Rodrigo Souza soltou duas surucucus numa área aberta de seu serpentário. Um macho de 2,20 metros rastejou em sua direção antes de se lançar num voo preciso rumo ao seu rosto. "Não estou entendendo exatamente o que está acontecendo" FOTO: BERNARDO ESTEVES_2013
Cobra criada
A intimidade de um médico com a maior serpente venenosa das Américas
Bernardo Esteves | Edição 83, Agosto 2013
Rodrigo Souza dirigia um Uno vermelho pela rodovia BA-001, que liga Itacaré a Ilhéus, quando os faróis iluminaram um vulto no acostamento à direita. “Uma jiboia”, disse ele, antes de frear bruscamente, ligar o pisca-alerta e engatar a ré. Desceu do carro e agachou-se para ver de perto a serpente de quase 2 metros. Tinha sido atropelada. “Sacanagem, miraram bem no pescoço dela”, falou, desolado. Pegou o cadáver nas mãos e o lançou de volta à floresta – um trecho de Mata Atlântica atravessado desde 1998 por uma faixa de asfalto. “Perdemos essa.”
Souza guiava rumo a Serra Grande, distrito do município de Uruçuca, no sul do litoral baiano. Naquela noite de outono, tinha marcado um encontro com Francisco Santana da Conceição, um homem parrudo de 35 anos, que os amigos chamam de Tureba. Levou-o a uma pizzaria para ouvir e filmar seu depoimento. Queria que Tureba contasse o que lhe aconteceu no dia em que foi picado por uma surucucu.
Alguns anos atrás, o trabalhador rural passava por uma trilha quando uma serpente com mais de 2 metros avançou sobre ele. “Foi uma porrada na perna que quase me jogou do outro lado do caminho”, recordou, impressionado com a potência do bote. Apesar da dor intensa, que se irradiou logo pelo corpo, conseguiu andar até encontrar uma mulher a quem pediu socorro. Minutos após o ataque, já não tinha forças para se mexer. A caminho do hospital, a vista escureceu. “Na ambulância eu reconhecia a voz da minha mãe e do meu tio, mas, por mais que abrisse o olho, eu não conseguia enxergar.” Teve hemorragia digestiva e vomitou muito.
Tureba foi levado a Ilhéus e recebeu a tempo o soro que anula a ação do veneno. Ficou oito dias na Unidade de Terapia Intensiva. Em decorrência do acidente, teve insuficiência renal e precisou fazer hemodiálise. “Só fiquei bom pra valer seis meses depois”, contou. Rodrigo Souza queria saber se ele tinha sentido a garganta travada, como aconteceu com outras vítimas da surucucu. “Você não consegue engolir nem a própria saliva”, confirmou Tureba.
A surucucu é a mais longa das serpentes venenosas encontradas no continente americano – a maior já documentada tinha 3,5 metros. É facilmente reconhecível por sua coloração amarelada com motivos pretos em forma de losango. Seu dorso é coberto por escamas rígidas e sua textura não é muito diferente da que teria uma cobra feita de contas artesanais. Em alguns estados brasileiros, ela também é chamada de pico-de-jaca.
Em 1803, o naturalista francês François-Marie Daudin escolheu o nome Lachesis para designar o gênero da surucucu na taxonomia científica. De acordo com a mitologia grega, Láquesis é uma das três moiras, as mulheres responsáveis por tecer e cortar o fio da vida atribuído a cada criatura. Existem três espécies de Lachesis nas florestas úmidas da América do Sul e Central.
O nome popular da surucucu também deriva da má fama de que essa cobra goza entre as populações que têm contato com ela. Segundo o Dicionário Tupi-Guarani de Silveira Bueno, a palavra vem de suú-u-u, “o que dá dentadas, o que dá muitos botes”. No livro A Marcha para o Oeste, relato das expedições dos irmãos Cláudio e Orlando Villas Bôas pelo interior do Brasil, eles narram o encontro com uma Lachesis, descrita como a única cobra venenosa que avança e a cobra mais temida do Brasil.
Botes sucessivos de surucucu e ataques espontâneos – como o descrito por Tureba – não são incomuns em relatos populares, mas despertam certo ceticismo dos estudiosos dos répteis, chamados herpetólogos.
Ao se ver ameaçada, a surucucu vibra a ponta da cauda, emitindo um barulho contínuo e infernal, similar ao bater de asas de um besouro. Se o alerta não intimidar quem estiver por perto, ela pode se erguer e armar o bote, contraindo-se como uma mola na forma de um duplo S, para então se projetar num voo certeiro capaz de atingir uma presa a mais de 1 metro de distância.
Uma surucucu ilustra a capa de um dos dois volumes do manual The Venomous Reptiles of the Western Hemisphere, de Jonathan Campbell e William Lamar. O verbete dedicado às Lachesis relata um episódio ocorrido durante as filmagens de Aguirre – A Cólera dos Deuses, do alemão Werner Herzog, na Amazônia peruana. Um lenhador peruano que trabalhava no set foi picado por uma cobra. Aterrorizado ao constatar que se tratava de uma surucucu, amputou o próprio pé com uma motosserra antes de tentar chegar até o soro.
No início de maio, Rodrigo Souza publicou um trecho do depoimento de Tureba em seu blog, no qual aparece vestido de macacão e luvas, carregando compenetrado uma bandeja com uma dúzia de filhotes de surucucu. Três deles sobem por seu braço direito, um já acima do cotovelo. As cobras, então com três meses, tinham nascido no Núcleo Serra Grande, serpentário criado por Souza em 2004, no interior da Bahia.
Rodrigo Cançado Gonçalves de Souza tem 51 anos. É um mineiro loquaz, que faz os gerúndios sem o “d” e fala com a cadência marcada dos habitantes de Belo Horizonte. É fascinado por cobras e animais venenosos de todo tipo desde a infância, mas não escolheu uma carreira ligada à sua paixão. Estudou medicina na Universidade Federal de Minas Gerais e se especializou em cirurgia geral. Casou-se com a médica dermatologista Ana Paula Bhering Nogueira e se mudou com ela em 1992 para Morro de São Paulo, no litoral baiano, contratado para atender pacientes das ilhas da região. Ficaram lá até 2001 e se mudaram para Itacaré, também no litoral baiano, pouco mais de 100 quilômetros ao sul. Por nove anos, Souza trabalhou na Fundação Hospitalar de Itacaré, da qual veio a ser o diretor clínico.
