-cristão. Enquanto as Brigadas tinham ideologia rígida e se estruturavam militarmente, os PAC eram um grupo fluido, sem hierarquia, que assaltava mais para garantir o sustento de seus militantes que para incentivar a expropriação de capitalistas. Em vinte anos, contados a partir de 1969, cerca de 600 grupos reivindicaram ações subversivas na Itália. Só em 1979, quando os PAC fizeram três vítimas fatais, mais de 200 grupos de extrema-esquerda praticaram atentados na Itália.
As execuções do açougueiro e do dono de joalheria foram sintomas do estertor e da degeneração do movimento contestatório dos anos 60 na Itália. Ao contrário da França, cuja revolta se concentrou num mês, o maio de 68, a italiana se estendeu por mais de quinze anos. A rebelião teve as características de um país que, depois da II Grande Guerra, levou mais tempo até que a Alemanha para modernizar a indústria. Quando as grandes empresas – Fiat, Olivetti, Pirelli – finalmente deslancharam, elas se concentraram no norte da península. Provocaram, com isso, uma intensa migração de trabalhadores do sul. Eram operários pobres, de origem rural e sem estudo, que foram discriminados nas novas cidades e empregos. E cujos filhos forçaram a entrada em universidades elitizadas, que não tinham meios, nem vontade, de assimilá-los. As grandes greves, com tomadas de fábricas e universidades, extravasaram os limites traçados (à direita) pela democracia-cristã e (à esquerda) pelo Partido Comunista Italiano, o PCI, a maior organização stalinista da Europa ocidental.
Assim surgiu – e se radicalizou – aquilo que era chamado, com alegria, de “o Movimento”, e os livros de história vieram a denominar, sinistramente, “anos de chumbo”. O Movimento combinava esquerdismo extraparlamentar, enfrentamentos com a polícia, feminismo, antipsiquiatria, cinema e teatro experimentais, ocupações de sem-teto, jornais alternativos. Já os anos de chumbo contabilizaram mais de 12 mil atentados, que mataram 380 pessoas, feriram perto de duas mil e levaram quinze mil à prisão, das quais quatro mil foram condenadas. De um lado, havia o Estado, os comunistas e a Igreja. Do outro, o Movimento. Entre eles, trafegavam a máfia, organizações terroristas européias e palestinas, células infiltradas pelos serviços secretos da União Soviética e seus satélites, falanges fascistas.
Cesare Battisti é criatura daqueles anos. Ele nasceu no vilarejo de Sermoneta, ao sul de Roma. Seu avô festejou a fundação do PCI. Aos domingos, seu pai, Antonio, passeava pela cidade com um eloqüente cravo vermelho na lapela, para deixar clara sua simpatia política. O irmão mais velho, Giorgio, militante comunista, vestia camisas soviéticas. Já a mãe, Maria, com a cabeça coberta por um véu preto, temia a Deus e aos curas. Resultado: na casa onde moravam o casal e os seis filhos (quatro homens e duas mulheres), havia um retrato de Stálin na sala de jantar, que o caçula Cesare, na infância, imaginava ser a efígie de um santo católico.
Battisti aparenta mais que os seus 53 anos. Tem cabelos curtos e lisos, barba por fazer, o rosto encovado e pálido, lábios finos. Ele veste uma camiseta que, de tão desbotada, é impossível discernir a cor original. O cinza domina a sala exígua: está presente na tinta gasta das paredes, nas luzes fosforescentes que piscam em espasmos, nas barras de ferro das janelas pequenas, nas esquadrias foscas, na tez, nas fundas olheiras e nos olhos baços de Battisti. “Eu não gostava de estudar, fui cedo para a rua”, ele disse pelo interfone, a centímetros do vidro blindado que impede o contato com os presos, no locutório da carceragem da Polícia Federal, em Brasília. Os interfones, velhos e ruins, obrigam todos a falar alto. Escuta-se melhor o visitante ao lado do que, em frente, o interlocutor. Para piorar, o preso italiano padece de otite crônica e escuta mal.
Battisti contou que estava numa cela para dois presos, na qual se amontoavam ele e mais sete. “São garotos de vinte anos, que roubaram fios de cobre”, disse. “Como eles brincam, gritam, brigam e fazem bagunça o tempo todo, não consigo pensar direito, e muito menos escrever.” Na primeira juventude, Battisti parecia com seus atuais colegas de prisão. Em meados da década de 70, ficou dois anos na cadeia por assalto à mão armada e pequenos furtos. Ao ser solto, foi morar num prédio ocupado por três tipos de jovens do Movimento: deserdados do PCI, miseráveis realocados do campo para as cidades e burgueses em ruptura com a classe de origem.
Foi nesse período que conheceu Pietro Mutti, fundador e dirigente dos Proletários Armados para o Comunismo. No livro de memórias Minha fuga – que Battisti escreveu na clandestinidade, em Copacabana, e publicou na França no ano passado – ele diz que, por liderar o comitê sindical autônomo da Alfa-Romeo, Mutti era vigiado pela polícia e hostilizado pelos comunistas. Por isso, reduzia ao máximo o contato com os camaradas. Mas evitava mais Battisti que os outros. “Em cada um dos nossos encontros, havia qualquer coisa no ar”, ele escreve. “Como a menina e o menino que sabem que acabarão juntos, mas retardam ao máximo esse momento.”
