Tuca Vieira produz uma foto para cada seção de um guia de ruas de São Paulo, identificada por um número no mapa ao lado
Cidade inacabada
Um mapa fotográfico de São Paulo
Guilherme Wisnik e Tuca Vieira | Edição 112, Janeiro 2016
É de Tuca Vieira a fotografia mais representativa de São Paulo nos últimos tempos: um casario da favela de Paraisópolis ao lado de um edifício de alto padrão, com caprichosas piscinas nas varandas dos apartamentos, dando volteios em espiral. Dois mundos tão próximos e contrastantes, separados por um muro enorme. Símbolo cristalino da exclusão social e da urbanização aberrante do capitalismo periférico, essa foto ganhou o mundo, ainda que seu criador tenha permanecido razoavelmente incógnito.
Essas são perguntas sem resposta, e que só podem ser levadas a sério por meio de duas posturas aparentemente opostas: a ficção, por um lado, ou o experimento científico, por outro. Partindo de regras e métodos muito claros, Tuca Vieira trilha o segundo caminho, mas o tempera com um importante halo de ficcionalidade, próprio de quem sabe não haver respostas exatas nem muito menos únicas. Resulta um esforço algo inglório para realizar um trabalho cujo sentido parece escapar ao bom senso.
Explico a sinuca de Sísifo: o fotógrafo quer conhecer melhor a cidade na qual nasceu e vive, e ao mesmo tempo ser capaz de registrá-la fotograficamente. Como fazê-lo? Por onde começar? Diante da dificuldade da empreitada, escolheu um critério objetivo e impessoal: tomar como base um guia de ruas – no caso, o Quatro Rodas. Isto é, seu trabalho consiste em produzir uma foto para cada página dupla da publicação, que, por sua vez, corresponde a um número. Assim, cada número, ou página dupla, representa uma seção quadrada que divide a mancha urbana da região metropolitana de São Paulo em 203 partes iguais. Trata-se de um grid rígido com módulos equivalentes a aproximadamente 3 por 3 quilômetros, que varre a capital de norte a sul, da esquerda para a direita.
O guia de ruas não só dá conta de toda a extensão da mancha urbana – salvo o extremo sul, eliminado, já que é quase nada urbanizado –, como também permite uma apreensão palpável da metrópole, uma vez que sua escala nos faculta identificar todas as ruas e praças. Tem-se, portanto, um trânsito possível entre as partes e o todo da cidade, a chave para a elaboração desse mapeamento. Entra em cena aqui um elemento crucial do projeto: a experiência real do espaço. Para que visitar lugares que estão plenamente mapeados pelo Google e pelos sistemas de georreferenciamento da cidade? Note-se, a propósito, que uma série de fotógrafos contemporâneos tem feito trabalhos urbanos apenas coletando imagens do Google Street View como uma forma de ready-made fotográfico, sem nunca terem posto os pés naqueles locais e, portanto, sem jamais terem disparado pessoalmente nenhum daqueles cliques.
Daí o aspecto algo quixotesco desse projeto de Tuca Vieira. Podemos imaginar o grau de infortúnios cotidianos enfrentados para a consecução da tarefa, que envolve deslocamentos, congestionamentos, gastos com combustível e equipamentos, cansaço e eventuais problemas com segurança. E assim como o guia de ruas é um instrumento em absoluto desuso nos dias de hoje, também o fotógrafo opta por registrar a cidade não por meio de máquinas leves e portáteis, e sim com uma câmera artesanal de grande formato com chapas individuais, montada cuidadosamente sobre um tripé. Esse ritual cênico, claramente anacrônico, leva as pessoas na rua a identificar o artista mais como um técnico de medição da cidade, como se empunhasse um teodolito.
Previsto para ser exibido na Casa da Imagem, museu da Prefeitura de São Paulo, ainda em 2016, o trabalho encontra-se em processo, tendo atingido quase 50% de seu escopo. Seu Atlas Fotográfico da Cidade de São Paulo e Seus Arredores é uma homenagem manifesta a Militão Augusto de Azevedo, primeiro fotógrafo a realizar uma cartografia importante da cidade, na segunda metade do século XIX. Assim, um século e meio depois do pioneiro, Tuca Vieira também escolhe pontos de vista e enquadramentos referenciados na altura do olho humano, que guardam certa proximidade com os objetos retratados, e extrai especial força estética das esquinas urbanas. O fotógrafo estrutura muitas de suas cenas por meio de um jogo de relações entre elementos verticais (os postes) e elementos horizontais e diagonais (os fios elétricos), particularmente abundantes em São Paulo, sobretudo nas situações de esquina, em que assumem configurações formais fortes.
Trata-se de uma obra que afirma a importância da experiência no mundo contemporâneo, em uma clara atitude de resistência à progressiva virtualização das relações e das formas de apreensão do meio físico, correlatas à emancipação da imagem na sociedade de consumo.
Mas nem por isso resulta num trabalho panfletário ou nostálgico. Empreendendo, na velocidade que lhe é possível, esse improvável levantamento fotográfico de São Paulo entre 2014 e 2016, Tuca Vieira nos oferece uma ideia consistente – ainda que sempre insuficiente – da cidade hoje. Há fortes motivos para sentirmos, nesse atlas, o predomínio da generalidade e da monotonia. Em primeiro lugar, porque a imensa extensão edificada, em grande parte autoconstruída, tende a um padrão que reconhecemos como genérico. Depois, porque São Paulo não tem uma paisagem natural determinante que ajude a distinguir os lugares para além de suas construções. Enfim, porque o procedimento catalográfico do artista, inspirado em grande medida por fotógrafos contemporâneos alemães, busca identificar e registrar certas tipologias recorrentes.