Foi numa noite de Carnaval que doutor Rodrigo ganhou ares míticos para a população. Coube-lhe a missão de resgatar uma sucuri de 6 metros que estava na frente de um restaurante da orla. A sucuri, como a jiboia, não é venenosa, mas é uma serpente constritora, que se enrosca sobre a presa para abatê-la. O animal que apavorava os foliões havia descido o rio de Contas, que deságua em Itacaré, enrolado em plantas aquáticas. Chamado à uma e meia da manhã por um policial militar, Souza coordenou o resgate diante de centenas de pessoas exaltadas “uivando em volta”, conforme sua lembrança. No Carnaval seguinte, um grupo de mulheres organizou o bloco A Sucuri do Doutor Rodrigo.
Num fim de tarde de abril, enquanto tomava café e comia broa de milho, Souza contou como o seu destino cruzou o da surucucu. Assim que chegou a Itacaré, o médico se deparou com o couro de uma cobra imensa pendurado numa cerca, durante um churrasco. O homem que havia encontrado a serpente lhe contou que passara diversas vezes com o carro por cima dela ao avistá-la na estrada. “Vi o ódio que esse cara tinha quando explicou como havia matado o bicho”, contou Souza. “Um cara de nível superior, falando daquela forma. Estava embarcado no mito popular da agressividade da surucucu.”
Desde então, o médico passou a levar para casa e acomodar em caixas as surucucus que era chamado para resgatar. Quando já tinha dezesseis animais na varanda, Souza se convenceu de que não era boa ideia criá-los no ambiente em que circulavam seus dois filhos pequenos.
Guardar as surucucus em casa não era apenas perigoso: era também ilegal. Preocupado, Souza decidiu fazer o que ele chama de sua autodenúncia, o primeiro movimento de uma conturbada relação com a autoridade ambiental nacional. O órgão responsável pela gestão da fauna e da flora do país é o Ibama, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. Em dezembro de 2003, o médico foi à representação do órgão em Ilhéus para comunicar sua situação. Temia sair dali multado. Acabou com o reconhecimento formal de que era o fiel depositário dos animais em seu poder.
Em 2004, comprou um sítio de 4 hectares à beira da BA-001, a 30 quilômetros de sua casa em Itacaré. Montou ali o Núcleo Serra Grande, um serpentário para criar surucucus em cativeiro. Povoou-o com os animais que já tinha e que continuaria recolhendo das ruas a pedido da população local, da polícia e das autoridades ambientais.
Não há na rodovia nenhuma indicação da entrada para o Núcleo Serra Grande. Pouco depois da porteira, à beira de uma represa, vê-se a improvável sede social do complexo: um grande de que de madeira sobre a represa, coberto por um telhado amplo e sem paredes (um banheiro, ao fundo, é a única estrutura cercada). Dispostas sobre o ambiente aberto, há duas barracas, uma mesa de jantar, cadeiras e uma escrivaninha de trabalho, na qual Souza guarda uma seleta biblioteca de referência sobre herpetologia.
As surucucus são criadas a cerca de 300 metros dali, num espaço delimitado por um muro triangular com 280 metros de perímetro e 3 metros de altura. O muro desce ainda 50 centímetros abaixo do solo, para impedir a passagem de tatus e outros animais – uma das recomendações do Ibama para a regularização do empreendimento, que ainda não foi obtida depois de quase dez anos. Na maior parte do tempo, as cobras são confinadas em catorze viveiros amplos – o maior tem 40 metros quadrados – cercados por uma tela de aço galvanizado, reforçada na base por placas de plástico.
Souza nada mais fez que cercar o ambiente em que as surucucus já viviam. Mas não se trata de simplesmente soltar as cobras na terra. O leito de folhas em que os animais ficam é constantemente renovado. “O substrato tem que estar sempre seco, com uma base de brita isolando o contato com a terra. Assim não forma fungo ou bactéria, não dá doença de pele, nem pega parasita”, explicou o médico.
Nos viveiros, foram implantados túneis que simulam os buracos de paca e tatu onde as surucucus gostam de se esconder. Não tardou até que Souza começasse a encontrar ovos nesses túneis, que ele levava para incubar num prédio anexo. Após perder algumas ninhadas, aprendeu que devia deixar os ovos num vidro tampado com filme plástico perfurado por agulhas, para protegê-los de larvas de mosquitos. Deixou que a natureza cuidasse do resto. “Quem faz a incubação é o ambiente da Mata Atlântica, com a temperatura e umidade adequadas”, resumiu.
Em 2006, nasceu a primeira ninhada bem-sucedida – quinze filhotes, dos quais doze vingaram. Num artigo que publicou em 2007 para relatar o feito, Souza notou que a reprodução em cativeiro havia sido feita sem recorrer à tecnologia ou à eletricidade. Até então, a literatura científica só registrava outras duas experiências bem-sucedidas do gênero com surucucus: no zoológico de Dallas e no serpentário particular criado pelo americano Dean Ripa.
Para manipular uma surucucu é preciso segurar sua cabeça com força e prendê-la sob a axila de forma a imobilizar o primeiro terço da cobra, no qual estão os músculos mais fortes e elásticos usados no bote. Souza se lembrou do dia em que usou um gancho para prender o pescoço de uma surucucu e ela imediatamente começou a girar. “Em vez de aliviar o gancho, mantive. Você ouve o estalo da coluna quebrando”, disse, em tom de lamento. Três ou quatro animais morreram nas mãos dele até que decidisse mudar de estratégia.
Souza aprendeu a manejar surucucus com José Abade, um técnico de laboratório que cuidava do serpentário da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira, a Ceplac. Prestes a completar 59 anos, Abade mora com a mulher numa casa simples de muro verde em Itabuna. Guarda no quintal um gancho para pegar cobras fabricado com um cabo de vassoura e um metal enferrujado em forma de L. Usou o instrumento para imobilizar uma surucucu imaginária no chão. “Tem que pegar de maneira que a mão não vá muito dentro da boca e nem para trás.” Quando visitou o Núcleo Serra Grande, Abade notou que o gancho de Souza estava grande demais para lidar com a cobra. “Eu disse a ele: vamos diminuir esse gancho aí, doutor, senão vai atrapalhar.”
Abade foi buscar um álbum de fotos em que aparece segurando cobras em poses variadas. Numa imagem, ele exibe duas surucucus, uma em cada mão. “Não tem quem faça isso que você está vendo com jararaca”, contou. “Só de tocar o gancho na cabeça ela já começa a morder tudo, já vai largando veneno.” Na opinião dele, a surucucu não merece a fama que tem. “Não é esse terror que o pessoal fala.”