Até que, numa determinada reunião, discutiu-se a necessidade de arrumar dinheiro para sustentar os militantes clandestinos. A idéia de se envolver de novo em roubos e assaltos fez com que Battisti sentisse um frio na espinha. Pela primeira vez, Mutti levantou os olhos em direção ao rapaz. “Ele farejou o meu medo, o escroto”, diz Battisti. Os dois passaram a noite juntos, num restaurante, e num bar, a madrugada. Na manhã seguinte, ele acordou na cama de Mutti, que já tinha saído para trabalhar. Os lençóis tinham odor de mulher.
Ficaram amigos. Ambos vinham de famílias modestas, se meteram em arruaças de rua, na pequena delinqüência, na política. A militância dera forças a Mutti para se afastar das drogas. Ficaram mais que amigos: compartilharam a cama e a mulher do dirigente dos PAC, uma anarquista com horror à idéia de ter filhos. Para ela, parir seria pôr mais explorados no mundo. Bem ao contrário de Mutti, cuja certeza de que a revolução estava ao alcance da mão fazia com que desejasse, ardentemente, ter filhos: eles viveriam o socialismo.
O líder e o liderado brigaram depois da primeira execução promovida pelos Proletários Armados. Battisti conta que, horrorizado com a morte do carcereiro Santoro, defendeu a dissolução do grupo. Mutti reagiu com raiva. Jogou um copo no chão, cobriu o rosto com as mãos e acusou o companheiro de traição. Em junho de 1979, uma operação policial prendeu dezenas de pessoas ligadas aos PAC. Inclusive Battisti, que morava num apartamento onde estavam escondidas armas do grupo. Ele foi acusado de formação de quadrilha, subversão e posse de armas. Exames balísticos comprovaram que nenhuma das armas que estavam no apartamento foi usada nas quatro mortes reivindicadas pelos Proletários. Battisti foi condenado a doze anos e dez meses de prisão.
Não cumpriu a pena. Em outubro de 1981, um comando organizado por Pietro Mutti entrou à força na cadeia onde estava e o libertou. Ele ficou escondido uma semana, no subsolo de uma casa, em Roma. Enquanto isso, em Sermoneta, suas irmãs Rita e Assunta eram detidas durante quatro dias, e seus irmãos Vincenzo e Domenico, por um dia. A polícia queria saber o destino do caçula.
Quando Mutti e Battisti se reencontraram, o primeiro convocou o outro para uma ação armada. Battisti se recusou. Defendeu com afinco, pois passara meses pensando no assunto, a deposição das armas, o fim do atentados e do terrorismo. Mutti voltou horas depois, acompanhado de meia dúzia de jovens. Battisti repetiu os argumentos e foi xingado de traidor sujo. Uma das garotas, inflamada, lhe jogou um cinzeiro na cara. Mutti nada disse. Na hora de sair, cuspiu no chão. Nunca mais se viram.
Um toque prolongado de campainha encerrou os sessenta minutos de visita. Battisti se despediu com um sorriso tímido, espalmando a mão esquerda sobre o vidro – o sinal de despedida que, na etiqueta carcerária, o visitante deve responder abrindo também a palma de encontro à do preso, como se fosse possível se tocarem.
Acompanhei em seguida o deputado Fernando Gabeira, do Partido Verde, ao primeiro andar da Polícia Federal. Ele queria averiguar se Battisti podia tomar duchas quentes, pois as frias lhe agravavam a dor de ouvido, assegurar o acesso dele à medicação e, quem sabe, conseguir sua transferência para uma cela com menos gente. O delegado Angêlo Gioia ficou de averiguar se os remédios lhe eram ministrados nos horários determinados pelo médico. Nada falou sobre banho quente. Como a carceragem estivesse lotada, descartou a transferência de cela. Contou ao deputado que Battisti era mal visto pelos outros presos.
– Por quê?, quis saber Gabeira.
– Porque o advogado dele insistiu em ter uma reunião com contato físico, respondeu o delegado. É um direito dele, mas que implica revistar antes tanto o detido como o advogado. Os outros presos, que não sabem da obrigatoriedade da revista, acharam que o Cesare foi privilegiado.
Battisti tem direito a receber duas visitas por semana, na mesma hora, por sessenta minutos. Elas podem lhe levar quatro frutas, quatro litros de suco, um quilo de biscoitos, cigarros, produtos de higiene e um livro, desde que em português. Tudo deve ser acondicionado em sacos de plástico transparente. Presos e visitantes dão como certo que policiais monitoram os interfones. Há três câmeras de vídeo no locutório. “Como a PF vive cheia, devido a essas operações todas, Battisti está sendo prejudicado”, diz Fernando Gabeira.
