As pessoas ficavam alarmadas quando tomavam conhecimento do meu destino, mas eu gostava de ser o tipo de mulher capaz de se arrojar grávida pelo deserto de Gobi ILUSTRAÇÃO: JAVIER JAÉN
Céu escuro na Mongólia
Pensei que fosse um castigo, mas o médico disse que poderia ter acontecido em qualquer lugar
Ariel Levy | Edição 89, Fevereiro 2014
Quando menina, eu adorava brincar de múmia e explorador. Meu pai e eu nos alternávamos nos papéis: um dos dois ficava imóvel, com os olhos fechados e os braços cruzados no peito, enquanto o outro andava de um lado para o outro, resmungando: “Venho revirando essas pirâmides há tanto tempo! Quando é que vou encontrar a tumba de Tutancâmon?” (Estávamos no final da década de 70, período em que a tumba ficou exposta no Metropolitan Museum de Nova York, e com frequência saíamos do subúrbio onde morávamos para visitá-la.)[1] No clímax da brincadeira, o explorador esbarrava no faraó embalsamado e – surpresa! – a múmia abria os olhos e ganhava vida. O explorador manifestava grande espanto e em seguida perguntava: “E aí, alguma novidade?” Ao que a múmia respondia: “Você.”
Não gostava muito de brincar de casinha – preferia as viagens de faz de conta repletas de aventuras com reis e piratas. Eu era mandona, impaciente, falava sem parar e – como boa filha única – muitas vezes ficava frustrada com o comportamento das outras crianças. Não era uma garota muito popular. Costumava brincar de Robinson Crusoé num fortezinho de madeira que meus pais construíram para mim no jardim atrás de casa. Lá eu não me sentia discriminada nem constrangida – era confiante, valente e engenhosa para sobreviver, embora estivesse perdida.
O outro hábitat natural para uma criança que adora palavras e aventuras é o livro, e eu amava quando meus pais liam para mim Moby Dick, O Hobbit ou Píppi Meialonga. Bem cedo resolvi que seria escritora quando crescesse. Uma profissão, pensava, que combinava com o tipo de mulher que eu queria ser: livre para fazer o que bem quisesse. No terceiro ano, comecei a escrever um diário e, solidária com Anne Frank, dei-lhe um nome e o transformei em meu confidente. Até hoje me sinto protegida e a salvo da solidão se dispuser de lápis e papel para anotar minhas experiências, por mais exóticos que sejam os locais onde me encontro.
Nos últimos vinte anos, aproveitei todas as oportunidades que tive de conhecer lugares estranhos. Não há nada melhor que viajar para onde eu não conheça ninguém e tudo me surpreenda, e depois escrever a respeito. Da primeira vez que fui à África para uma reportagem, fiquei tão agitada que mal consegui dormir durante as duas semanas da viagem. Tudo era novo: o sabor de carne de gazela, o nevoeiro cor-de-rosa que envolvia a Cidade do Cabo, o caos e a barulheira das favelas de zinco de Khayelitsha. Ainda sentia os efeitos da adrenalina quando me vi de volta a minha mesa em Nova York, digitando a matéria enquanto minha parceira assava um frango na cozinha.
À medida que minhas amigas, uma atrás da outra, transitavam da condição de jovens mulheres para a de mães, mais patente ficava o meu estatuto de “pessoa sem filhos”. Escutei muitas vezes a canção de Lou Reed chamada Beginning of a Great Adventure, sobre as possibilidades do nascimento iminente de um filho. “Um pequeno eu ou ele ou ela para inculcar meus sonhos”, canta Lou, com uma esperança ácida, “um jeito de dizer que a vida não é um desperdício”. Essa música se transformou na trilha sonora das minhas ruminações sobre a maternidade. Eu sabia que uma criança iria tornar praticamente impossível minha vida de exploradora profissional. Mas ter um filho me parecia, de muitas maneiras, a mais fascinante das viagens.