Isso não impediu que Abade fosse picado por uma surucucu, justamente após uma sessão de fotos. O técnico estava segurando uma pelo meio, sem imobilizá-la. “Quando suspendi o bicho, ele veio girando a cabeça pro meu lado. Eu tinha que ter empurrado pro lado com o gancho, mas vacilei e ele veio no meu braço.” Abade foi dirigindo até o hospital com uma única mão – o outro braço estava imobilizado pela dor. Ao chegar lá, teve ataques de vômito, diarreia e dor abdominal intensa. “O que me deu mais medo foi que na boca começou a faltar saliva, a língua enrolou e eu não conseguia respirar”, lembrou. “Quase que eu embarco.”
As cobras enxergam mal e praticamente não escutam. Seu olfato é aguçado. Em vez de recorrer às fossas nasais, elas usam a língua comprida e bifurcada na ponta para captar odores. Algumas espécies venenosas possuem um recurso sensorial notável: as fossetas loreais, cavidades que podem ser confundidas com um segundo par de narinas. Elas são revestidas de células nervosas capazes de detectar mudanças de temperatura de 0,003ºC, o que permite à serpente captar um retrato térmico muito preciso do ambiente à sua volta.
Quando vai manipular cobras, Rodrigo Souza usa um macacão preto com seu nome bordado em branco e o tipo sanguíneo (O positivo) em vermelho. O macacão tem um revestimento térmico que atenua significativamente sua percepção pelas serpentes como uma fonte de calor. Além disso, Souza trabalha sempre em dupla. Seu par atualmente é Cláudio Barreto dos Santos, um mateiro de 26 anos que mora ao lado do Núcleo Serra Grande e cuida do serpentário na ausência do patrão.
Durante a manipulação, Souza fica atento à vibração da cauda e à frequência do batimento de língua, que sinalizam um ataque iminente. “Quando começa a ficar lento, um por segundo, pode sair fora que é a hora do bote.” O sinal vermelho se acende quando ele é capaz de ter a visão simultânea das duas fossetas loreais da cobra – indício de que a fonte de calor à sua frente foi mapeada. Quando isso acontece, a cobra é devolvida ao chão imediatamente. O médico compara essa situação à de um F-16 que capta um caça inimigo em seu radar. “Aí acabou, o míssil vai aonde for. Com a surucucu é a mesma coisa: ela chegará como um foguete na sua cara. Você não vai conseguir recuar, o bote será mais rápido que sua explosão muscular.”
Os cuidados não impediram que, em 2005, um biólogo que trabalhava ao lado de Souza no Núcleo Serra Grande fosse picado por uma surucucu do plantel. Levado pelo médico para Ilhéus, foi tratado com soro e não teve sequelas.
Em 2005, Werner Herzog lançou o filme O Homem Urso, no qual relata a vida e morte do americano Timothy Treadwell. Ativista pela conservação dos ursos-pardos, que estão entre os mais temidos animais terrestres, Treadwell passou treze verões acampado em seu território, num parque nacional no Alasca. Sentia-se mais à vontade com os ursos do que com seres humanos. Acreditava entendê-los e poder se comunicar com eles. Treadwell deixou gravadas mais de 100 horas das filmagens que fazia para um documentário, usadas por Herzog para traçar seu perfil. As imagens mostram a proximidade temerária em relação aos animais. As gravações não mostram, porém, o momento em que Treadwell e sua namorada Amie Huguenard são devorados por um urso faminto. A câmera estava ligada, mas a lente, tampada.
A narrativa do homem urso assombra Rodrigo Souza. Foi um irmão quem lhe recomendou que visse o filme. A mensagem, segundo ele, foi inequívoca e enfática: “Você está no mesmo caminho, e vai se foder.” O médico defendeu Timothy: “Não era um maluco achando que estava em comunhão com o universo e os ursos. Ele sobreviveu a treze verões com os piores carnívoros da Terra”, disse, enfatizando o numeral com a cabeça.
Souza nunca perdeu o medo de cobra. Ele não acredita que tenha qualquer tipo de conexão com as serpentes, nem acha que elas sejam capazes de reconhecê-lo. “Elas não veem nada de especial em mim, sou só mais uma fonte térmica ameaçadora.” Perguntei se o décimo terceiro verão dele poderia chegar. “A paternidade me tirou o direito ao suicídio”, respondeu, evocando os filhos.
No Brasil, é possível encontrar surucucus na Amazônia e nos remanescentes de Mata Atlântica – do estado do Rio de Janeiro, onde há muito não são vistas, ao Ceará. As serpentes da Amazônia, relativamente abundantes, e as da Mata Atlântica, bem mais raras, já foram consideradas subespécies distintas, mas hoje são percebidas como duas populações geograficamente separadas da mesma espécie Lachesis muta. A revisão taxonômica teve uma consequência para a conservação do animal. A surucucu da Mata Atlântica, antes Lachesis muta rhombeata, constava na lista de espécies ameaçadas de extinção da fauna brasileira. Depois que passou a ser contabilizada junto com os animais amazônicos – outrora Lachesis muta muta –, a serpente deixou de ser considerada em perigo de extinção.
Mas a decisão em nada alterou a ameaça que pesa sobre as surucucus da Mata Atlântica, o mais devastado bioma brasileiro, do qual só restam 8,5% da cobertura original. Essas cobras dependem de condições muito específicas para sobreviver – ambientes com temperaturas na casa dos 20 e poucos graus e com alta umidade, de preferência acima de 90%. Por isso, só costumam ser encontradas nos trechos de floresta relativamente intocada, cada vez mais raros.
Quem chega a Itacaré pela BA-001 se depara com um caso típico da degradação do bioma. Num vale onde havia mata fechada até duas décadas atrás, ergueu-se o Bairro Novo, dos mais pobres da cidade. A população de Itacaré aumentou 34% entre 2000 e 2010. À medida que o amontoado orgânico de construções populares avança sobre a mata, os encontros entre humanos e surucucus vêm se tornando mais frequentes – e quem leva a pior costuma ser a cobra.
O cacaueiro é adaptado para crescer à sombra de árvores maiores nas florestas tropicais úmidas. Na Bahia, o sistema predominante para seu cultivo é chamado de cacau-cabruca, em que ele é plantado em meio a remanescentes da vegetação original. Um hectare cultivado assim pode ter quarenta árvores e 600 pés de cacau. Não é raro encontrar surucucus nesse ambiente, alimentando-se dos ratos que atacam os cacaueiros, como notou o herpetólogo Antônio Jorge Suzart Argôlo, professor da Universidade Estadual de Santa Cruz, a UESC, cujo campus fica a meio caminho entre Ilhéus e Itabuna.
