ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
A cidade dos caixões
A morte sustenta Cabrália Paulista
Julio Lamas | Edição 110, Novembro 2015
José Roberto Amor, um sujeito rechonchudo e simpático de 53 anos, conhecido como “o Rei do Caixão”, parou diante de um dos pequenos quadros com foto e legenda que enfeitam a antessala do showroom de sua fábrica. As tabuletas, espalhadas pelas paredes do ambiente amplo e mal iluminado, fazem as vezes de catálogo dos produtos vendidos por Amor. Caixões de todos os tipos, cores, tamanhos – de P até GG – e faixas de preços – de 250 até 10 mil reais.
O pequeno quadro observado pelo empresário mostrava uma elegante urna com visor, “cruz em mogno e Cristo dourado metalizado”. O esquife vinha de fábrica com caixa e tampa em madeira de pínus, forro “em tecido façonné branco, babado, sobrebabado de renda branca com acabamento em fio dourado e travesseiro solto”, seis alças douradas “tipo paineiras” e acabamento em verniz “na cor mogno”.
Amor, empresário do segmento há 36 anos, mal conseguia conter o sorriso de satisfação ao revelar que aquele caixão modelo “Ônix” servira como último repouso do escritor Jorge Amado, falecido em 2001. “Aquilo é que foi um velório de verdade. E o meu produto estava no centro das atenções, como não poderia deixar de ser. Uma urna de muito bom gosto”, gabou-se, ao relembrar o momento em que reconheceu, pela tevê, o caixão que fabricara.
Entre os 4 400 habitantes de Cabrália Paulista, município a cerca de 370 quilômetros de São Paulo, José Roberto Amor, com seu 1,60 metro de altura que bem caberiam num féretro tamanho M, não é o único a reparar nos modelos de urnas que volta e meia acolhem celebridades, em novelas ou telejornais. A cidade carrega com orgulho – e pelas quatro alças, como gostam de dizer alguns – a alcunha de capital brasileira dos caixões.
Vista de fora, pelo acesso principal da SP-293, Cabrália não dá sinais de sua vocação fúnebre. Tampouco se adivinha o distrito industrial nas franjas do município que abriga duas grandes fábricas de urnas. A rodoviária, de onde sai um único ônibus diário para a capital, fica ao lado do prédio compartilhado pela prefeitura e pela Câmara de Vereadores. Além da Igreja Matriz e de três bares que servem comida caseira, não há muitas alternativas de lazer na cidade. Quando não estão fabricando caixões, os moradores de Cabrália se divertem identificando urnas funerárias na tevê.
“Aquele caixão da novela Vamp é meu, assim como o do senador em O Rei do Gado”, disse Amor, no escritório de sua fábrica, a JR, antes de oferecer ao repórter, como suvenires, um abridor de latas e um porta-canetas, ambos em formato de caixão.
Da JR dependem 130 funcionários, que se dividem entre a montagem e o acabamento de 15 mil urnas por mês. Trabalham em um galpão de 6 600 metros quadrados, envoltos por um forte cheiro de tinta, serragem e por centenas de caixões em diferentes estágios de produção. Operários especializados cuidam de cada etapa do processo, como grampear o estofamento e os babados, fixar as alças e embalar o produto para o transporte. Um modelo semiluxo sextavado, o mais comum, pode ser finalizado em 8,5 minutos, se necessário. Junto com uma granja da JBS-Friboi, a produção de caixões é a atividade que mais emprega na cidade. Quase todos os moradores já trabalharam ou têm parentes e conhecidos que ainda atuam no setor. A cidade exporta para todo o país, e José Roberto Amor se orgulha de fornecer urnas para estados tão distantes quanto o Ceará.
“É normal que nos velórios daqui a qualidade do caixão seja objeto de comentários”, contou Cláudio Fernandes, um senhor de 57 anos, dono da Novo Mundo, única agência funerária da cidade. “Sempre ouço coisas do tipo: ‘Esse modelo é de onde eu trabalho.’ Ou então: ‘Podia ser um pouquinho mais bonito.’ Eles veem a peça e já sabem de onde procede, qual é o modelo, se é barata ou não. Tenho clientes que escolhem com antecedência o próprio caixão, pois as pessoas reparam mesmo, e a coisa vira assunto nos dias seguintes.”
Foi a expertise local que levou os irmãos Nicolas e Leonardo Cioni a investir no mercado de urnas funerárias, no começo dos anos 2000, quando a cidade chegou a ter seis fábricas. “A demanda sempre vai existir, 1,2% da população brasileira morre todos os anos, e todo mundo é um cliente em potencial. Dá até para fugir dos juros, mas não da morte”, argumentou Nicolas Cioni, de 36 anos, em seu escritório.
Os moradores da cidade parecem se orgulhar da familiaridade que têm com objetos que para a maioria das pessoas causam pelo menos algum estranhamento. Não faltam histórias de operários que se acomodam nas urnas para tirar uma soneca depois do almoço.
“No começo é difícil se acostumar com os caixões pequenos para crianças, mas depois passa”, contou o aposentado Martires Ferraz, sentado num banco à porta de casa, num fim de tarde. Ferraz passou trinta dos seus 57 anos pintando caixões e afirma ter “enterrado” mais de 100 mil pessoas no período. “O problema hoje é que não aguento mais falar de caixões ou vê-los. Enchi o saco. Todo dia sonho com isso. Não sonho com a morte, mas com o caixão – que estou lá, pintando mais um”, desabafou, antes de perguntar se é muito caro encomendar uma cremação.
Quem também anda preocupado com os custos é José Roberto Amor. Em seu escritório, ele diz que Cabrália não foi poupada pela crise econômica – ainda que não diminua o mercado potencial para as indústrias da cidade, elas têm assistido a uma diminuição dos lucros. A inadimplência dos seguros funerários, que compram parte da produção, aumentou recentemente, bem como o preço de matérias-primas cotadas em dólar, como as tintas. E essas não são as únicas ameaças ao setor, disse o empresário. “Tem coisas que não ajudam mesmo. Não gosto dessas leis que proíbem fumar em local fechado, dirigir bêbado ou em alta velocidade. Tudo isso reduz a clientela de maneira significativa”, declarou, em tom sério, antes de abrir um sorriso satisfeito.
Veja mais: Matéria exibida em agosto de 2001 sobre a morte de Jorge Amado. Nela, é possível reconhecer o caixão fabricado por Amor.