A situação dele já esteve pior. Ao ser preso, em março, em Copacabana, foi encaminhado ao presídio da Papuda, em Brasília. Sua chegada foi precedida pela notícia, velha de quase trinta anos, da morte de Antonio Santoro, o comandante de prisão em Udine. “Os carcereiros me gritavam: ‘Aqui não é a Itália, seu assassino de policiais, aqui você vai se foder, seu filho da puta!'”, disse Battisti. A hostilidade e as provocações aumentaram. Até que, um dia, o italiano recebeu uma joelhada nas costas, teve seu braço torcido, foi jogado no chão, chutado e cuspido. Ele fez uma denúncia à polícia civil e uma representação ao Supremo Tribunal Federal, pedindo a transferência de prisão. O ministro Celso de Mello, do STF, acatou a solicitação e ele foi levado à PF.
Abandonado pelos camaradas e com a polícia à sua procura, no final de 1981 Battisti atravessou os Alpes a pé. Estabeleceu-se em Paris. A decisão de fugir foi motivada pela sua crescente desconfiança na justiça, para ele encarnada em Armando Spataro, o procurador-adjunto do tribunal de Milão encarregado do seu caso. O procurador dificultava a visita de seus parentes, disse, e usou contra ele todos os recursos legais imagináveis.
Nos raros encontros com as irmãs, Battisti se esforçava para simular bom humor, para que elas saíssem do cárcere com o coração leve. Numa vez, recebeu Rita com piadas e ela desandou a chorar. Perguntou como ele podia rir diante do que acontecera com Giorgio. Só então soube que, três meses antes, o irmão mais velho, que trabalhava na colocação de placas em estradas, havia sido atropelado e morrera. A família lhe mandara cartas com a má notícia, mas o procurador-adjunto as confiscara. Um quarto de século depois, Battisti acredita que o mesmo Armando Spataro continua no seu encalço, encarniçadamente.
Battisti passou um ano em Paris. Com medo de ser descoberto, em 1982 mudou-se para o México com a mulher com quem veio a casar, Laurence. Para ganhar a vida, foi mergulhador submarino e cozinheiro. Foi lá também que descobriu sua vocação, a de escritor. Ele faz romances policiais, do gênero noir. São livros sombrios e violentos que, aqui e ali, recriam lances da biografia do autor: delinqüência juvenil, clandestinidade, solidão, terrorismo, perseguição, exílio, instabilidade e insegurança. Publicou uma dúzia deles na França e na Itália, em editoras de prestígio, como a Gallimard e a Einaudi.
Durante a estadia mexicana, reabriu-se o seu processo na Itália. Ele foi implicado nos quatro assassinatos dos Proletários Armados – diretamente, nos do policial e do carcereiro; e, por concepção e cumplicidade, nos dos comerciantes. Não surgiram novas provas ou testemunhas oculares. As acusações se basearam na palavra de Pietro Mutti.
Preso um ano depois da fuga de Battisti, Mutti se beneficiou da lei que deu origem aos pentiti, os arrependidos. A legislação, de 1982, foi concebida para ajudar no desmantelamento de organizações terroristas (e veio a ser usada contra a máfia, sobretudo na operação Mãos Limpas). Ela pertence à família da delação premiada: possibilitava que o dedo-duro diminuísse a pena, e até mesmo não a cumprisse, na proporção em que apontasse outros culpados. Acusado de matar Santoro, e ameaçado de prisão perpétua, Mutti passou a colaborar com a promotoria. Responsabilizou Battisti pelas quatro mortes dos PAC.
Battisti tem uma explicação racional para a delação de Mutti. Avaliou que, ao responsabilizá-lo pelos crimes de sangue, o ex-amigo e mentor agiu de maneira politicamente responsável. “Qualquer militante de esquerda sabe que, se necessário, você entrega primeiro os companheiros que estão longe, a salvo da polícia”, ele disse, em Brasília. “E entrega os mais velhos, para preservar os jovens. Eu me enquadrava nos dois casos: estava fora da Itália e não era um dos garotos que Mutti acabara de recrutar.”
Feitas todas as contas, o que sentia, preso num país distante, duas décadas depois, quando pensava em Mutti? Battisti disse uma palavra, acompanhada de um gesto de desprezo: “Melancolia”. O arrependido cumpriu poucos anos de pena. Solto, nunca mais se soube nada de Pietro Mutti.
Battisti foi condenado à prisão perpétua, e teve a sentença confirmada e reconfirmada em instâncias superiores. Usou-se, sempre, o procedimento da contumácia – a suposição de que o acusado se ausentou por vontade própria do julgamento. Battisti, que estava no México, nega que tivesse conhecimento do processo.
“Cesare sempre foi um revoltado, na infância e na juventude”, contou seu irmão Vincenzo, tomando um café expresso e fumando um cigarro, nervosamente, num bar em Brasília. Ele acabara de estar com o caçula, na Polícia Federal, depois de três anos sem vê-lo. Como Giorgio, Vincenzo trabalhava em sinalização rodoviária. Aposentou-se e ainda é um dos sete mil moradores de Sermoneta.