Em 2004, Argôlo lançou o livro As Serpentes dos Cacauais do Sudeste da Bahia. Ao descrever seu objeto de estudo numa entrevista, ele destacou o temperamento calmo da serpente. “É um animal com potencial mortífero muito grande e, ao mesmo tempo, um doce de cobra. Se quiser manipular esse bicho de mão livre você consegue, porque ele raramente toma a iniciativa de um ataque.”
O pesquisador investiga há vinte anos como se dá a distribuição geográfica, a alimentação e a reprodução das surucucus. Como curador da coleção de serpentes da universidade, está à frente de um plantel de cinco animais, incluindo uma surucucu. É também responsável por uma coleção de mais de 200 Lachesis mortas na região, com dados detalhados sobre a data e local de captura de cada uma. “A literatura diz que a surucucu é dependente de mata primária, bem conservada. E a gente está vendo que, pelo menos aqui na região do cacau, o bicho transita bem entre fragmentos, atravessa regiões bem degradadas, pode ser encontrado atravessando asfalto, dentro da cidade.”
Outro pesquisador interessado pela espécie é o uruguaio Anibal Melgarejo Gimenez, do Instituto Vital Brazil, em Niterói. Em seu doutorado, ele investigou o veneno da Lachesis muta. Por quase vinte anos, fez viagens regulares à Reserva Biológica de Pedra Talhada, em Alagoas, para estudar a espécie em seu hábitat. Melgarejo pegou uma surucucu pela primeira vez em 1989 e considera esse dia um ponto de inflexão em sua carreira. “Foi como passar na prova da Ordem dos Advogados do Brasil”, comparou. “É um mito. Um animal extraordinário”, disse o herpetólogo. “A surucucu talvez não consiga competir com a naja-real da Índia, que chega a 5 metros de comprimento e é a maior serpente venenosa do mundo. Mas, no Brasil, é a rainha das cobras.”
No Instituto Vital Brazil, onde trabalha há quase trinta anos, Melgarejo construiu um serpentário climatizado para surucucus único no país. Tem uma cascata artificial correndo sobre pedras, buracos que imitam as tocas de tatu e folhas espalhadas pelo chão. Já acolheu vários indivíduos, mas o plantel encontra-se desfalcado. Devido a um problema com a climatização no ano passado, os animais ficaram debilitados e, com imunidade reduzida, morreram um a um. A única remanescente é uma fêmea de 2 anos, nascida no próprio serpentário. “Elas têm saúde fraca, morrem com facilidade”, disse Melgarejo. “É um animal difícil de manter em cativeiro.”
Quando ganhou o status de fiel depositário das cobras que tinha resgatado, Rodrigo Souza interpretou a complacência do Ibama como um salvo-conduto para capturar mais e mais surucucus. Passou a atuar como parceiro informal da polícia e dos bombeiros na remoção de cobras. Na parede da delegacia, havia um cartaz com seu número de telefone. “Era uma mão na roda”, disse-me o PM Avelino Santos Filho.
Além das dezesseis serpentes que Souza havia sido autorizado a manter, havia outras 31 quando o Núcleo Serra Grande recebeu uma visita surpresa de fiscalização do Ibama em julho de 2004. O médico tinha boletins de ocorrência que registravam vários resgates de cobras, mas não tinha documentos que justificassem toda a evolução do plantel. Foi multado em 15 500 reais.
Souza disse que deu um passo em falso ao anunciar pela rádio de Itacaré que pagaria 1 real a cada rato que a população lhe entregasse, para alimentar as cobras. “Foi um vacilo completo, que me complicou por me associar ao comércio de fauna”, reconheceu. Há quem diga que ele pagava também pelas surucucus que lhe fossem confiadas, o que ele nega. É o caso de Antônio Argôlo, o primeiro de uma lista de desafetos que Souza coleciona no meio acadêmico. “Quando a gente ainda se relacionava, fui a um hospital em que ele atuava e vi um cartaz pequeno dizendo: ‘Se encontrar uma surucucu, não mate, ligue para o número tal’”, disse-me Argôlo. “E finalizava o anúncio dizendo: ‘Gratifico.’”
Durante um passeio de barco que fizemos subindo o rio de Contas, o barqueiro se lembrou do período em que o doutor Rodrigo pedira para ser avisado caso alguém visse uma pico-de-jaca. Contou que andava alerta em busca da cobra. “A gente estava de olho naqueles 100 reais”, disse ele. Mais tarde, quando questionei Souza sobre o episódio, ele afirmou que não era verdade que pagasse pelos animais. Desafiou os acusadores a trazerem uma única pessoa que lhe tivesse vendido uma serpente. “Se ela é uma nota de 100 ambulante desfilando pela rua, por que é que não chega um candidato, ensaca e me traz para recolher a grana?”
O jornalista Dener Giovanini, coordenador da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres, conheceu o trabalho de Rodrigo Souza em 2007, quando fez para o Fantástico um quadro sobre a surucucu. “Sei diferenciar quem é traficante de quem não é, e o doutor Rodrigo não é”, ele me disse numa conversa telefônica. “O trabalho dele supera em muito qualquer problema que possa ter existido no passado em relação a alguma norma não atendida.” Giovanini vê Souza como um herói ambiental. “Em outros países ele estaria coberto de prêmios de conservação ambiental.”
Rodrigo Souza tinha 8 anos quando foi visitar o avô no hospital e se deparou com um menino com a pele azulada – havia sido picado por uma cascavel. A visão despertou fascínio e curiosidade, que se mantiveram dali em diante. Passou a ler sobre cobras e animais peçonhentos em revistas e enciclopédias. Ainda menino, começou a frequentar a instituição que foi sua alma mater: a Fundação Ezequiel Dias. A Funed é um dos três grandes centros de produção de soro antiofídico do país – os outros são o Instituto Butantan, em São Paulo, e o Vital Brazil. Souza ia passar as tardes acompanhando o trabalho de “seu Guilherme”, técnico que manipulava serpentes, deixava que o menino circulasse e ainda lhe dava aulas sobre as cobras.
Não demorou até que Souza começasse a criá-las em casa, escondido dos pais. Aos 12 anos, ele tinha uma cobra-cipó verde – que nem sempre aparece nas listas de espécies venenosas, mas já causou acidentes fatais. Os pais estimularam o interesse de Rodrigo. Por volta dos 15 anos, deixaram que ele montasse um laboratório num vestiário desativado nos fundos da casa onde moravam num bairro nobre de Belo Horizonte. O rapaz guardava ali os animais mortos que colecionava e os vivos que criava. Chegou a manter por um bom tempo uma jararacuçu de 1,40 metro, “da grossura de um braço”, no chão do boxe do banheiro.