O casal Bernd e Hilla Becher realizou um admirável trabalho de catalogação do acervo de construções industriais europeias em declínio, sempre em preto e branco e com a mesma luz neutra. Já Tuca Vieira fotografa, em distintas horas do dia, com sol ou chuva, céu aberto ou nublado, uma cidade que, ao contrário das europeias, como já percebeu Claude Lévi-Strauss nos anos 50, nunca atinge o estado de declínio, pois jamais chega a ficar pronta. Isto é, uma metrópole marcada pela urgência, pelo improviso e pelo inacabamento, em que a violência das sobreposições de construções em um curto espaço de tempo provém tanto da precariedade econômica e social quanto da opulência especulativa.
São Paulo é um dos aglomerados urbanos que melhor demonstram aquilo que o arquiteto holandês Rem Koolhaas qualificou como “cidade genérica”. Os chamados “espaços-lixo”, típicos do processo avassalador de generalização urbana e cultural que vivemos, são consequência do encontro bastardo entre a utopia de modernização trazida pelas vanguardas, a sociedade de consumo do pós-guerra e a dominância da informalidade nos países periféricos, no momento em que as cidades se tornaram centros de serviços. Daí que a “cidade genérica”, segundo Koolhaas, se mantenha unida pelo que nela há de residual, de transitório e de precário.
De fato, diante desse atlas ainda inacabado, mas já exaustivo, sentimos de forma potente uma espécie de torpor decorrente do genérico, que emana da predominância de tons de cinza, bege e creme na paisagem edificada da cidade, particularmente notável depois da Lei Cidade Limpa. E a falta de regulação dos gabaritos dos edifícios faz do Centro um paliteiro de alturas muito díspares, e, da periferia, um conglomerado disforme de casas térreas, sobrados e edifícios de até cinco pisos, de uso comercial. A heterogeneidade, quando regra, talvez seja mais genérica do que a uniformidade.
Ao mesmo tempo, a generalidade se apresenta tão incrustada no DNA de São Paulo que ela passa a ser um traço distintivo da cidade. Parece muito fortemente paulistana a convivência entre um casario em geral acanhado e a presença massiva de elementos de infraestrutura urbana, tais como estruturas de pontes e viadutos, ou tanques de retenção de água (piscinões), todos de concreto. Ou, ainda, a convivência entre elementos históricos remanescentes e isolados – como galpões industriais, chaminés, igrejinhas jesuíticas e edifícios modernos – e enormes blocos edificados recentemente que irrompem de forma imponente e banal, como nas torres afrancesadas do Parque Cidade Jardim, uma cidadela rodeada de estradas.
Salta aos olhos o modo como a feiura de base parece se infiltrar tanto na autoconstrução de periferia quanto na opulência do mercado imobiliário de classe média e alta, na proliferação de janelas de alumínio, grades, pixos, balaustradas e mansardas. E também como a ausência de espaços públicos e a mesquinhez das calçadas – ofendidas tanto por portões que avançam para acomodar os carros dentro das casas, quanto por imensos muros de garagens em sobressolo que as transformam em lugares inóspitos – são atributos que atravessam igualmente as divisões centro–periferia, ou pobreza–riqueza, definindo uma imagem mais geral da cidade na qual o espaço urbano é desertificado e o pedestre não existe.
De posse do Aleph – um dispositivo minúsculo, secreto e miraculoso, que permite ao observador enxergar o mundo inteiro –, o pretenso escritor Carlos Argentino Daneri, no conto “O Aleph” (1949), de Jorge Luis Borges, se lança à fastidiosa redação de um vastíssimo poema épico chamado “A Terra”, em que descreveria em minúcia todos os continentes. Disposto a versificar “toda a redondez do planeta”, Daneri, no entanto, após anos de trabalho, percebe ter dado conta de apenas alguns hectares do estado de Queensland, na Austrália; de mais de 1 quilômetro do curso do rio Ob, na Sibéria; de um gasômetro ao norte de Veracruz, no México; e de um estabelecimento de banhos turcos não distante do aquário de Brighton, na Inglaterra. Detalhista e pernóstico, ele perde a dimensão do todo no atoleiro das infinitas partes, sucumbindo à impossibilidade de comunicá-las.
O trânsito entre realidade e mapeamento é um tema muito borgiano. Não sabemos se Tuca Vieira um dia terminará seu trabalho, mas podemos pensar essa catalogação como um ato silencioso de construção paralela de uma outra cidade latente que nós ainda não vemos, enquanto a que conhecemos continua se transformando. Afinal, como notou o ensaísta francês Georges Didi-Huberman, “se o atlas aparece como um trabalho incessante de recomposição do mundo, é, em primeiro lugar, porque o mundo mesmo sofre decomposições constantes”.
Guilherme Wisnik é arquiteto e ensaísta, autor de Estado Crítico: À Deriva nas Cidades, da Publifolha
Tuca Vieira é fotógrafo, autor de As cidades do Brasil: São Paulo (Publifolha).
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