Vincenzo havia chegado na véspera à capital. Vestia uma calça de veludo e jaqueta marrons, excessivas para o calor e a secura da cidade. Ao ver o irmão, lágrimas rolaram pelo rosto, e ele as enxugou com a manga do casaco. Battisti abriu um raro sorriso, apontou o interfone e, sem derramamentos, pediu que anotasse recados – para Assunta e Rita, para Domenico, para Charlène e Valentina, para Laurence e Fred.
A mim, Battisti disse que não quisera alarmar o irmão, mas se sentia bem pior com relação a nosso encontro anterior: “Tenho dor de cabeça constante, insônia, crises de depressão, náuseas, falta de apetite. Recebo os remédios de vez em quando. Continuo sem permissão para tomar banhos quentes.” Pedi que comparasse as prisões da Itália e da França com as do Brasil. “Lá, estive em cadeias de segurança máxima”, disse. “Elas eram bem ruins, mas aqui é o inferno.”
No café, Vincenzo contou o quanto a viagem ao México, para ver o irmão, mudara sua vida: “Conheci uma mexicana. Uma bela mulher. Tivemos um caso. Ela ficou grávida e quis ter a criança. Eu voltei para a Itália. Minha mulher italiana ficou muitíssimo brava. Mas continuou comigo, felizmente. De maneira que agora tenho outro filho lá, além do rapaz e da moça na Itália. É um baita mexicano, de bigodão, que está com dezoito anos. Ele vai a Semoneta no Natal. Cesare falou, agora há pouco, que eu deveria ter passado uns dias no Rio, que ele acha a cidade com as mulheres mais lindas do mundo. Não estou mais na idade.” Ele ficou quinze dias no Brasil, não visitou o Rio, e, ao todo, conversou menos de duas horas com o irmão.
François Mitterrand escolheu uma ocasião solene para anunciar sua posição quanto a um problema que, desde a posse na presidência, o atazanava: o que fazer com os terroristas dos anos de chumbo que fugiram da justiça italiana e viviam na França. Falou do assunto no dia 20 de abril de 1985, na comemoração do 65o Congresso da Liga dos Direitos Humanos.
O presidente disse que moravam na França cerca de 100 dos italianos que participaram da luta armada nos anos de chumbo. Considerou que eles haviam rompido com a “máquina infernal” dos atentados. “Eles começaram uma segunda fase nas suas vidas”, discursou, “se inseriram na sociedade francesa, muitos se casaram, fundaram uma família, acharam uma profissão.” E anunciou que, pouco antes, avisara o governo italiano de que essa centena de militantes estaria “ao abrigo de toda sanção por meio de extradição”. Nascia a Doutrina Mitterrand, uma anistia transalpina.
Battisti continuou no México, e lá teve a sua primeira filha, Valentina. Em 1990, sua mulher voltou para Paris com a menina. Battisti não agüentou de saudades. Desembarcou no Aeroporto Charles de Gaulle com um passaporte falso e foi recebido por Laurence e a filha. Alojou-se com elas no pequeno apartamento da sogra, no XIII arrondissement, um bairro barato. Passou os primeiros dias flanando pela cidade. Levava e pegava a filha na escola, reencontrava amigos da sua primeira temporada parisiense, matava na Butte-aux-Cailles as saudades de um autêntico camembert. Sua vida engrenou: terminou um romance e fez traduções para o italiano de autores franceses de policiais. “Eu estava feliz, mas sabia que a minha prisão era inevitável”, disse.
Em janeiro de 1991, ele foi detido na prisão de Fresnes, enquanto a justiça francesa analisava o pedido de extradição formulado pelo governo italiano. Em maio, a demanda foi rejeitada. O fundamento para a negativa foi a Doutrina Mitterrand, que virara jurisprudência. Um segundo recurso confirmou a primeira instância: ele era “não-extraditável”.
Cesare Battisti obteve um título de estadia temporária na França. Teve uma segunda filha, Charlène. Seus livros foram elogiados pelos críticos e venderam razoavelmente. “Nunca pensei em viver em outro lugar que não Paris”, ele disse. “Para mim, a cidade é sinônimo da Revolução de 1789, da Comuna, do maio de 68. Michel Foucault foi o guru da minha militância juvenil, junto com Deleuze e Baudrillard. Gostei do México, fui feliz lá, mas não sou um latino-americano, sou um europeu.”
No mês passado, ele recebeu cartas das filhas. Charlène, de doze anos, escreveu o seguinte:
Querido papai,
Terminei a escola em 21 de junho. Nesse dia, cada professor organizou uma pequena festa. Toda a classe se divertiu muito, e eu também. Depois, minhas amigas (Alexia, Marie-Ange, Mélina, Meiwen, Karine) e eu fomos ao parque de Choisy. E para terminar a noite, era a Festa da Música. Neste verão, mamãe e eu vamos te visitar em Brasília. Estou realmente com pressa de te ver. Depois nós vamos à Vendéia, na casa de Fred, e eu vou ver o bebê do galo e da galinha da Fred. Ele deve ser superbonitinho.
Eu te amo muito, muito
e
te encho de beijos
Charlène,
PS: envio uma foto de quando voltei a Paris.
Na foto, a menina de cabelos loiros, repartidos do lado direito e caídos quase até a cintura, está sentada num banco de ônibus parisiense. No verso do retrato, há um pequeno coração desenhado.