Souza transmitiu aos dois filhos o fascínio que tem pelas cobras. Os meninos se referem a várias pelo nome científico, sabem identificar as espécies peçonhentas e estão habituados a manejar cobras não venenosas. Quando visitei a Funed na companhia de Rodrigo e Luca – o mais novo, com 10 anos –, o menino me ensinou como segurar uma falsa coral. Ao notar que eu estava receoso, ele disse, tranquilo: “O máximo que pode acontecer é você tomar uma grampeada na mão.”
Souza ergueu uma casa ao lado da escola que também ajudou a construir, e onde os filhos estudaram, no bairro da Passagem, afastado do Centro de Itacaré. Encostada num trecho preservado de Mata Atlântica, a poucos metros de um córrego, a casa permanece com suas janelas amplas sempre abertas. Souza equipou os quartos e a sala de televisão com barracas de camping, para que a família ficasse ao abrigo dos mosquitos onipresentes.
Criados nesse ambiente, os filhos de Souza tornaram-se defensores precoces da natureza. “Quando aparece uma barata, eu não deixo minha mãe matar, pego uma caixa de fósforos, guardo e depois solto em outro lugar”, me disse Gabriel, o mais velho, com 13 anos.
Preocupada com a educação dos meninos, em 2006 Ana Paula mudou-se com eles para Belo Horizonte. Quatro anos depois, Rodrigo se juntou à família. Trabalha hoje como médico do Sistema Único de Saúde em dois hospitais da região metropolitana de Belo Horizonte e tenta ir ao menos uma vez por mês ao Núcleo Serra Grande.
O veneno é uma das mais sofisticadas armas bioquímicas forjadas pela evolução. Consiste num coquetel de moléculas complexas e altamente adaptadas, usado tanto para a defesa quanto para o ataque. Sua composição varia de espécie para espécie e é adaptada para agir especificamente sobre o tipo de animal do qual o predador se alimenta. O veneno pode conter substâncias que impeçam a coagulação do sangue da presa, que dilacerem seus músculos ou que os paralisem, levando à parada cardíaca e respiratória. Serpentes, aranhas e escorpiões estão entre os animais peçonhentos mais lembrados, mas também há espécies venenosas em um sem-número de invertebrados e em todas as classes de vertebrados.
Das mais de 300 espécies de serpentes encontradas no Brasil, só algumas dezenas são consideradas venenosas. Elas costumam ser divididas em quatro grandes grupos. As jararacas e assemelhadas, do gênero Bothrops, têm um veneno que provoca grande dor e inchaço, promove a destruição do tecido muscular e não deixa o sangue coagular. Já a peçonha das cascavéis age sobre o sistema nervoso, leva à paralisia muscular e compromete a atividade dos rins. No caso das surucucus, o efeito é dor intensa, queda brutal da pressão, estado de choque e uma violenta reação hemorrágica gastrointestinal. O veneno das corais-verdadeiras, por fim, também age sobre os nervos e músculos e pode levar à parada respiratória.
O veneno das cobras é produzido em glândulas situadas atrás dos olhos e conectadas aos dentes adaptados para a inoculação do líquido, pontudos e ocos no interior, como uma agulha de injeção. As serpentes do grupo dos viperídeos têm grandes dentes inoculadores retráteis que ficam deitados no céu da boca quando a cobra está em repouso e só são armados no bote. A maioria das serpentes venenosas brasileiras pertence a esse grupo. A exceção fica por conta das corais-verdadeiras, que têm os dentes inoculadores fixos na parte anterior da boca – elas são também as únicas cobras venenosas no Brasil que não têm fosseta loreal.
A toxicidade do veneno de uma serpente é convencionalmente medida por uma unidade que os especialistas chamam de DL50, que corresponde à dose letal suficiente para matar 50% dos camundongos injetados com a substância. Mensurada por esse método, a peçonha da surucucu não impressiona. Tome-se o exemplo da cascavel, uma das serpentes mais letais para as cobaias. “São necessários 1,5 ou 2 microgramas desse veneno para matar um camundongo”, afirmou Anibal Melgarejo. “Já com a surucucu, você precisa de uma quantidade 150 a 300 vezes maior.”
A baixa letalidade do veneno das em cobaias não reflete os efeitos devastadores descritos nos poucos relatos de picadas em humanos disponíveis na literatura. O americano David Hardy e o colombiano Juan José Silva Haad discutiram essa discrepância num artigo de 1998. Concluíram que extrapolar os dados de DL50 de uma espécie para outra era uma futilidade. “A lição que fica é que camundongos não são seres humanos”, escreveram. “As dez cobras mais venenosas do mundo não são necessariamente as listadas nos documentários de tevê a cabo – a menos que você seja um rato ou um porquinho-da-índia.”
O herpetólogo Dean Ripa mantém em Wilmington, a cidade onde nasceu, na Carolina do Norte, um serpentário aberto ao público que abriga mais de quarenta espécies venenosas de cobras, trazidas por ele de vários cantos do globo. Sua coleção inclui as serpentes mais temidas do mundo, como a naja-real, a mamba-negra e a víbora-do-gabão. Ripa tem um fascínio especial pelas Lachesis, sobre as quais escreveu um elogiado livro de referência. Em seu site, ele diz já ter sido mordido catorze vezes por cobras venenosas, das quais sete por Lachesis. Quando lhe pedi que comparasse o envenenamento por surucucus e outras espécies, recebi dele o seguinte relato por e-mail:
Entrei em colapso físico quatro minutos após ter o veneno inoculado numa ocasião, em sete minutos em outra e em 25 na terceira. A mordida é muito diferente da de outros viperídeos, por provocar incapacitação e morte de forma muito, muito rápida. Por outro lado, a destruição de tecido é comparativamente baixa, se você sobreviver (e, claro, tiver soro antiofídico). Das outras sete mordidas de viperídeos que levei, a surucucu foi de longe a que apresentou o pior quadro sistêmico, mas causou o menor estrago local.
O soro capaz de neutralizar a ação do veneno contém anticorpos produzidos por um animal previamente imunizado. Em geral, a espécie usada para a produção de soro é o cavalo, por seu grande porte e resistência. Alguns dias depois de os equinos receberem uma dose não letal do veneno, parte do seu sangue é retirada. Isolados do plasma sanguíneo, os anticorpos contra o veneno são processados e usados para fabricar o soro. Como o composto contém proteínas estranhas ao organismo humano, sua administração pode desencadear uma reação anafilática. Por isso, sua administração deve ser feita em ambiente hospitalar.
