ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
Clandestino
A vida de um brasileiro na Cisjordânia
João Moreira Salles | Edição 12, Setembro 2007
“Israel e os palestinos representam para a necessidade de justiça do Ocidente o que a Suíça representa para os esportes de inverno: uma espécie de resort moral.” A frase é do escritor americano Saul Bellow. Foi publicada em 1976.
Em Jerusalém, toma-se um carro, percorrem-se cerca de 30 quilômetros e chega-se à capital da Cisjordânia, Ramallah, onde fica o escritório de representação do Brasil junto à Autoridade Nacional Palestina, no quarto andar de um pequeno prédio. A estrada, boa do lado israelense, precária do lado palestino, jamais deixa de cruzar paisagens urbanas. Jerusalém e Ramallah fazem parte da mesma conurbação.
À medida que a primeira cidade fica para trás e a segunda se aproxima, surge o muro, parte da barreira que separa Israel da Palestina. Ele se estreita a cada metro avançado, confinando o carro a um corredor cada vez mais apertado. Seu nome depende de quem o batiza: os israelenses o chamam de “barreira de segurança”; os palestinos, de “muro da segregação”. É um conjunto de cercas eletrificadas, fossos, postos de controle e blocos verticais de concreto que, até 2010, cercará toda a Cisjordânia, isolando-a fisicamente de Israel. Desde o início de sua construção, em 2002, os incidentes terroristas no interior do Estado de Israel se reduziram quase a zero. A barreira corre quase inteiramente em solo palestino e às vezes morde o território inimigo, em laçadas de mais de 20 quilômetros que abraçam, e incorporam a Israel, assentamentos judeus cravados no coração da Cisjordânia. Perto das cidades, ela toma a forma de um muro de 8 metros de altura e 3 de largura. É ele que espreme o carro. Nem todos os segmentos já foram erguidos, o que às vezes faz o muro se assemelhar a uma boca desdentada. A estrada se esgueira por entre as lacunas e ora está de um lado dos dentes, ora do outro. O passageiro nunca tem dúvida se está em chão palestino ou israelense. Do lado de Israel, o muro é limpo, sem grafites. Do lado palestino, é tomado de cima a baixo por desenhos, palavras de ordem, fotografias de mártires e frases de protesto: “Welcome to the ghetto” [Bem-vindo ao gueto], “The wall is the fall” [O muro é a queda] e “Arbeit macht frei” [O trabalho liberta], a frase que recebia os judeus em Auschwitz.
Ao entrar em Ramallah, deve-se mostrar um documento de identidade às autoridades israelenses. Não havendo incidentes, minutos depois chega-se ao escritório brasileiro, no qual trabalham 8 pessoas: 5 palestinos, 2 diplomatas e 1 funcionário do Itamaraty. Há de ser um dos postos mais trabalhosos da diplomacia brasileira. Ao contrário de quem toca a campainha do consulado em Helsinque ou Praga, por exemplo, os que buscam a representação brasileira em Ramallah querem ajuda para problemas vitais – e geralmente insolúveis. O Itamaraty é a única esperança que têm. São todos brasileiros e, na grande maioria dos casos, clandestinos, termo que eles empregam para definir a própria situação. Existem 5 mil portadores de passaporte brasileiro na Cisjordânia, nem todos legítimos. Muitos foram obtidos graças a intermediários na Tríplice Fronteira. Mas há os brasileiros reais, com problemas reais. O escritório atende a pelo menos trinta deles por dia.