De Trieste, Valentina mandou uma carta, datada de 4 de julho. Ela conta que soube pelo “Corriere della Sera que você pode ler um livro por semana. Se ler algum que exista em italiano, me diga o título. Se eu contar para a tia Assunta que você pode ler, ela vai lhe mandar a Bíblia inteira, o Evangelho e as cartas de São Paulo!” Informa que “a maldição da família continua: as primas não encontram marido e os machos formam família. Willian se tornará marido em agosto e Martino será papai em janeiro”. Dá mais notícias dos Battisti: “A tia Assunta continua a falar com demônios ausentes. Tio Domenico continua a viver para a mulher. Tio Vincenzo pinta os bigodes para disfarçar a idade (pinta muito, você vai ver por si mesmo) e tia Rita limpa a casa”. Ao se despedir, escreve: “Estamos ao teu lado, um beijo forte, te queremos bem”.
Às vezes, no idílio parisiense, o passado ameaçava voltar. Com a colaboração jurídica e policial cada vez mais estreita entre os estados-membros da União Européia, os nomes dos procurados por crimes na Itália reapareceram nos arquivos franceses. No início de 1998, um grupo de advogados enviou uma carta ao primeiro-ministro, pedindo que se esclarecesse o estatuto dos exilados italianos. Na resposta, o socialista Lionel Jospin assegurou: “Meu governo não tem a intenção de modificar a atitude que foi adotada pela França até o presente. É por isso que ele não dará seguimento a nenhum dos pedidos de extradição dos refugiados italianos”.
De maneira quase imperceptível, no entanto, sua situação começou a mudar. Em 2001, Silvio Berlusconi se tornou primeiro-ministro na Itália. No ano seguinte, Lionel Jospin chegou em terceiro lugar no primeiro turno das eleições presidenciais, atrás do fascista Jean-Marie Le Pen. No segundo turno, Jacques Chirac foi reeleito com mais de 80% dos votos. A direita reconquistou a maioria da Assembléia Nacional. O ministro da Justiça, Dominique Perben, declarou, a respeito dos exilados italianos: “Houve uma mudança na atitude da França”. Depois de nove governos, de direita e esquerda, a Doutrina Mitterrand virava letra morta.
Em fevereiro de 2004, Battisti foi detido por policiais da Direção Nacional Antiterrorista. O pretexto foi a queixa de um vizinho de que o italiano o teria ameaçado. Battisti acredita que o reclamante tenha sido manipulado pela polícia, e acha bizarro que agentes encarregados de terrorismo tenham investigado uma briga de vizinhos. A justiça decidiu que a queixa era improcedente e Battisti foi solto. Pôde aguardar em liberdade o julgamento da extradição. O governo italiano encaminhou um dossiê incriminatório de 800 páginas à justiça francesa.
Houve agitação nos meios intelectuais e políticos. À esquerda, mas também em setores liberais, considerou-se que os direitos dos italianos, que reconstruíram suas vidas a partir da palavra empenhada pela mais alta autoridade da República, foram violados pelo governo. “Como justificar uma mudança súbita da atitude da França?”, perguntou o abade Pierre, numa carta ao presidente da República. O frade capuchinho, que morreu no início do ano, era uma das personalidades mais respeitadas no país, por ter criado, no pós-guerra, uma organização de ajuda aos sem-teto e combate à pobreza, os Emaús. A pergunta do religioso não teve resposta, mas ecoou num abaixo-assinado de senadores, num manifesto da Liga dos Direitos do Homem, em petições de escritores e intelectuais.
Também se atacou a legalidade da extradição. Por dois motivos centrais e um acessório. Primeiro, por não existir no direito francês a contumácia, a condenação de uma acusado in absentia. Battisti não teria podido se defender. Nem poderia fazê-lo, já que na Itália, onde sua condenação transitara em julgado, a única alternativa era cumprir a pena. O segundo motivo refere-se à repetição do julgamento: como fora julgado “não-extraditável” doze anos antes, não deveria ter sido levado novamente, pelo mesmo motivo, a um tribunal. O motivo acessório era político. Havia quem argumentasse que, com leis como a dos arrependidos, a Itália dos anos de chumbo não deveria ser considerada um Estado de direito.
Na França, o affaire dizia respeito mais a um princípio – o do respeito à palavra do Estado – que à vida concreta de um homem. O próprio Battisti talvez tenha contribuído para isso. Em nenhum momento ele proclamou sua inocência. A questão de princípio era vista com simpatia pela grande imprensa e pelos intelectuais. O homem Battisti, nem tanto. Corria, surdo, o rumor de que ele era antipático, fechado, neurótico.
Na Itália, o affaire era outra coisa. À exceção de um jornal de extrema-esquerda, Il Manifesto, toda a imprensa e todos os partidos o consideravam um terrorista assassino e fujão. As entrevistas na televisão de Alberto Torregiani, em cadeira de rodas, tiveram impacto.