O imunologista francês Albert Calmette usou essa estratégia para produzir soro antiofídico, no fim do século XIX, usando o veneno da naja-indiana. Coube ao médico mineiro Vital Brazil demonstrar alguns anos depois que a ação do soro era específica para cada tipo de veneno. Trabalhando com cachorros, ele verificou que os animais imunizados contra o veneno da jararaca continuavam vulneráveis à peçonha das cascavéis, e vice-versa. Desde então, passaram a ser desenvolvidos soros próprios para combater o veneno de cada espécie, além de modalidades polivalentes. A eficácia do tratamento depende da identificação da cobra responsável pelo acidente.
A tecnologia permitiu aprimorar a produção do soro antiofídico nas últimas décadas, mas o princípio adotado ainda é o mesmo dos tempos de Calmette. O produto é fabricado regularmente no Brasil desde 1901, quando o governo paulista criou o Instituto Serumtherápico na fazenda Butantan, então nos arredores da capital, e confiou sua direção a Vital Brazil. Conhecido hoje como Instituto Butantan, o centro é atualmente o principal laboratório nacional responsável pela produção de soros.
O Butantan planeja produzir este ano quase 195 mil ampolas de soro antiofídico de diferentes modalidades – o que corresponde a cerca de metade da demanda nacional. Para isso, a instituição conta com um plantel de aproximadamente mil cobras venenosas, incluindo quatro surucucus. São mantidas num grande serpentário no campus da instituição, que hoje está integrada à malha urbana da capital, ao lado da Cidade Universitária da USP.
O veneno usado para imunizar os cavalos é extraído de serpentes selecionadas de forma a representar uma grande diversidade de características. “Tentamos variar a procedência geográfica, o gênero e a idade dos animais usados”, explicou a médica Fan Hui Wen, responsável pela divisão de soros do Instituto Butantan. “Fatores como esses podem mudar a alimentação do animal, e isso afeta a composição do veneno.”
No ano passado, o Ministério da Saúde contabilizou em torno de 29 mil ataques por serpentes no Brasil, dos quais 72% – quase 21 mil – foram causados por Bothrops, à frente das cascavéis, com pouco mais de 2 mil casos (8%). Foram notificados ainda 885 ataques de surucucus (3%) e 241 de corais (1%) – os outros 16% correspondem a ataques de cobras não identificadas ou não venenosas.
O médico-veterinário Guilherme Reckziegel, que trabalha com o controle de acidentes com animais peçonhentos do Ministério da Saúde, atribui o destaque das Bothrops nas estatísticas a fatores como a sua ampla distribuição geográfica e à grande quantidade de espécies desse grupo. Seu comportamento também ajuda a engrossar os números. “A jararaca é extremamente agressiva. Dá bote até na sombra, como se diz por aí.” Reckziegel destacou também outros padrões revelados pelas estatísticas. O acidente com serpente é tipicamente rural – caso de 87% das notificações feitas entre 2007 e 2011 – e a maior parte das vítimas é de homens (77% dos casos compilados no mesmo período).
Foram registradas no Brasil 128 mortes causadas por serpentes no ano passado – aproximadamente quatro óbitos para cada mil casos notificados. As jararacas fizeram 85 vítimas, mas as cascavéis, responsáveis por 27 mortes, foram as mais letais – 12 óbitos a cada mil casos. Uma única morte por surucucu foi comunicada ao Ministério da Saúde em 2012.
Os números do Brasil são altos se comparados aos dos Estados Unidos, por exemplo, que contabilizam cerca de cinco fatalidades por ano, num universo de 7 mil a 8 mil envenenamentos. A Austrália – um caso raro em que há mais cobras venenosas do que não venenosas – registrou apenas 58 mortes entre 1979 e 2000. Já na Índia os números são bem mais preocupantes. Um estudo recente estimou que tenha havido por volta de 46 mil mortes por serpentes naquele país em 2005, um número muito maior que as 2 mil fatalidades compiladas nas estatísticas oficiais.
As estatísticas de mortes por serpentes no Brasil estão relativamente estáveis desde o início dos anos 90. Eram bem expressivas na primeira metade dos anos 80, quando se registravam cerca de 250 mortes por ano. Em 1985, as dificuldades do acesso ao soro motivaram mortes noticiadas com alarde pela imprensa. Em reação, o governo lançou no ano seguinte o Programa Nacional de Ofidismo, que tornou obrigatória a notificação dos acidentes, padronizou a produção de soros e promoveu campanhas educativas.
Quando estive no Núcleo Serra Grande, no fim de abril, a maior parte das 35 serpentes do plantel não estava nos grandes viveiros cercados, mas em observação no chamado sistema intensivo de criação. É um procedimento comum nessa época do ano, quando os animais são recolhidos para acompanhamento individualizado, enquanto é feita a manutenção do serpentário.
Este ano, outro fator recomendava que as cobras fossem observadas de perto: o estoque de comida estava a perigo. No biotério do prédio anexo, havia naquele momento 240 ratos, que mal dariam para alimentar o plantel por um mês – cada cobra come em média um roedor por semana. “Está crítico”, disse Rodrigo Souza, franzindo a testa. Os roedores vivem em gaiolas empilhadas em várias estantes metálicas num galpão amplo. Alguns animais ficam soltos num grande espaço cercado por uma mureta de azulejos.
O sistema intensivo de criação é formado por uma série de barracas de camping da mesma marca das que Souza tem em casa. As barracas estão espalhadas por mais de um cômodo e comportam até três serpentes cada uma. “Colocamos as cobras nesses recintos para que a gente possa ficar atento ao seu estado nutricional e preparar a vermifugação”, justificou o médico.
Numa das barracas, ele exibiu Gisele Bündchen, a única cobra que tem nome no serpentário. “Ela tem um azulado no desenho que nunca tinha visto em outra cobra”, explicou. “É a surucucu mais bonita que já vi.”
Mais adiante, ele soltou três ratos numa barraca, um para cada animal ali dentro. A cobra do fundo foi a primeira a dar o bote. Certeira, provavelmente perfurou o coração ou o pulmão do rato com uma das presas e ele não tardou a morrer. Ela seguiu com a cabeça erguida, prendendo o animal com a boca enquanto aguardava a ação do veneno. A surucucu é o único viperídeo brasileiro com esse comportamento: jararacas e cascavéis dão o bote e soltam a presa, esperando que ela agonize no chão. Souza acredita que seja um comportamento adaptado ao ambiente úmido da Mata Atlântica. “A surucucu não pode se dar ao luxo de deixar o rato sair para morrer a 40 metros dali e se perder numa poça.”
