ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2009
Chita, o imortal
O macaco do Tarzã ataca outra vez
Douglas Duarte | Edição 32, Maio 2009
No dia 9 de abril, ao sentar-se à mesa do jantar, o macaco Chita se animou com o bolo coberto com marshmallow e chantilly. Era dietético, para diabéticos como Chita. Percebeu, em seguida, que não estava só. Na pequena sala branca, decorada por telas abstratas de sua autoria, havia mais de vinte pessoas – entre elas, repórteres de tevês americanas e alemãs. Chita não ligou para a tropa, assim como não deu muita bola para o cone colorido de papelão que vestia na cabeça. Chita estava acostumado a essas coisas. Com certa nonchalance, tascou uma dentada no doce, e o bote foi registrado instantaneamente por um sem-número de flashes. Era seu aniversário. O 77º.
Enquanto tratadores, cinéfilos e talvez até os chimpanzés do mundo celebravam esse feito de longevidade, o jornalista Richard Dean Rosen lamentava mais um ano de ilusões coletivas na história do cinema: “As pessoas precisam de ídolos. Eu mesmo ignorei, por um tempo, os indícios de que não havia um Chita original.” Contratado em 2007 para escrever a biografia do primata, Rosen quase enterrou o mito. Antes de suas pesquisas, rezava a lenda que, em 1932, nos cafundós da África, Chita fora separado da mãe. Ainda bebê, migrara da Libéria com seu futuro tratador, Tony Gentry. Chegara aos Estados Unidos a bordo da Pan Am, companhia aérea à qual Chita teria sobrevivido com décadas de vantagem.
Aos 5 anos, já acostumado ao clima seco e temperado de Hollywood, Chita, que ainda se chamava Jiggs, teve sua grande oportunidade na terra do cinema: o convite para atuar num filme de Tarzã, ao lado do ex-campeão de natação Johnny Weissmuller. Como tantos atores que fazem sucesso em seu primeiro papel, Jiggs mudou de nome e passou a ser tratado de Chita. Era uma época de ouro para os primatas de Hollywood, que gozaram de prestígio até o final dos anos 40. Passados os anos, e descrente do futuro de Tarzã, Weissmuller abandonou a carreira de Rei das Selvas e foi vender piscinas pelo país adentro. A Chita restou o ostracismo que enxota dos estúdios os chimpanzés com mais de 10 anos, quando se tornam adultos, mal-humorados e perigosamente mais fortes do que os humanos com que contracenam, sejam eles Tarzã ou não. Passou a viver exclusivamente da caridade de Tony Gentry – que, ao adoecer, em 1990, passou sua guarda ao sobrinho Dan Westfall, também amestrador de Hollywood.
Na casa nova em Palm Springs, Califórnia, Chita e Westfall se deram bem. O novo agente diagnosticou seu diabetes, tratado, até hoje, com duas injeções diárias de insulina. Mudou-lhe a dieta, retirando a cerveja, o chocolate e os ovos com bacon que lhe serviram de combustível na ascensão ao estrelato e na conversão em americano da gema. E investiu na fama pregressa de Chita. Primeiro, erigiu uma estátua de bronze do macaco em seu jardim. Depois, transformou a casa em museu de ex-estrelas, batizada com a sigla CHEETA, juntando o nome artístico do chimpanzé – que por lá se escreve com “ee” em vez de “i” – com a razão social de sua empresa, a Creative Habitats and Enrichment for Endangered & Threatened Apes. Ou seja, “Habitats Criativos e Enriquecedores para Primatas Ameaçados & em Perigo”.
Investiu, também, numa segunda carreira para o macaco. Chita é hoje um pintor de relativo sucesso no mercado de arte internacional, com cerca de mil obras espalhadas pelo mundo. “Umas 15 no Brasil”, Westfall afirma. São quadros abstratos, algo simples e meio parecidos entre si, como convém à obra de um artista que encontrou seu espaço entre colecionadores e não pode sair por aí, inventando coisas que só servem para confundir os marchands. Oficialmente, a obra de Chita não é vendida. Mas o tratador aceita doações para a causa dos primatas criativos ameaçados ou em perigo. Cada tela sai em média por 200 dólares.
Sempre atento às brechas mercadológicas*, em 2001 Westfall conseguiu que Chita, aos 69 anos, fosse reconhecido como o macaco mais longevo do mundo pelo Livro dos Recordes. E não foi só. Sendo um poço de idéias, certo dia, diante de uma livraria, Westfall teve outra inspiração. Se Arnold Schwarzenegger, Monica Lewinsky e Paris Hilton tinham suas próprias biografias, por que o seu primata não mereceria essa honra? Apostou numa autobiografia, escrita por ghost-writer, mas assinada por Chita. E convidou para a parceria literária com o macaco o jornalista nova-iorquino Richard Dean Rosen.
Rosen é um primata investigativo do gênero repórter. Bastou-lhe um mês de convivência com o tema para se intrigar com um detalhe do currículo de seu biografado. O primeiro vôo transatlântico havia ocorrido em 1927, no monomotor de Charles Lindbergh. “Me perguntei: será que em 1932, ano em que Chita chegara aos Estados Unidos, já havia vôos comerciais entre os dois continentes?” Rosen verificou. Os vôos tinham começado em 1939. Sete anos depois da decolagem de Chita para a fama.
E como explicar que o animal tenha aparecido jovem e garboso em Tarzã, o Homem Macaco, nos anos 30, e ainda em plena forma para contracenar com o ator Rex Harrison em O Fabuloso Doutor Dolittle, nos anos 60? Rosen investigou duas hipóteses – ou o chimpanzé mentia a idade descaradamente ou era um fenômeno de longevidade, mas não um grande ator aposentado. Armado com uma fotografia do perfil de Chita, que o identificava de maneira conclusiva pelas dobras da orelha, passou “horas, dias, semanas” procurando a estrela primata nos velhos filmes que tinham macacos no elenco. “Se ao menos eu conseguisse provar que o meu Chita participou de algum filme, um só já bastava…” Não conseguiu. A história do cinema não registrava um único fotograma com o seu Chita. Era preciso dizer o impensável: este Chita era um embuste.
Rosen marcou entrevistas com velhos amigos de Tony Gentry, o inventor do macaco e da história. “Eles chegaram a rir de mim. Não era segredo que Gentry às vezes aumentava as histórias.” Concluiu que a única coisa que ligava Chita às estrelas de cinema era a idade indeterminada. O macaco poderia ter 74, 62, 61 ou, mais provavelmente, 49 anos – o que é uma complicação insolúvel para quem está às voltas com a biografia autorizada de uma lenda viva. Deu a triste notícia a Westfall que, inconsolável, desistiu do livro. Rosen acabou dono de “uma sacola de verdades que não interessa a ninguém”. Muito menos a Chita, que não pensa haver vida sem bolo em festa de aniversário.
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* Correção: 18 de maio de 2009.
A versão impressa da revista trazia um erro de digitação: em vez de “brechas mercadológicas”, estava escrito “brechas merdadológicas”.