ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2018
Clandestinos
Os camelôs dos trens da Central
Alan Miranda | Edição 140, Maio 2018
Eram três da tarde de uma quarta-feira quando um rapaz atormentado desceu da plataforma da estação e deitou o pescoço sobre os trilhos, à espera do trem. Dois camelôs que batem ponto na estação resolveram intervir. Da plataforma, Rafael Porto orientava o colega que desceu para resgatar o suicida. “Apaga ele e traz aqui para cima que a gente acorda ele depois”, gritou. O parceiro acatou a sugestão e aplicou um “mata-leão” no rapaz. Porto se encarregou de fazer a massagem cardíaca que ressuscitou o jovem.
O camelô de 24 anos contava a história numa roda de conversa recente na própria estação Realengo, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Disse que o rapaz morava naquela região e estudava na UFRJ. Era bancado pelo pai, que não aceitava sua orientação sexual e, por isso, queria se matar. Tão logo recobrou a consciência, mostrou-se contrariado pelo fracasso da tentativa.
Porto se solidarizou com o estudante, mas lamentou não cobrar seu galardão pelo gesto de heroísmo. “Ele tinha dois celulares na mochila, um meio velho, quase guindei pra mim”, comentou. “Não vai se queimar à toa”, recomendou um agente de segurança que ouvia o relato. “Daqui a pouco aparece um aí com a mochila cheia de celular e tu arruma um novinho.”
O ambulante é uma das centenas de pessoas que trabalham diariamente nas estações e trens metropolitanos do Rio de Janeiro, que ligam diferentes subúrbios à Central do Brasil. Vende água, refrigerante e cerveja. Começa o dia às três da tarde na estação Realengo. Quando os dois isopores ficam um pouco mais leves, entra num trem e continua a vender nos vagões até as nove da noite. A rotina lhe rende cerca de 1 mil reais por mês, com os quais sustenta a esposa, uma filha de 7 anos e um de 5 (os nomes dos três estão tatuados nos braços dele).
O agente de segurança que ouvia o caso entrou na conversa, mas poderia ter repreendido o camelô. Porto e seus colegas de isopor estão ali na condição de clandestinos. A venda por ambulantes é proibida por um decreto federal que regulamenta os transportes ferroviários – a menos que seja autorizada pela concessionária que opera os trens, no caso do Rio, a SuperVia. A fiscalização é feita pelos agentes da empresa que vigiam as 102 estações. Eles são orientados a conduzir para fora da estação os camelôs pegos em flagrante e, desde o ano passado, estão autorizados a apreender as mercadorias.
Muitos vigilantes ficam receosos de coibir os camelôs. “Tem que fazer uma boa amizade com eles, porque tu não sabe quem é quem, se o cara saiu de cadeia e tá aí vendendo bananada”, disse um agente de 40 anos que trabalha na estação Campo Grande. A maioria faz vista grossa para os ambulantes. Enquanto o fiscal da SuperVia dava entrevista à piauí, um PM fardado que saía da estação apontou para dois camelôs que atravessavam a linha do trem, a poucos metros dali. “Alá o filha da puta!” O agente os censurou com dois silvos breves do apito e a ameaça: “Vou botar pra rodar a catraca!”
A piauí quis saber da concessionária por que os agentes de fiscalização são coniventes com os camelôs e se a empresa tem interesse em legalizar a situação dos ambulantes, mas recebeu uma nota genérica como resposta. Afirmou que suas equipes de segurança auxiliam no trabalho da polícia e realizam operações diárias para garantir a ordem e o bem-estar dos passageiros. “Essas ações resultam em constantes retiradas de vendedores ilegais do sistema”, disse a nota.
Os fiscais estão longe de ser a única dor de cabeça dos camelôs. Alguns ambulantes contam que, por atuarem na ilegalidade, estão sujeitos ao “derrame”, uma taxa cobrada por policiais militares, fardados ou à paisana – os camelôs que não pagam seriam ameaçados de apreensão das mercadorias ou de expulsão do trem ou estação.
Também é preciso jogo de cintura para lidar com os passageiros que olham torto para os vendedores. Cláudio Vieira, um homem corpulento de barba grossa e 28 anos, é do tipo que não leva desaforo para casa – nem deixa os colegas levarem. “Se algum passageiro vem esculachar o camelô, eu logo me meto. Tem uns que você não pode nem esbarrar, que já vêm na ignorância. Falei uma vez pra um cara: Não quer contato? Vai de Uber!” O nicho de Vieira é o da exclusividade: só vende o que ninguém mais tem. Certa vez, contou, chegou a faturar 3 mil reais num único dia de trabalho. Na ocasião, vendia carregadores de celular em forma de pokébola – um acessório para a captura de pokémons numa série de jogos populares entre as crianças.
Já o camelô Victor Geovani, de 24 anos, o Gegê, vende bebida gelada nos trens há quatro anos. Em 2015, presenciou um assalto na estação Deodoro. Enquanto um ladrão rendia passageiros com um revólver, outros dois recolhiam o butim numa mochila. Planejavam desembarcar antes que o trem zarpasse, mas um não conseguiu saltar a tempo. “Quando ele pensou em correr, era tarde”, rememorou Geovani, um dos cinco camelôs que estavam no vagão e atacaram o assaltante depois que a porta se fechou. “A gente deu uma coça e largou ele em Magalhães Bastos.”
Conforme o número de roubos nos trens aumenta, a repressão aos camelôs aperta. É comum eles serem associados a contraventores, inclusive pela polícia. Minutos antes de dar entrevista à piauí, Geovani foi obrigado por dois PMs fardados a sair da estação. Disseram-lhe que avisasse seus “amiguinhos” da Vila Aliança – a favela da Zona Oeste onde mora – que, se não parassem os assaltos, a coisa ficaria feia. “Eles acham que a gente fica de fofoquinha com os caras”, protestou. “Se fosse pra tá lá, eu não tava aqui, pô!”
Nem todos são tão destemidos. Rafael Porto, o camelô que ajudou a salvar o estudante suicida, não quer saber de conflito com policiais e agentes de segurança. O jeito de bom moço lhe dá sossego, mas é preciso estar sempre alerta. Quando o dever o chamou, o ambulante interrompeu a entrevista. O vigilante da SuperVia precisava de ajuda para subir um carrinho de bebê até a catraca. Porto foi em direção à mãe e se prontificou a carregá-lo escada acima.