Quando a cobra sentiu que o rato estava morto, colocou-o no chão, aproximou-se para identificar os dois lados do animal e começou a engoli-lo pela cabeça. As serpentes não têm dentes adequados para partir ou triturar os alimentos e digerem os animais por inteiro. Ao cabo de alguns minutos, a surucucu já havia engolido praticamente todo o rato – só restava o rabo, escapando de sua boca como um espaguete.
A segunda cobra se alimentou sem problemas. Mas a serpente mais próxima da porta da barraca não tinha sido tão ágil. Seu bote foi menos preciso e o rato demorou mais tempo para morrer, esperneando na sua boca. Ela ainda não pousara o roedor no chão quando a primeira surucucu terminou sua refeição. Aparentemente insatisfeita, a cobra que já havia comido aproximou-se da colega menos hábil com sua presa. Quando suas fossetas loreais identificaram o rato ainda quente na boca da outra, ela não hesitou e avançou. Só que errou o bote e acertou a cabeça da parceira. Imediatamente as duas se enroscaram num novelo ruidoso. Alvoroçado, Souza entrou na barraca e trouxe o par engalfinhado para um canto do quarto onde pudesse manejá-lo com mais liberdade. Só então conseguiu desenganchar as presas de uma surucucu da cabeça da outra.
A cobra ferida tinha recebido o equivalente de uma punhalada no crânio e sangrava nas mãos de Souza, mas provavelmente não sofreria os efeitos do envenenamento – viperídeos e outras serpentes têm no sangue substâncias que neutralizam sua própria peçonha em caso de inoculação acidental. Souza levou a serpente acidentada à maternidade, que funciona também como sala de emergência. Ali, tratou o ferimento da serpente com iodo e, segurando-a pela cabeça na vertical, forçou-a a engolir o rato que ela não conseguira comer mais cedo. Guardou-a num aquário para observação. “Ela está correndo risco de vida nas próximas 48 horas”, disse, consternado. A serpente sobreviveu.
Em 2009, Rodrigo Souza publicou um artigo chamado Endurance (Persistência) no mesmo boletim da Sociedade Herpetológica de Chicago em que comunicara antes a obtenção da primeira ninhada no Núcleo Serra Grande. O trabalho relatava o nascimento de 32 filhotes naquele ano, o que, segundo o autor, atestava a eficácia do método low tech de reprodução em cativeiro que já havia chamado a atenção de especialistas estrangeiros.
“Todos os esforços deveriam ser feitos para apoiar o trabalho de Souza com as surucucus da Mata Atlântica, uma espécie muito rara”, disse, por e-mail, Ruston Hartdegen, curador de herpetologia do zoológico de Dallas, primeira instituição a reproduzir a Lachesis muta em cativeiro. Outro americano, Rob Carmichael, do Wildlife Discovery Center, acredita que “os dados que ele está acumulando serão inestimáveis para o futuro dessa serpente incrível”.
Mesmo admirável, a reprodução de surucucus em cativeiro trouxe a Souza mais dores de cabeça. O Ibama tinha autorizado que ele mantivesse as serpentes em seu poder, mas não que tentasse cruzá-las. Numa visita técnica, representantes do órgão haviam visto uma placa com os dizeres “Núcleo Serra Grande de Reprodução em Cativeiro de Lachesis muta rhombeata”, mas não advertiram Souza. Para o médico, ficou subentendido que ele podia seguir em frente. “A gente ficou entusiasmado com a possibilidade de manutenção desse feito inédito e se esqueceu de ater-se à parte legal”, justificou-se.
O descontentamento do Ibama se manifestou num parecer sobre o processo de regularização do Núcleo Serra Grande emitido pela gerência executiva do órgão em Eunápolis, datado de maio de 2011. O documento apontou que o proprietário não tinha autorização para fazer a reprodução em cativeiro e que os filhotes tinham origem ilegal. Determinou um levantamento do plantel e sugeriu que fosse aplicada uma multa de 5 mil reais por espécime, valor a ser duplicado no caso de haver “finalidade de obter vantagem pecuniária”, o que o ofício julgava ser o caso. O parecer recomendou, por fim, o embargo do serpentário e a apreensão imediata do plantel.
O documento do Ibama teve efeito devastador para Rodrigo Souza. Ele inaugurara seu blog em dezembro de 2010, convicto de que no ano seguinte resolveria o processo de regularização do serpentário, que se arrastava desde 2004. Se levada a cabo a sugestão de multar o Núcleo Serra Grande em 10 mil reais, considerando cada uma das 81 serpentes do plantel em 2009, o valor chegaria a 810 mil reais. Souza cogitou se divorciar no papel, para blindar a família de complicações financeiras. “Estou com a espada de Dâmocles na cabeça”, ele me disse, exasperado. “Amanhã pode vir uma equipe e botar meus netos endividados.”
Souza primeiro implantou o Núcleo Serra Grande e depois pediu a licença para seu funcionamento, invertendo o caminho correto para se criar um serpentário. A bióloga Maria Izabel Gomes, coordenadora-geral de fauna do Ibama, explicou que o processo de Souza está paralisado há anos junto com outros casos semelhantes – desde 2008 o Ibama não autoriza a criação de novos serpentários. Disse ainda que o órgão se posicionaria sobre o caso este ano e que o parecer de 2011 seria “avaliado pelas instâncias superiores para ver se as recomendações serão cumpridas”.
Rodrigo Souza já gastou algumas centenas de milhares de reais com o Núcleo Serra Grande. Nem tudo saiu do seu bolso: ele recebeu algum apoio de ONGs e particulares.[1] Como médico do SUS, ganha até 13 mil reais nos meses em que dá mais plantões. Os gastos com a manutenção do serpentário chegam a 3 mil reais por mês.
O médico pleiteou junto ao Ibama o registro do Núcleo Serra Grande como um serpentário comercial. Vender veneno de surucucu seria uma maneira de gerar receita com o empreendimento. Souza enxerga ainda a possibilidade de produzir filhotes para jardins zoológicos e criadores internacionais interessados em aumentar a variabilidade genética de seus plantéis. Os animais poderiam ser usados ainda em projetos de reintrodução nas áreas onde a espécie já não ocorre mais – mas antes seria preciso encontrar proprietários dispostos a soltar surucucus em suas terras.