Com o passar dos meses, a imagem de Battisti na França ficou parecida com a que ele tinha na Itália. O jornal mais respeitado, Le Monde, publicou um editorial em defesa do direito de o escritor continuar no país. Pouco depois, porém, o ombudsman (que lá é chamado de “mediador”) publicou um incisivo ataque a Battisti. O subprocurador Armando Spataro, o mesmo que teria impedido que ele soubesse da morte do irmão, 25 anos antes, deu uma longa entrevista. Nela, disse que Battisti foi preso “quase em flagrante delito”, já que no seu apartamento havia armas. O deputado Luciano Violante, líder da bancada da Democracia de Esquerda – que reuniu remanescentes do extinto Partido Comunista Italiano – na Câmara, defendeu no Monde a extradição. O jornal voltou atrás no apoio a Battisti.
No final de junho de 2004, o Tribunal de Apelação de Paris autorizou a extradição de Battisti. Seus advogados entraram com um recurso. Em outubro, veio a sentença definitiva, da Corte de Cassação: ele deveria ser entregue à Justiça italiana. Entre uma decisão e outra, ele continuou em liberdade. Tinha a obrigação de se apresentar semanalmente na sede da Polícia. Assim fez, sempre acompanhado de vereadores socialistas e verdes – até o início do outono, o dia 24 de agosto, quando caiu de novo na clandestinidade. (Posteriormente, a sentença de extradição foi confirmada pelo Conselho de Estado francês e pela Corte Européia de Direitos Humanos, em Strasburgo.)
Tiveram peso no julgamento três cartas, assinadas por Battisti, encarregando um advogado italiano de defendê-lo das acusações de assassinato. Como eram datadas de 1982 e 1990, comprovariam que ele estava ciente do julgamento, que orientou a defesa e, portanto, não foi condenado em contumácia. Battisti afirmou que, antes de fugir da Itália, deixou papéis assinados, mas em branco, com um advogado. Um exame grafotécnico, que só foi liberado pelo ministério da Justiça três meses depois de ele sumir da França, mostrou que as assinaturas foram postas no papel anos antes de os textos serem escritos. “Essas cartas são fraudes”, disse Fred Vargas, “mas foi com elas que o Estado francês forçou um inocente a se exilar.”
Foi somente dezesseis dias antes de desaparecer que Battisti, finalmente, veio a público para se dizer inocente. “Jamais matei”, afirmou ao Journal du Dimanche, “e posso dizer isso olhando nos olhos dos familiares, das vítimas e dos magistrados.”
Perguntei a Battisti por que ele só fora taxativo quanto à sua inocência no último momento. “Tive de assumir uma responsabilidade política”, respondeu. Ele explicou que não poderia fingir que os 100 refugiados italianos não existiam. Para essa comunidade, e para os seus advogados, o que deveria ser preservado era a Doutrina Mitterrand, o princípio que protegeria a todos. Não se devia, portanto, entrar no mérito da culpa ou da inocência individual. Quis saber se essa linha não terminou por prejudicá-lo. “Sem dúvida”, respondeu. Especulei se ele não se alinhara com os refugiados italianos por remorso, porque era mal visto por eles. “Pode ser”, ele disse. Ficou em silêncio. E falou: “Eu aceito ser julgado por ter pertencido a uma organização que participou da luta armada. O que não aceito é que me joguem na prisão, pelo resto da vida, por assassinatos que não cometi. Foi por isso que vim para o Brasil”.
As irmãs Frédérique e Joëlle Audoin-Rouzeau são artistas conhecidas na França, se bem que não com esses nomes. Quando se tornou pintora, Joëlle criou um pseudônimo que unia o diminutivo do seu prenome ao sobrenome da personagem feita por Ava Gardner no filme A Condessa Descalça: Jo Vargas. Sua irmã gêmea adotou o mesmo método e virou Fred Vargas. Ela é arqueóloga, com especialização em animais domésticos da Idade Média. Mas é com romances como Fuja Logo e Demore para Voltar e O Homem dos Círculos Azuis que adquiriu o renome de a mais inventiva escritora francesa de livros policiais.
Na última quinta-feira de julho, três anos depois de terem visto Battisti na França, Jo e Fred Vargas estiveram com ele, em Brasília. “Foi um reencontro emocionadíssimo”, contou Maria das Graças Silva, funcionária da Comissão de Direitos Humanos da Câmara que todas as semanas, sem falha, vai à PF para ver se é possível melhorar, de alguma forma, a situação de Battisti. Logo depois do encontro, a romancista telefonou a Gabriel García Márquez, para contar ao escritor colombiano como estava o preso.
Fred Vargas é a campeã da causa de Battisti. Ela anima os comitês de apoio ao italiano, discute estratégias de defesa com advogados, ficou amiga das filhas dele, organizou o livro La Vérité sur Cesare Battisti e escreveu o posfácio de Minha Fuga. A escritora contou que só trocara rápidas palavras com Battisti, em reuniões literárias, até que ele foi preso. “A injustiça era tão flagrante que resolvi me empenhar em defendê-lo.”
