ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2011
Chabu em Valhala
As valquírias não cavalgaram no Brasil
Clara Becker | Edição 57, Junho 2011
Richard Wagner convenceu o rei Ludwig II, da Baviera, a construir um teatro só para encenar as suas óperas. Tinha em mente, sobretudo, os dramas musicais da tetralogia O Anel do Nibelungo, expoentes da sua concepção da “obra de arte total”: O Ouro do Reno, A Valquíria, Siegfried e O Crepúsculo dos Deuses. Foi nesse teatro, em Bayreuth, que o compositor usou uma lanterna mágica para projetar imagens das valquírias em cavalgada. O efeito especial deu chabu e o público não entendeu o que se passava.
Enquanto os direitos autorais das óperas ficaram com Wagner e seus descendentes, elas só foram exibidas em Bayreuth. Ali, mantinha-se a “aura”, a mística de origem religiosa que as transformava em obras únicas. Há 100 anos, quando os direitos caducaram, elas passaram a ser representadas em outros teatros europeus.
E, em Paris, perderam a aura definitivamente quando foram transmitidas em domicílio, por meio de um sistema chamado théâtrophone. Em 19 de fevereiro de 1911, Marcel Proust ouviu, no telefone do seu apartamento (102, Boulevard Haussmann), ao vivo, a representação de Os Mestres Cantores de Nuremberg, na Ópera Garnier. Dias depois, Proust disse a um amigo que o som do théâtrophone era ruim, mas conseguira superar as “dificuldades acústicas” porque conhecia Wagner “quase que de cor”.
No sábado, dia 14 de maio, encerrava-se no Metropolitan Opera, em Nova York, a aguardadíssima nova montagem d’A Valquíria, a mais cara da história da ópera, regida pelo maestro James Levine.Atrasos podem ser contados a dedo na história do Met. Pois o início da ópera atrasou 45 minutos. A culpa foi do cenário de 45 toneladas, que recebeu dos funcionários do teatro um apelido: “The Machine”. À semelhança da lanterna mágica de Wagner em Bayreuth, ela também pifou.
A Máquina, computadorizada, consistia em catorze bastões, gigantescos e giratórios, nos quais eram projetadas imagens eletrônicas – ora eles viravam floresta, ora cavalos, ora rochas e outros apetrechos que pontuam a história do amor proibido entre os irmãos Siegmund e Sieglinde. O codificador que sincronizava as imagens do cenário com a música entrou em pane.
Não foram só as 4 mil pessoas no auditório do Met que amargaram o atraso. Outras 175 mil, de 46 países, compartilharam a irritação graças a um sucedâneo do théâtrophone. A iniciativa foi de Peter Gelb, um ex-executivo da Sony que foi contratado pelo Met para expandir o seu público. Gelb imaginou e colocou de pé o sistema de transmissão ao vivo dos espetáculos, em alta definição e via satélite, para cinemas digitais ao redor do mundo.
O sistema estreou com A Flauta Mágica, de Mozart, que inaugurou a temporada de 2006 e foi exibida em 56 salas de cinema em quatro países. A temporada de 2009, exibida em 1 200 salas de 43 países, vendeu 2,4 milhões de ingressos. As nove transmissões ao vivo renderam mais de 48 milhões de dólares.
Fábio Lima, um paulista de 34 anos radicado no Rio, lançou, em 2008, a Mobz, que ele diz ter sido a primeira “distribuidora de cinema sob demanda” do mundo. A empresa permite que pessoas formem grupos para ver determinados filmes. Com os ingressos vendidos antecipadamente, as salas de cinema dão prioridade a seus horários ociosos, como as manhãs dos fins de semana ou depois da meia-noite, para fazer transmissões especiais. A Mobz já organizou a exibição de filmes de Hitchcock, shows (à meia-luz e com venda de bebidas), jogos da Copa e da Liga dos Campeões em 3D, e balés, inclusive o Bolshoi.
Lima negociou os direitos para o Brasil do Metropolitan Opera ao vivo. Como a temporada de 2009 foi exibida apenas em gravações, não houve preocupação com atrasos. A do ano passado foi a primeira com exibição ao vivo. Por isso, os cinemas contaram com uma margem de meia hora, para que eventuais atrasos não entrassem pela programação habitual.