Outra possibilidade seria abrir o Núcleo Serra Grande à visitação pública. Souza gostaria de oferecer pacotes ecoturísticos de dois ou três dias, que incluiriam passeio pelo rio de Contas, trilhas pela Mata Atlântica e uma visita ao serpentário. Imagina fazer ali um museu da surucucu para promover a conservação da espécie. O engenheiro-agrônomo Rui Barbosa Rocha, professor da UESC e diretor do Instituto Floresta Viva, que tem uma parceria com o serpentário, acredita que a iniciativa ajudaria a chamar a atenção para a importância de proteger um animal que ninguém quer por perto. “Uma coisa é criar uma cultura de conservação de um macaco-prego-do-peito-amarelo ou um muriqui. Mas e essas espécies que são odiadas?”, comparou.
João Luiz Cardoso é um médico de 68 anos que atende no Hospital Vital Brazil, vinculado ao Instituto Butantan e especializado em envenenamentos. Quando organizou com outros colegas a segunda edição do livro Animais Peçonhentos no Brasil, encomendou a Rodrigo Souza um capítulo sobre os aspectos clínicos da picada de surucucu. Cardoso esteve no Núcleo Serra Grande e gostou do que viu. “Essa cobra é das mais luxuosas e exigentes, ninguém consegue criar”, disse ele. “A experiência dele deveria ser multiplicada pelo país.”
Para isso, no entanto, seria preciso decretar uma trégua na relação de beligerância estabelecida entre muitos herpetólogos brasileiros e Souza. No Instituto Butantan, Cardoso é um dos seus poucos interlocutores. A origem da rusga remonta aos anos de origem do Núcleo Serra Grande, quando o médico se convenceu de que havia um complô entre cientistas do Butantan e do Instituto Vital Brazil para se apoderar de seu plantel numa trama que envolveu conversas interceptadas pelo MSN e acusações de parte a parte de venda de veneno.
No blog, Souza reproduziu o e-mail agressivo em que recusou o pedido de envio de animais vivos feito por um pesquisador do Butantan. Na mensagem, ele criticou a forma como as Lachesis eram manipuladas no Instituto: “Apesar de julgar-se no topo do conhecimento (acadêmico), vocês não têm a menor noção da anatomia/fragilidade do gênero, tratando-o como se tivesse a rusticidade de Bothrops”, escreveu. Mais adiante, afirmou: “O pior disso tudo é que vocês não se julgam em posição de aprender, ainda mais de um joão-ninguém como eu.”
O herpetólogo Marcelo Ribeiro Duarte está entre os pesquisadores do Butantan que, na versão de Souza, estariam envolvidos no complô. Por telefone, ele me disse que o médico “viajou na maionese”. E explicou: “Ele tem um monte de inimizades com as pessoas que estudavam surucucu antes dele. Tem alguma coisa errada com esse cara. Isso é mania de perseguição.” Duarte já esteve no Núcleo Serra Grande e achou os animais muito bem cuidados, mas levantou dúvidas sobre o propósito do empreendimento. “Não sei se esses bichos estão sendo usados para conservação. Tenho desconfiança quando a pessoa solicita licença para vender veneno. Isso é amor, però non troppo”, comentou.
Anibal Melgarejo também reagiu com surpresa ao ser envolvido na trama relatada por Souza. Ao comentar o caso, disse que se sentiu atacado gratuitamente e que jamais teve interesse pelo plantel do Núcleo Serra Grande. O estudioso de surucucus do Vital Brazil disse ver a iniciativa de Souza com bons olhos, desde que tocada com transparência, mas minimizou seu mérito. “Naquela região, a surucucu é tão abundante que aparecem cadáveres na estrada. Não é um grande mistério que ele cerque um pedaço e os bichos procriem”, ironizou. Melgarejo achou confusa aquela história em que acabou arrumando um inimigo que não conhece pessoalmente. “É muito mais fácil trabalhar com cobras.”
No fim da manhã em que visitamos o serpentário, Rodrigo Souza trouxe duas surucucus e deixou-as soltas no chão, numa área aberta. Eram dois machos. Um deles, de 1,90 metro, estava enrolado, imóvel. O outro tinha 2,20 metros e estava mais irrequieto, explorando o ambiente, com o batimento de língua em alta frequência. “Ela está mostrando claramente que está tranquila, mas muito alerta”, avaliou Souza.
O médico sentou-se sobre a terra coberta de folhas, com as pernas dobradas para o lado, a pouco mais de 1 metro das cobras. Segurava um pedaço de pau com a ponta dobrada que estava usando para manejá-las. O animal mais agitado aproximou-se da serpente imóvel e fuçou o chão, num ponto em que ela havia encostado a cloaca. As duas surucucus ergueram a cabeça e se encararam, batendo língua uma para a outra. “Está havendo uma interação meio maluca entre elas”, disse Souza. “Não estou entendendo exatamente o que está acontecendo, vamos acompanhar.”
A surucucu mais inquieta havia contornado o animal enrolado e agora rastejava na direção de Souza, que evitou sua aproximação com o pedaço de pau. Ela parecia ter identificado uma fonte térmica à sua frente. A cobra ergueu-se então até a altura do peito do médico e recuou ligeiramente a porção do corpo que estava acima do chão. Não vibrou a cauda sobre a folhagem para anunciar o voo preciso em que se lançou em direção ao rosto de Souza. O médico encontrou tempo de se jogar para trás numa cambalhota cinematográfica, aterrissando a 2 metros do animal.
“Agora acabou!”, exclamou Souza, assustado, enquanto brandia o gancho na direção da cobra que acabara de atacá-lo, ainda armada com um duplo S. A serenidade de alguns instantes atrás dera lugar a um semblante de tensão e alerta. Souza escapou do bote certeiro por muito pouco, executando um rolamento para trás que ele pratica semanalmente nas aulas de krav magá, a defesa pessoal do Exército israelense.
Minutos depois, quando a atenção da cobra havia se dispersado, Rodrigo Souza, já de pé, manifestou seu contentamento com a vitalidade do animal que acabara de atacá-lo. “Vi o bocão branco e gostei”, disse ele. “Essa cobra está em perfeito estado de saúde.” Ainda se refazendo do bote, Souza soltou um riso nervoso e disse, como se quisesse convencer a si mesmo: “Aqui não tem essa de homem urso.”
[1] Um dos sócios da Editora Alvinegra, que publica piauí, fez uma doação para reparos nas instalações do Núcleo Serra Grande.