Ao decidir morar em território palestino, todo estrangeiro – leia-se: qualquer um que não tenha passaporte palestino, ainda que palestino de nascença ou por ancestralidade – torna-se automaticamente clandestino. Israel, que detém controle absoluto sobre quem entra e sai dos territórios da ANP – Cisjordânia e Gaza -, não concede visto de permanência a estrangeiros. Assim, a pessoa terá entrado na Palestina, necessariamente via Israel, com visto de turista, ou seja, com autorização para estar ali por um número determinado de dias. Ao ultrapassar esse limite, torna-se ilegal. Se for pego em qualquer um dos 72 postos de controle israelenses espalhados pela Cisjordânia, será imediatamente extraditado para seu país de origem e proibido de retornar. Uma parte dos brasileiros que batem na porta do escritório de Ramallah precisa retornar ao Brasil para o enterro de um parente, para tomar posse de um bem herdado, para visitar um neto recém-nascido, para acertar papéis de aposentadoria. Os funcionários se desdobram para resolver questões burocráticas, dessas que envolvem apenas papel e carimbo, mas são impotentes quando a necessidade é de deslocamento físico. Não há nada que possam fazer.
Deir Debwan, uma aldeia a um par de quilômetros de Ramallah, tem 15 mil habitantes, mil deles brasileiros. No dia 23 de dezembro de 2005, a Palestina realizou suas primeiras eleições municipais democráticas. Em Deir Debwan, 27 candidatos disputaram a prefeitura. Venceu Adib Yusef Abdel Haq, com 850 votos. Haq é brasileiro. Talvez seja o único prefeito do mundo que, aos olhos da lei, é tido como clandestino.
É um homem de 60 anos, de estatura média, forte, de rosto bonito e cabelos grisalhos penteados para trás. Veste calça e paletó de risca de giz, sem gravata. Sua voz é firme, e ele não a desperdiça com conversa miúda. Fala um português fluente, com sotaque carregado. Fuma compulsivamente. Suas frases são entrecortadas por ataques de tosse. Estudou jornalismo e artes gráficas em Belém (a de Jesus, não a de Jader Barbalho) e aos 21 anos empregou-se num jornal de Jerusalém que advogava a causa palestina. O Brasil aparecia com freqüência nas páginas do Palestine News, não só por causa do futebol, mas também por sua grande comunidade árabe. Haq deduziu que o país oferecia futuro e segurança. Emigrou, e viveu aqui 35 anos. Como todos os que deixaram regiões conflagradas e conseguiram prosperar em países que os acolheram bem (e com comida farta), guarda do Brasil a imagem de uma terra abençoada: “O Brasil é um paraíso, recebe bem, sem preconceito racial ou religioso. Lá a minha parte brasileira foi se tornando maior”, diz. “Lá eu tinha amigos judeus. Aqui eu não tenho convivência com eles.”
Haq viveu dois anos no Rio, onde torceu pelo Flamengo, e depois se transferiu para Porto Alegre, onde se tornou gremista e foi um dos fundadores do PT. Adquiriu cidadania brasileira. A escolha de Porto Alegre foi estratégica: ali se concentra uma população palestina importante, principalmente na região da fronteira com a Argentina. “Minha ocupação principal foi ser agente do Movimento pela Libertação da Palestina, um braço da OLP”, explica. Rodou o país fazendo trabalho de organização. Discursou em sindicatos, universidades e até numa organização israelense em Porto Alegre. Acredita que o trabalho da MLP tenha dado resultados. “O Brasil sempre assumiu posições pró-Palestina. Me lembro que o chanceler Azeredo da Silveira foi muito vocal na ONU, em nossa defesa. E conseguimos abrir um escritório da OLP em Brasília.”
Haq se casou com Edilene, “uma morena”. Ela era católica, agora é muçulmana. Não usa véu. Haq sempre pertenceu ao El-Fatah, o partido de Yasser Arafat, essencialmente secular. Tem três filhos, dois deles nos Estados Unidos. O português é a primeira língua deles. Edilene sente falta do Brasil. Ela gostava de novelas. Ele lembra de uma com Fernanda Montenegro e “aquele rapaz dos Irmãos Coragem, o Tarcísio Meira”. Haq sempre preferiu a vitrola. Ouve Roberto Carlos e Nelson Gonçalves – “Esse é grande”, diz com saudades.