Assistir a uma ópera do Met num cinema é uma experiência estranha. Essencialmente, é uma transmissão ao vivo, como a de um jogo de futebol. Mas a imagem em alta definição, o som digital (Proust certamente não reclamaria), a sensação de ver um espetáculo ao vivo e, principalmente, os recursos técnicos alteram a percepção tradicional de ver ópera. Num teatro lírico consagrado, como o Met, o Garnier ou o Alla Scala, o espectador vê as figuras pequenas, lá longe, no palco. A presença dos cantores importa bem menos que a modulação e a extensão das vozes. A beleza está no canto e na orquestra, tudo o mais é acessório.
Na transmissão cinematográfica, são usadas doze câmeras. Elas fazem closes de tenores e sopranos, captam detalhes cênicos que não se veem no teatro, confrontam ou harmonizam elementos dispersos no palco. Nos intervalos, o espetáculo continua, agora na forma de reportagem e
documentário. As câmeras vão para os bastidores, mostram o que está por trás, põem a nu o aparato artesanal, industrial e informático que sustenta a arte: da perda da aura de Walter Benjamin se passa para o anti-ilusionismo de Brecht, mas, contraditoriamente, para fazer circular uma nova mercadoria, a ópera cinematográfica.
Fora o atraso inicial, quem pagou entre 150 e 300 dólares no Met assistiu a uma belíssima Valquíria. Os 2 600 brasileiros que pagaram 60 reais para assistir à transmissão em salas de cinema tiveram direito a outros prazeres. Puderam ver ninguém menos que Plácido Domingo entrevistar seus colegas cantores durante os intervalos. Viram a pesada The Machine de perto. E, no áudio, contaram com os comentários precisos do crítico Rodolfo Valverde, que explicou a história da ópera, do compositor, da adaptação e fez comentários minuciosos sobre a performance vocal.
Mas os deuses de Valhala se enfureceram. No primeiro intervalo, entre o primeiro e o segundo atos, subitamente a imagem saiu do ar e o som desapareceu – adeus, Plácido Domingo. Nessa hora, o telefone de Fábio Lima esperneou. Quando perguntado sobre o que aconteceu, disse: “Essa é uma boa pergunta.”
A transmissão é complexa. O sinal sai do Met e segue via satélite para Nova Jersey, ali ao lado de Manhattan. De lá, ele é dividido em vários outros sinais, a depender da língua da legenda em cada país. O teleporto da empresa Casablanca, no bairro de Moema, em São Paulo, com suas antenas gigantescas, recebe o sinal e repassa para as antenas dos cinemas.
Fábio Lima acha que talvez o sinal de São Paulo para outras cidades brasileiras tenha caído porque provavelmente os técnicos se esqueceram de ativar o aparelho que serve de cópia de segurança quando o principal falha. A Casablanca acha que foi devido a uma tempestade. Assim como acontece com um computador que dá pau, os técnicos em São Paulo ligaram e religaram o sistema. E nada.
Numa outra tentativa, porém, tão misteriosamente quanto desaparecera, o sinal voltou. Mas A Valquíria correra solta, estava nos quinze minutos do segundo ato. O espetáculo continuou. Veio o intervalo do segundo para o terceiro ato e Plácido Domingo, como um repórter volante de futebol, correu atrás dos cantores para entrevistá-los.
A expectativa aumentava: é no começo do terceiro ato que acontece a ilustre “Cavalgada das Valquírias”, o trecho de música erudita que, como a abertura da Nona Sinfonia, de Beethoven, virou sinônimo de grandiosidade sonora, tantas vezes foi adaptada e repetida. Uma das versões mais conhecidas é a do filme Apocalipse Now, na sequência em que helicópteros vindos do mar bombardeiam uma aldeia vietnamita.
Pois foi aí, bem aí, que o sistema teve um novo piripaque. “Quando vi que a ‘Cavalgada das Valquírias’ começou e o sinal não tinha voltado, eu chorei”, disse Fábio Lima. Num cinema na Barra da Tijuca, no Rio, onde a transmissão falhou de vez, o público, na falta das valquírias, cavalgou rumo à bilheteria e, ameaçadoramente, obrigou o gerente a devolver o dinheiro do ingresso. Na manhã seguinte, Lima acordou com o telefonema de Irineu Franco Perpétuo, crítico de música da Folha de S.Paulo, perguntando o que havia acontecido. Não conseguiu mais levantar da cama, passou o domingo atormentado como Odin diante de Fricka. Lima agora renegocia com os americanos para ver se consegue retransmitir a ópera.