ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Clínica da saudade
Um hospital oitocentista em Lisboa
Fernanda Ezabella | Edição 139, Abril 2018
A paciente de cabelos negros e desgrenhados mal conseguia abrir os olhos. Seus braços e pernas estavam sujos e maltratados. O vestido vermelho de bolinhas brancas, bastante puído, jazia sobre a mesa, ao lado das sandálias de plástico. Nua na sala de operação, parecia já ter partido desta para melhor. Sua ficha hospitalar de número 1 243, porém, indicava um tratamento pra lá de mundano: limpar, lavar cabelos e armar.
A morena de 40 centímetros era uma das dezenas de pacientes internadas para um check-up ou intervenção cirúrgica no Hospital de Bonecas de Lisboa, que desde 1830 funciona no mesmo edifício da praça da Figueira, no coração do Centro histórico. O prontuário da paciente incluía também o nome da mãe, endereço e data de admissão – detalhes que o staff da casa preferiu não revelar, para proteger sua privacidade.
O estabelecimento é tocado por Manuela Cutileiro, uma mulher elegante de cabelos brancos curtos e risada fácil que se apresenta como a clínica geral do hospital. A professora primária aposentada de 72 anos acolhe os pacientes detrás de um balcão apertado, rodeado por vitrines onde estão à venda bonecas em trajes típicos portugueses. “A maior parte de nossos pacientes não tem valor comercial, e sim, do coração”, explicou Cutileiro. “Tratamos da saudade das pessoas.”
O hospital fica num prédio com fachada de azulejos espremido entre uma loja de pastéis de nata e uma casa de câmbio. Até o século XVIII o local abrigou um hospital de verdade, que veio abaixo no terremoto que destruiu Lisboa em 1755. Daquela época, sobraram o piso original e uma sepultura, cuja identificação no chão ficou escondida sob o balcão. “Os nomes já sumiram, são nossos fantasmas”, brincou Cutileiro.
O empreendimento foi fundado por dona Carlota da Silva Luz, uma senhora que vendia ervas na porta de casa, aproveitando o movimento do grande mercado que tomava conta da praça, e consertava bonecas para completar o orçamento. Há trinta anos, seus herdeiros passaram a gestão do hospital para a família de Cutileiro, que morava no mesmo prédio e estava envolvida com o negócio desde o início. Ainda é possível comprar ali ramos de alfazema, alecrim ou rosmaninho, um resquício dos primórdios do estabelecimento.
Cutileiro tomou as rédeas após a morte da mãe, e espera passar o bastão a um de seus oito netos. Para a clínica geral, administrar o hospital não deixa de ser uma forma de voltar à infância. É ela própria quem se encarrega de limpar e arrumar as mais de 4 mil bonecas de um museu que funciona no mesmo andar das salas de cirurgia do hospital. “Gosto de exibi-las bonitinhas”, disse a portuguesa, que parece ter uma história pessoal com cada uma das miúdas em exposição. “É assim que ainda brinco de boneca.”
O atendimento da paciente de cabelos negros foi confiado a Ermelinda Francisco, uma mulher de 62 anos identificada como “doutora” num quadro na parede da sala que lhe serve de consultório. De avental e agulha na mão, sem tirar os olhos da boneca – cujas pernas e braços haviam sido separados do corpo –, ela contou que trabalha há quinze anos no hospital. É uma das cinco funcionárias, todas formadas em técnicas de restauro por um centro cultural no bairro de Alfama, não muito distante dali.
A especialidade de Francisco são os transplantes e o tratamento dos pacientes politraumatizados. “São os coitadinhos que chegam sem um olho, braço ou perna”, explicou a médica. Mas ela admitiu que gosta mesmo é de cuidar dos penteados. “Houve uma paciente que me veio com o cabelo em péssimo estado. Tive que pentear fio por fio”, contou. “Quando a dona viu o resultado, ficou maravilhada e disse que traria sua mãe para eu dar um jeito em seu cabelo.”
Nas mãos da doutora, a paciente daquela tarde ganhou cabelos sedosos e roupas restauradas, e ficou pronta para receber alta. Enquanto isso, uma colega de ambulatório já estava embalada em plástico, pronta para ser devolvida à dona. Era uma baianinha de uns 70 anos e 50 centímetros, com o corpo de pano coberto por um vestido amarelo e colares de miçangas. A cabeça negra careca, enfeitada por uma fita amarela, havia chegado fraturada. Foram uns quinze dias de coma no hospital.
Traumatismos cranianos como aquele talvez sejam os males mais comuns no hospital. São especialmente prevalentes nas bonecas de porcelana – as pacientes mais antigas e valiosas –, mas acometem também as modernas Barbies, por quem Manuela Cutileiro parece cultivar certo desdém. “Nas Barbies, o problema está sempre na cabeça”, disse, rindo. Seria por causa da pressão da sociedade para ficarem sempre magricelas? “Sim, elas sofrem!” Outra causa frequente de internação é a cegueira. “As crianças se divertem em estragar os olhos”, explicou a clínica geral. “É só meter o dedo, empurrar e eles caem.”
Como em qualquer enfermaria, a atmosfera é pesada. Uma parede coberta de escaninhos de madeira guarda cabeças carecas, bebês caolhos, palhacinhos decepados, troncos sem membros e chumaços de cabelos de cores variadas. Diferentemente de outros hospitais, porém, ali não se ouvem choros, gritos ou gemidos. Raríssimas são as ocasiões em que é preciso passar um certificado de óbito. Mas há dias de tragédia: com alguma frequência pacientes dão entrada carcomidos pelo cachorro ou gato da família. Nesses casos, a equipe de transplantes recorre ao necrotério – uma salinha escura abarrotada de caixas com peças e bonecas velhas –, em busca de uma perna ou braço que funcione como substituto.
Cutileiro evocou a história de um brasileiro de uns 60 anos que certa vez trouxe o ursinho de pelúcia que fora seu companheiro inseparável de infância. Desfigurado, estava irreconhecível. A solução foi recriar um novo boneco por cima dele e deixar um buraquinho na parte de trás, como uma janela para o amigo antigo. “Não tiramos sua alma”, avaliou a clínica geral. “Acho que o dono gostou. Aqui as lágrimas se deitam com muita facilidade.”
Fernanda Ezabella, jornalista, é correspondente da Folha de S.Paulo em Los Angeles