Em 1999 deixou o Brasil e veio para Ramallah. “Uma decisão política. O motivo inicial foi de força maior, meu pai estava hospitalizado. Vim com passagem de ida e volta. Quando cheguei, olhei para a minha terra e rasguei a de volta.” Como veio às pressas, não trouxe muita bagagem. A maior parte dos seus bens ficou no Brasil. Em seu gabinete, a bandeira da Palestina está ao lado da brasileira. Atrás da mesa, há uma foto de Arafat. Ele não se esqueceu de nada. “Sou brasileiro. Mantive os hábitos”, diz com orgulho. No dia 10 de julho, almoçou costeleta de boi assada, arroz, feijão preto e farinha de rosca. “Até Velho Barreiro a gente encontra aqui”, anuncia com um sorriso. Saca da carteira o RG brasileiro. Se a Seleção da Palestina jogasse contra a Seleção Brasileira, torceria pela Seleção Brasileira.
“Sinto falta das grandes amizades que fiz por lá, da liberdade que eu tinha, da segurança.” São palavras que, com razão, não costumam ser associadas ao Brasil. Em três anos, morrem assassinadas no país mais pessoas do que todas as vítimas dos conflitos entre árabes e israelenses desde 1948, ano da criação do Estado de Israel. Sete guerras, duas intifadas, incontáveis ataques terroristas e assassinatos produziram por lá 114 mil mortos, enquanto por aqui 40 mil pessoas são assassinadas a cada ano. No caso de Haq, entretanto, a frase não deixa de fazer sentido. Na Cisjordânia, o prefeito de Deir Debwan não sabe o que pode lhe acontecer daqui a uma hora. Acorda com a possibilidade de ser apanhado por uma patrulha israelense ao meio-dia e ser deportado ao cair da tarde. “Lá vocês não são ocupados. Aqui, quando o presidente Abbas precisa deixar Ramallah, tem que comunicar a viagem às autoridades de Israel.”
Diante desse quadro, por que tantos brasileiros decidem vir para a Cisjordânia? O prefeito explica: “São muitas razões. Eu diria que 50% voltam por razões econômicas, porque aqui eles têm posses, terras, uma casa, algumas oliveiras. Alguns vêm abrir um comércio. Uma das maiores lojas de Ramallah vende utensílios domésticos. Chama-se Bakri, e a matriz fica em Porto Alegre. Os velhos voltam para morrer na terra. Já os mais jovens voltam por idealismo, para lutar pela criação do Estado. Eles vêm de São Paulo, Porto Alegre e Brasília. Foram mobilizados pelas sociedades palestinas brasileiras.”
Haq tem uma irmã em Jerusalém, mas não a vê desde 2001, por causa dos controles israelenses. Pela mesma razão, não viaja pela Cisjordânia. Israelenses decidem se um palestino pode ou não viajar de um ponto a outro da Palestina. No seu caso, o confinamento o mantém entre a sua cidade e Ramallah. “É uma prisão”, afirma. “Nunca tive experiências ruins com o exército israelense. E se eu não sair daqui, não tem como eles me incomodarem. A não ser que eles entrem na minha casa e me mandem de volta para o Brasil. De vez em quando eles fazem isso, entram na casa das pessoas. Às vezes, eu até torço para que aconteça. Eu seria um homem realizado. Sairia como herói, e no Brasil faria guerra nos meios de comunicação. Como brasileiro, não deixaria o ministério das Relações Exteriores em paz. O governo brasileiro tem obrigação de resolver a nossa situação”, conclui. Apaga o quinto cigarro da marca Time que fumou em menos de uma hora – “Bem pior do que o Hilton que eu fumava no Brasil” -, tosse, despede-se e vai embora.
“A vida em Israel está longe de ser invejável, mas há nela um claro propósito. Gente lutando pela sociedade que criou, e também pela vida e pela honra”, escreveu Saul Bellow, no mesmo livro de 1976, To Jerusalem and Back. Em nome disso, Adib Yusef Abdel Haq autorizou que fosse revelada sua condição de clandestino.