Ela participou das discussões que levaram Battisti a deixar em segundo plano a defesa da sua inocência. “Ele acreditou na justiça francesa, achou que ela seria independente”, disse a romancista, numa conversa telefônica. “Eu sempre tive sérias dúvidas quanto a isso. Battisti viveu um drama corneliano: abandonar a sua salvação individual ou ser acusado de traição coletiva. No fim, ficou claro que os governos da Itália e da França se uniram para extraditá-lo.”
– Por quê?
– Porque havia interesse em transformá-lo num bode expiatório, ela respondeu. Foi um processo bastante parecido com os que ocorriam na Idade Média, que estudei como arqueóloga. Battisti virou primeiro um estrangeiro, depois um terrorista, depois um assassino, depois um monstro. O governo italiano montou uma célula, na sua embaixada em Paris, para denegrir Battisti e, por intermédio da imprensa, influenciar a justiça francesa. E os governos da Itália e da França devem estar agindo assim.
– Como?
– Esse nosso telefonema, por exemplo, pode estar sendo gravado, ela respondeu.
– Mas para quê?
– Para saber qual será a linha adotada pelos advogados na defesa de Battisti no julgamento no Brasil.
O escritor já havia falado da tal célula e do empenho do governo italiano em extraditá-lo. Coloquei-lhe uma dificuldade nesse raciocínio. Quem iniciara a pressão fora o governo de Silvio Berlusconi, que tinha o apoio de grupos de extrema-direita e fascistas, para os quais a prisão de Battisti era um ponto de honra. Mas quem levara adiante a extradição fora o governo de Romano Prodi, sustentado por algumas forças da esquerda, inclusive os ex-comunistas.
“Mas é por isso que a pressão aumentou”, disse Battisti. Para ele, são justamente os ex-comunistas que têm interesse em condená-lo. “Foram eles que ajudaram a criar a legislação de exceção; foram eles que, nos anos 60, se uniram à democracia-cristã contra o Movimento; são eles que, sempre que podem, gostam de demonstrar o seu apreço à ordem autoritária.”
Quando Battisti faltou ao controle judiciário e desapareceu da noite para o dia, a polícia francesa ficou numa posição vexatória. Várias reportagens questionaram a competência dela. Ainda mais porque a polícia admitiu que o escritor estava sendo vigiado 24 horas por dia, pois era mais que esperado que ele tentaria escapar, e se esconderia até a decisão de final.
Battisti a princípio não quis falar sobre a fuga da França. No segundo encontro, perguntei-lhe do quê sentia mais falta, na prisão. “De escrever e de me comunicar”, respondeu, de bate-pronto. Disse então que gostaria de contar como escapara da França, um relato que omitira no seu livro de memórias. Lentamente, ditou o seguinte:
Em 2004, não fugi da França por conta própria. Os serviços de inteligência dos dois países [França e Itália] me providenciaram dois passaportes, um italiano e um francês. Eles me esperaram no desembarque no Brasil. O passaporte italiano, cujo código de barras estava desativado, com um tíquete em branco, foi ativado pela PF. Esse mesmo passaporte foi recuperado pela inteligência francesa, do meu quarto de hotel, no Rio, no mês de agosto de 2006. Assim, as autoridades policiais da França e do Brasil sempre me controlaram, sem se esconder. Eu não sei se Sarkozy estava planejando quem seria a sua vítima. Eu nunca disse nada sobre isso por medo. Existe uma testemunha para tudo isso. Agora eu desejo que toda essa parte se torne pública.
Como se recuperava de uma virose, e no dia seguinte viajaria para a Espanha, o ministro Tarso Genro, da Justiça, marcou a conversa sobre Battisti na sua casa, em Brasília. Semanas antes, ele havia discutido a situação do preso com o embaixador da Itália, Michele Valensise, e com o escritor francês Bernard-Henri Lévy. O diplomata lhe encaminhou o dossiê acusatório contra Battisti e o pedido de extradição. “Eu recebi o processo, como é de ofício”, conta Tarso Genro, “e disse ao embaixador que o caso é da alçada do Supremo Tribunal Federal”. Já o autor de American Vertigo aproveitou que tinha uma palestra no Brasil para visitar tanto Battisti como o ministro da Justiça. A Tarso, BHL (como é conhecido na França) repetiu o ponto de vista que expôs no prefácio das memórias de Battisti: o italiano deve ter o direito de se defender.
Ao saber que Battisti contara que as policiais da França, da Itália e do Brasil monitoravam seus passos, o ministro não se espantou. “Em tese, até existe a possibilidade de que algo semelhante possa ter ocorrido”, ele disse. “Os mundos da espionagem, dos serviços de segurança e das polícias são interpenetráveis. Agentes de países diversos podem trocar informações entre si, à revelia das hierarquias. O que é impossível é uma autoridade dar uma ordem à PF para que cometa uma irregularidade, que não prenda, por exemplo, uma pessoa contra a qual há uma ordem de prisão internacional.”
Battisti contou ainda que policiais franceses seguiram seus passos, praticamente o tempo todo, no Brasil. “Eles alugaram um apartamento em frente ao meu, me seguiam na rua e em viagens”, disse. “Às vezes, eram acompanhados por policiais brasileiros.” Ele diz que tem uma testemunha que pode confirmar a história. É uma moça, que encontrou em Copacabana, chamada Joyce Passos Santos, e se tornou sua amiga. Ela seria técnica em informática e moraria em Belford Roxo. Battisti diz que sabe chegar à casa dela, mas não lembra do seu endereço. Ele afirma que Joyce foi subornada pela polícia e passou a espioná-lo.