Sempre me apavoro na véspera de embarcar. Cismo que dessa vez não vai dar certo: não vou entender o mapa, não vou me comunicar com gente que não fala inglês nem localizar as pessoas que preciso entrevistar para a matéria que é a razão da viagem. Não vou dar conta do recado, vou ficar vulnerável, vou me perder. Sei que meu pânico se transforma em entusiasmo assim que desembarco – sempre acontece –, mas nem por isso diminui o medo que sinto antes da partida. Com a gravidez foi a mesma coisa: passei dez anos com medo. Não gostei de ter sido criança, e meu medo era ter um filho que também não viesse a gostar da sua infância. Tinha medo de falhar diante das obrigações de mãe. E tinha medo de me descobrir de castigo, trancada, presa a um só lugar por dezoito anos dedicados a aulas de oboé e deveres de casa de matemática que já da primeira vez eu não soube fazer.
Foi durante uma viagem para o lançamento de um livro em Atenas que decidi que ia encarar. Minha companheira – que sempre deixou claro que em matéria de filhos o voto decisivo era meu – tinha ido comigo, e vivíamos um desses momentos mágicos no casamento, quando o par se acha perfeito, uma pessoa nascida para a outra. Meu editor grego e sua mulher nos levaram para dançar e beber, e nos ofereceram um jantar em seu apartamento, que era apertado e estava repleto de crianças, amigos, mussakka e fumaça de cigarro. “Os americanos são tensos demais”, um dos convidados me disse, equilibrando no colo o filho de 3 anos enquanto tomava um gole de uzo. A Grécia estava quebrada. As ruas de Atenas apinhadas de gatos e cachorros abandonados pelos donos, sem dinheiro para a ração. Ainda assim, nossos anfitriões mostravam-se muito felizes. A família não lhes parecia ser um fardo, e sim uma festa. Brotou em minha cabeça a ideia de que ser governada por alguma coisa que não meus próprios desejos e meu impulso de correr pelo mundo podia acabar sendo um prazer, um alívio.
Engravidei logo, para meu espanto e deleite, pouco antes de completar 38 anos. Eu me sentia como se tivesse conseguido embarcar num voo no último instante, segundos antes de o portão se fechar – o que é sempre uma emoção. Ao final de apenas dois meses, já pude ouvir no consultório médico o coração da criaturinha batendo dentro de mim. Parecia mágica: um punhado de ossos, um tantinho de sangue, um tubo de oxigênio, e de repente eu era uma feiticeira, com o poder de gerar uma vida. Mesmo não sendo Robinson Crusoé sozinho em seu forte, a gente sempre caminha solitariamente pela vida. Entretanto, depois que engravida, você nunca mais está sozinha.
O médico disse que eu podia viajar de avião sem problemas até o terceiro trimestre. Grávida de cinco meses, resolvi fazer uma última grande viagem. Depois disso, só um ou dois anos mais à frente eu poderia passar algumas semanas longe de casa, experimentando o prazer eufórico de sentir um novo lugar revelar-se para mim. (É como encontrar um novo amor – mesmo as coisas que você não acha irresistíveis acabam revestidas do fascínio da novidade.) Pouco antes do Dia de Ação de Graças,[2] parti para a Mongólia.
As pessoas ficavam alarmadas quando tomavam conhecimento do meu destino, mas eu estava muito orgulhosa. Gostava de ser o tipo de mulher capaz de se arrojar grávida pelo deserto de Gobi; tanto quanto, aos 22 anos, me agradou ser a garota capaz de viajar sozinha para a Índia. E ainda achava ótima a ideia de poder dizer depois a meu filho: “Quando você ainda estava na minha barriga, fomos conhecer os confins da Terra.” Na verdade, só tinha medo do inverno mongol. Em outubro, a temporada de turismo já começa a minguar; no final de novembro, época em que peguei meu avião, as temperaturas à noite costumam desabar até 30 graus abaixo de zero. Mas eu estava preparada: tinha comprado calças impermeáveis adequadas a meu barrigão, além de ceroulas dois tamanhos acima do que costumava usar.
Estar grávida significa sentir algum desconforto quase o tempo todo. Nos primeiros meses, todo dia eu acordava de ressaca sem ter bebido – me sentia nauseada, mas faminta, assolada por uma dor de cabeça incessante, e na verdade só conseguia ficar gemendo em frente à televisão. Isso passou, mas uma semana antes da partida para a Mongólia comecei a sentir uma dor no abdome que nunca tinha experimentado. “Dor no ligamento redondo”, foi o que me disse todo mundo que sabia da minha gravidez, e o que li em todos os sites pré-natais da internet: o útero se expandia para acomodar o bebê, que finalmente atingia um tamanho que me fazia parecer de fato grávida, e não simplesmente mais gorda. Essa informação me consolou ao longo do voo até Pequim, durante as catorze longas horas que passei me remexendo no assento, à procura de uma posição que não incomodasse os tais ligamentos redondos.