Para o italiano, o dia da sua prisão no Rio – 18 de maio passado – deve ter sido escolhido por Nicolas Sarkozy, que era então ministro do Interior (e, portanto, chefe das forças policiais e de segurança) e estava em campanha pela presidência francesa. “Sarkô deu um golpe publicitário, quis mostrar que é o supertira”, disse-me. Essa versão circulou com tanta intensidade na França, nos dias que se seguiram à prisão, que o próprio Sarkozy teve de desmenti-la. Seus dois principais oponentes na campanha, a socialista Ségolène Royal e o centrista François Bayrou, se disseram contra a extradição de Battisti.
A embaixada da Itália não fala oficialmente sobre o affaire. Mas, numa conversa bastante objetiva, um diplomata que trabalha no edifício projetado em Brasília por Pierluigi Nervi disse que o caso contra Battisti é muito consistente. Ele lembrou que a condenação do seu conterrâneo se deu em três instâncias; que na França outras três instâncias aprovaram a extradição; e que uma corte superior européia considerou o processo plenamente legal. Fazendo todas as ressalvas de que a justiça brasileira é soberana, o diplomata não via por que o Supremo teria um entendimento diferente.
Nos últimos anos, porém, o governo italiano entrou no STF com quatro pedidos de extradição de ex-militantes dos anos de chumbo. E nenhum deles foi mandado de volta para a Itália. Foi exatamente por isso que Battisti veio para o Brasil. “Eu não quero passar o resto da minha vida na clandestinidade”, explicou. Para conseguir a extradição, o Supremo terá de ser convencido de que os crimes de Battisti tiveram motivação comum, e não política.
“A Itália não tem jeito”, lamentou Piero Mancini, abrindo um sorriso irônico, no terraço do Bar Lagoa, no Rio, num fim de tarde de julho. “Dezenas de milhares de pessoas participaram dos anos de chumbo. Foi uma militância de massa, que levou a uma repressão igualmente de massa. As pessoas queriam mudar a sociedade, roubaram, se bateram, mataram e morreram por isso. E a Itália continua a insistir que tudo aquilo não foi político.”
Mancini está com 59 anos, é robusto e tem a fala mansa. Ele chegou à Universidade de Trento, em 1968, para estudar sociologia. Foi logo arrastado pelo Movimento. Entrou no movimento estudantil, logo mudou para Milão e se tornou quadro da Federação dos Metalúrgicos, militante da organização Autonomia Operária e editor do jornal Rosso. Em 1979, perseguido pela polícia, mudou-se para Nova York. Foi aberto um processo contra ele. À revelia, em 1996, Mancini foi condenado a vinte anos de prisão, por subversão, formação de quadrilha armada e participação, indireta, num assassinato – ele organizou uma passeata na qual morreu um policial. A essa altura, ele estava no Brasil, onde montou uma produtora de vídeo. Há dois anos, cumprindo um mandado da Interpol, a PF o prendeu no Rio. Ficou na cadeia por seis meses. Sua extradição foi negada por dez votos a um. Adaptou-se tão bem ao Rio que, a pretexto de que o inverno carioca estava inclemente, pediu uma caipirinha de lima.
“A Itália só toma jeito se tirarem o papa do território nacional”, ele diz, de brincadeira, mas talvez nem tanto. “Onde já se viu uma lei chamada dos arrependidos? O sujeito tem que se arrepender do que fez, bater no peito, fazer penitência, apontar outros hereges… Só na Itália. No Brasil, e em toda a América Latina, houve anistia. Houve processos políticos. Só a Itália acha que foi tudo uma questão de pecado, arrependimento e punição. Por causa da mentalidade católica, do papa!”
Luciano Pessina é outro italiano que teve sua extradição negada pelo Supremo. Foi o seu caso que criou a jurisprudência: explicitamente, por onze a zero, os juízes do STF decidiram que ele era um preso político, e portanto não poderia se extraditado. Dono de um restaurante em Ipanema, o ex-militante da Autonomia Operária esteve há pouco em Milão, sua cidade de origem. “Milão mudou muito, está rica e cosmopolita, cheia de árabes, africanos, asiáticos”, ele disse, pouco depois de desmontar da bicicleta e entrar no seu restaurante. “E eu, praticamente um migrante, não me adaptei. Fiquei então nessa posição estranha: vivo bem aqui, tenho uma filha brasileira, mas não sou bem brasileiro.”
Cesare Battisti não chegou a formar uma opinião sobre o país onde se escondeu e no qual quer viver. “No começo, achava o Brasil parecido com os Estados Unidos”, disse, “mas um Estados Unidos decadente, caindo aos pedaços. Há algo no país que me escapa, que não consigo entender.” Ele refletiu, se preparou para perguntar algo. Mas a campainha soou e o pensamento lhe escapou. Ele abriu a mão de encontro ao vidro para se despedir.