Era de manhã quando meu voo pousou na Mongólia, mas o nevoeiro cinzento dava a impressão de que anoitecia. Ulan-Bator é uma das capitais mais poluídas do planeta, e também a mais fria. O carro que me levava do aeroporto ao Centro serpenteava entre campos congelados e agrupamentos de tendas de feltro – as iurtas, como são chamadas –, até chegar a uma cidade populosa, em que se destacavam os prédios da administração municipal, construídos na era soviética,[3] o entrelaçado confuso de fios de telefone e ônibus elétricos e os antigos templos budistas tibetanos com seus telhados característicos, ao estilo dos pagodes chineses. Os pedestres andavam muito depressa e a passos desajeitados, envoltos em camadas e mais camadas de roupas como proteção contra o frio glacial.
Eu pretendia escrever uma reportagem sobre as transformações decorrentes dos rios de dinheiro que a indústria de extração mineral começava a carrear para lá. A Mongólia tem imensas reservas de carvão, ouro e minério de cobre; a expectativa era de que a riqueza do país duplicasse em cinco anos. Entretanto, um terço dos seus habitantes ainda conserva o modo de vida nômade, pastoreando seus rebanhos e dormindo em gers, aquecidos com a queima de carvão ou lixo. Até o boom, o produto de exportação mais conhecido era a lã de cashmere. Jackson Cox, um jovem consultor nascido no Tennessee que morava em Ulan-Bator havia doze anos, resumiu assim a situação: “Estamos falando de uma economia baseada na carne de iaque e no comércio de pelo de cabra.”
Fui encontrar Cox logo na minha primeira noite. Ele mandou um motorista me pegar – todo ocidental que encontrei na capital mongol tinha um carro com motorista – no recém-inaugurado Blue Sky Hotel, uma torre de vidro pontiaguda, barbatana de tubarão a cortar o céu gélido da cidade. Quando cheguei ao apartamento de Cox, ele e um amigo, um advogado de Nova Jersey empregado na indústria de mineração, estavam escutando Beyoncé e tomando champanhe.
O apartamento, embora moderno e clean, era modesto; para os americanos expatriados em Ulan-Bator, acumular riqueza é bem mais fácil do que gastá-la. Fomos jantar num restaurante francês onde todos pedimos carne, pois em geral os frutos do mar são horríveis no país, separado do mar por dois vizinhos de peso (e ex-ocupantes do seu território), a China e a Rússia. Em seguida, os dois me levaram a um bar gay chamado 100% – bem poderia ficar no Brooklyn, com a diferença de que na Mongólia as pessoas ainda fumam em recinto fechado. Até gostei de me ver sentada num compartimento reservado de um ambiente quase às escuras repleto de gays mongóis fumando sem parar, mas meu corpo estava esquisito e preferi encerrar a noite mais cedo.
Quando acordei na manhã seguinte, a dor no abdome era insistente, e eu me perguntei se o bebê estaria começando a chutar, o que todos me diziam estar a ponto de acontecer. Liguei para casa me queixando, e minha companheira recomendou que eu procurasse uma clínica ocidental. Mandei um e-mail para Cox pedindo o telefone de seu médico – recorreria a ele se a dor ficasse pior. Então saí para entrevistar algumas pessoas: o ministro do meio ambiente, o presidente de uma empresa de mineração e, finalmente, Tsetsegee Munkhbayar, um pastor de rebanhos conservacionista transformado em herói popular depois de atacar a tiros as instalações de mineradoras que vinham desviando água de comunidades nômades. Encontrei-o no elegante saguão do Blue Sky, ao lado de Yondon Badral – um sujeito sardônico e sagaz que contratei para me servir de intérprete na cidade e que depois me acompanharia por alguns dias até o deserto de Gobi, cujas areias geladas planejávamos cruzar numa Land Rover a fim de entrevistar nômades e mineiros. Badral vestia jeans e um suéter; Munkhbayar usava um deel longo, a tradicional veste mongol, e um chapéu de pelo com um pequeno falcão de metal empoleirado no topo. Senti-me tomando um cappuccino com Gengis Khan.
No meio da entrevista, Badral ficou em silêncio, olhando para mim – devo ter manifestado sinais de desconforto enquanto ele falava. Disse que estava ocorrendo o mesmo com sua mulher, também grávida, poucas semanas mais adiantada do que eu, e explicou a situação a Munkhbayar. A pele do nômade tinha rachaduras cor-de-rosa provocadas pelo vento; as narinas, os olhos e as orelhas pareciam ter afundado no rosto para evitar o frio. Senti uma ponta de orgulho quando ele elogiou minha coragem por fazer uma viagem tão longa na minha condição. Mas também começava a ficar preocupada.
Quase cancelei meu segundo jantar com os americanos, mas concluí que precisava comer, e os dois se ofereceram para me encontrar no restaurante japonês do hotel. Cox viajaria no dia seguinte para passar o Dia de Ação de Graças em família, e sentia-se culpado por ter desembolsado uma fortuna por um assento na classe executiva. Pensei no desconforto do meu voo de vinda e comentei que a diferença devia valer a pena. “Cox, você está parecendo uma princesa”, disse o amigo em tom ácido, mas não consegui achar graça. Alguma coisa estava acontecendo dentro de mim. Precisei deixar a mesa antes mesmo que a comida chegasse.
Corri para o quarto, tirei as calças e me acocorei no chão do banheiro, como havia feito dez anos antes, no Camboja, quando tive disenteria. Mas a dor naquela posição era insuportável. Eu me ajoelhei, apoiei os ombros no chão e encostei o rosto na cerâmica fria do piso. E me lembro de ter pensado: “Vai ser uma cagada histórica.”
Senti uma dor atroz, e depois disso há uma lacuna breve na minha memória; ou bem desmaiei de dor ou bem bloqueei a lembrança do que se passou. Então me deparei com outra pessoa no chão diante de mim, agitando braços e pernas, viva. E me ouvi dizer, em voz alta: “Isso não pode estar acontecendo.” Mas tudo dava a impressão de estar acontecendo. Meu bebê era bonito como uma conchinha do mar.
Era translúcido, rosado e muito, muito pequeno, mas sem nenhum defeito. Seus lindos lábios se abriam e se fechavam, se abriam e se fechavam, tentando engolir o mundo novo. Por um tempo que não sei definir, fiquei sentada ali, atônita, petrificada. Cada dedo dos pés e das mãos, a sombra dourada das sobrancelhas em crescimento, a elegância dos ombros – tudo era um milagre espantoso. Aproximei-o do meu rosto, sua cabeça e seus ombros na minha mão, suas pernas pendendo quase até o meu cotovelo. Tentei pensar em alguma providência materna que pudesse tomar para comunicar a ele que eu era de fato sua mãe, e que a situação estava sob controle. Beijei-lhe a testa e sua pele me parecia sedosa como a pele de uma rã.
Eu tinha uma vaga consciência do abundante fluxo de sangue que escorria de mim. Depois de algum tempo, desviei os olhos do meu rebento para o lago vermelho que se espalhava pelo chão do banheiro e perguntei a mim mesma o que fazer com o cordão umbilical que conectava aqueles dois fenômenos. Era bem mais grosso do que eu imaginava e de uma brancura fantasmagórica, uma corda humana retorcida. Eu sabia que precisava ser cortado – é sempre a primeira coisa que acontece nos filmes. Tive medo de que, se eu não o fizesse, meu filho de alguma forma pudesse sufocar. Mas eu não tinha uma tesoura. Então puxei o cordão para fora de mim num arranco rápido e violento.
Nas minhas mãos, a pele do bebê começava a adquirir um suave tom arroxeado. Sangrei pelo quarto até pegar o telefone e liguei para o médico de Cox. Uma voz atendeu a ligação. Contei que, com dezenove semanas de gravidez, tinha dado à luz no Sky Blue Hotel. A voz me disse que o bebê não iria sobreviver. “Ele está vivo agora”, respondi, olhando para a pessoa que segurava com a mão esquerda. A voz disse que entendia, mas que não iria durar, e que ia chamar uma ambulância para nos recolher em seguida. Respondi que se não havia chance de salvar o bebê talvez fosse melhor eu tomar um táxi. A voz retrucou que não achava uma boa ideia.
Antes de desligar, tirei uma foto do meu filho, para me certificar do que havia ocorrido. Temia não acreditar que ele tivesse existido.
O torpor e a sensação de competência que eu havia experimentado cessaram assim que as duas paramédicas mongóis entraram no quarto. Uma delas me ofereceu um absorvente interno, que eu sabia que não devia aceitar – a compreensão de que, de nós duas, era eu quem tinha mais informação desencadeou um pânico terrível, e eu disse a ela que ia vomitar. Ela perguntou se eu estava bêbada e eu respondi, ofendida: “Não, mas estou nervosa.” Então ela disse: “Chore, só chore, chore, chore.” Sua colega se debruçou para enfiar uma agulha grossa no meu braço e eu ainda me perguntei se não iria pegar uma variedade mongol de Aids, mas fui incapaz de qualquer reação que não fosse chorar, chorar, chorar. Ela tentou me tirar o bebê e tive o impulso de lhe morder a mão. Deitada na maca dentro da ambulância, com o corpinho dele enrolado numa toalha em cima do meu peito, fiquei olhando a cidade gelada que passava depressa pelas janelas. E me ocorreu que eu talvez estivesse ficando louca.
Na clínica, as luzes eram muito fortes e foram mais agulhas, mais injeções na veia; larguei o bebê e nunca mais estivemos juntos. Ele ficou estendido numa mesa e eu numa outra, longe, sob aquelas luzes atordoantes, e depois o homem mais bonito do mundo entrou e disse que era o meu médico. Tinha uma voz agradável, que me soava familiar. Perguntei se era sul-africano. Ele ficou surpreso com minha capacidade de reconhecer seu sotaque, e expliquei que tinha passado algum tempo no país dele, como jornalista. Em seguida, conversamos um pouco sobre o futuro do Congresso Nacional Africano e as belezas da Cidade do Cabo. Percebi que estava toda ensanguentada, sacudida por soluços, e flertando.
Então ele me disse que ia para casa, mas não me deixaria voltar para o Blue Sky, onde eu poderia sangrar até a morte no quarto sem ninguém tomar conhecimento. Passei a noite na clínica, vestindo uma camiseta e uma fralda de adulto trazidas por uma jovem enfermeira gentil e gordinha. Depois de me trocar, ela me ofereceu chá com torradas. O chá veio com leite, muito doce, e me lembrou o chai que eu tomava no Nepal, por onde viajei de mochila com uma amiga muito antes de ter idade para me preocupar com o prazo de validade da minha vida fértil. Eu tinha passado a viagem inteira abusando da juventude do meu corpo. Obrigava-o a subir montanhas, atravessar campos de arroz, aldeias repletas de cabras. Passávamos por pontes de cordas que pendiam precariamente acima de abismos escuros com a morte lá embaixo. Vivíamos à base de haxixe e barras de chocolate, e acabamos imersas num nevoeiro que matou vários outros excursionistas, mas que de algum modo só nos fez passar muito frio.
Eu sempre tive sorte. Muito pouca coisa deu errado na minha vida antes daquela noite no piso do banheiro. E eu entendi, com a mesma certeza que agora me dizia que eu queria um filho, que aquele revés na sorte tinha acontecido unicamente por culpa minha. Eu embarcara naquele avião motivada por vaidade e egoísmo, e o céu escuro da Mongólia me castigou. Eu continuava a ser uma feiticeira, mas tinha perdido os poderes.
Não foi o que o médico disse quando voltou à clínica na manhã seguinte. Contou-me que eu havia sofrido um descolamento prematuro da placenta, um problema muito raro que, fui ler mais tarde, costuma afetar usuárias contumazes de cocaína ou pessoas hipertensas. Mas às vezes acontece apenas porque a mulher já passou de uma certa idade. Podia ter ocorrido em qualquer lugar, ele comentou, e repetiu o que me dissera na noite anterior: não existe nenhuma correlação entre viagens aéreas e abortos espontâneos. Falei que ele estava sendo gentil, e que eu precisava deixar a clínica a tempo de uma entrevista com o secretário do Interior, marcada para as onze. Cheguei pontualmente ao gabinete, depois de dar um pulo no Blue Sky para um banho de chuveiro. Meu quarto parecia o cenário de um assassinato.
Passei os cinco dias seguintes trancada naquele quarto. Aos poucos, decidi que talvez fosse melhor voltar para casa em vez de ir ao deserto de Gobi, mas num primeiro momento não conseguia arredar pé. O Dia de Ação de Graças veio e passou. De vez em quando faltava luz, tudo mergulhava na escuridão e no silêncio. Eu ficava deitada na cama, comendo barras de chocolate e consumindo garrafinhas de uísque do frigobar, enquanto assistia a programas de televisão que me pareciam tão esquisitos e desoladores quanto minha nova vida. Haviam posto um tapete atoalhado branco sobre a maior das manchas de sangue, a que ficava ao lado da minha cama, onde me acocorei quando liguei pedindo ajuda, e aos poucos o branco foi ficando vermelho e depois marrom, à medida que o tecido absorvia o sangue e o líquido se oxidava. Eu observava o tapete. Contemplava a neve que caía sobre os prédios de arquitetura soviética. Mas, acima de tudo, olhava muito para o retrato do bebê.
Quando voltei da Mongólia, a tristeza era tanta que eu mal conseguia respirar. Em cinco ou seis ocasiões, me deparei com mães que tinham se inteirado do que me acontecera, e bastava que trocássemos um único olhar para elas caírem em prantos. (O que certa vez também aconteceu com um homem.) Dali a uma semana, minha companheira e eu desistimos do apartamento para o qual planejávamos nos mudar com o bebê. Duas semanas depois, meu casamento estava em frangalhos. Entrei em lactação. A hemorragia não estancava. Tinha ferozes crises de choro sem aviso prévio – na cama, em reuniões, no metrô. Parecia que a dor da perda transbordava por todos os meus orifícios.
Não conseguia deixar de falar do que tinha acontecido na Mongólia. Fui comprar roupas – largas, mas sem o elástico destinado a acomodar um bebê que não estava mais na barriga –, e me ouvi dizendo a uma vendedora horrorizada que não sabia mais qual era o meu tamanho porque tinha acabado de ter um bebê. “Ele morreu, mas em compensação eu engordei.” Mulheres compassivas me contavam que também haviam sofrido abortos espontâneos. Eu respondia, com uma intensidade desconcertante: “Mas o meu estava vivo.” Eu tinha dado à luz, ainda que muito brevemente, a outro ser humano, e me parecia crucial que as pessoas entendessem esse fato. Muitas vezes, depois de lhes contar toda a história, tentava lhes mostrar a foto do bebê no celular.
Ao final de várias semanas, eu só olhava para a foto uma vez por dia. Precisei de meses para reduzir a frequência a uma vez por semana. Hoje não olho muito mais para ela, mas as pessoas que não vejo há mais tempo ainda me dizem: “Sinto muito pelo que te aconteceu.” E essa compaixão me reconforta.
A verdade é que os dez ou vinte minutos em que fui mãe foram momentos de pura magia, e eu não os trocaria por nenhuma outra aventura; não há lugar que eu preferisse ter conhecido. Às vezes, quando penso no acontecido, ainda sinto uma dor obscura em alguma parte primal de mim mesma, e se estou sozinha em casa escuto os sons que produzo – sons que nunca tinha emitido antes da viagem à Mongólia. Percebo que me transformei numa feiticeira ferida a vagar pela floresta, urrando de dor.
Mas na maior parte do tempo tenho a impressão de que está tudo mais ou menos bem, de que é uma coisa natural. Natureza. Mãe Natureza. Ela é livre para fazer o que bem quiser.
[1] 1 A exposição “Os Tesouros de Tutancâmon” foi uma turnê organizada pelo Metropolitan Museum, entre 1976 e 1979, e circulou por seis cidades americanas.
[2] O Dia de Ação de Graças (Thanksgiving Day) é, nos Estados Unidos, um feriado da importância do Natal e do Ano-Novo; comemorado na quarta quinta-feira de novembro, originalmente celebrava a colheita bem-sucedida.
[3] De 1921, quando foi declarada a República Popular da Mongólia, até o final da Guerra Fria, em 1990, o país esteve sob influência soviética.
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