Princípio ativo: Eu nunca tinha vivenciado algo tão intenso. A certa altura, a casa virou uma sucessão de vidraças iridescentes e o contorno dos objetos se decompôs em várias cores CRÉDITO: VITO QUINTANS_2022
Cogumelos livres
Os estados do Colorado e Oregon, nos Estados Unidos, autorizam o uso de fungos psicodélicos para adultos
Marcelo Leite | Edição 195, Dezembro 2022
Uma sensação de irrealidade pairou durante os quatro dias da conferência Horizons Northwest, realizada em meados de setembro no edifício Mark, na cidade norte-americana de Portland, no Oregon. Com a presença de novecentas pessoas, era a primeira vez que o encontro ocorria fora de Nova York para discutir “Perspectivas para Psicodélicos”. Mas a sensação de irrealidade não era devido ao tema, e sim porque parecia difícil acreditar que, dali a três meses, o Oregon se tornaria pioneiro, em todo o mundo, na distribuição legal, sem prescrição médica, da psilocibina – nome do composto psicoativo dos cogumelos “mágicos” Psilocybe cubensis. Atualmente, a psilocibina é proibida pela Agência de Controle de Drogas (DEA), do governo norte-americano.
Antigo templo maçom, o edifício Mark integra o Museu de Arte de Portland, e foi nesse mesmo espaço que, três anos e meio atrás, a Sociedade de Psilocibina do Oregon organizou um baile de gala a fim de levantar fundos para a campanha pela aprovação da Medida 109 nas eleições norte-americanas de 2020. A medida foi aprovada pela maioria dos eleitores e transformada na Lei dos Serviços de Psilocibina do Oregon, segundo a qual as autoridades de saúde deveriam detalhar a regulamentação do uso terapêutico dos cogumelos em um prazo de dois anos – até este mês de dezembro. Em janeiro próximo a lei entra em vigor.
A psicodelia, que floresceu nos anos 1960, vive hoje um renascimento. Mas está ressurgindo com um viés medicalizado, apoiada em estudos clínicos necessários para convencer a FDA, a Anvisa norte-americana, a autorizar as substâncias. A nova legislação é uma alternativa a essa abordagem médica. Nas palavras do terapeuta Tom Eckert, fundador da Sociedade de Psilocibina do Oregon, a lei vai em direção a “um modelo mais humanista e holístico, que se orienta para nossos recursos internos, nossa capacidade inata para crescer, amadurecer e transcender, reconectar-se com algo maior que nós mesmos, reconhecendo nossas energias internas de cura”.
A inédita proposta legislativa se norteia por três princípios nem sempre fáceis de conciliar: acessibilidade, segurança e equidade. Para assegurar a primeira condição, maiores de 21 anos que quiserem usar cogumelos da espécie P. cubensis no Oregon, a partir de 2023, não precisarão de médicos ou psicólogos profissionais. A pessoa poderá procurar um centro de serviço credenciado pelo governo estadual, onde um facilitador licenciado ficará encarregado das três sessões exigidas. A sessão inicial é de preparação, para conhecer os propósitos do cliente, avaliar se a psilocibina pode atendê-lo e informar o que pode ocorrer durante o efeito psicodélico. A segunda consiste na dosagem e na jornada psicodélica propriamente dita, que pode durar seis horas, acompanhada pelo facilitador. Por fim, chega-se à sessão de integração, na qual a pessoa que ingeriu a psilocibina fala sobre a experiência vivida e os conteúdos psíquicos que ela tenha feito emergir. As sessões ocorrem em dias diferentes.
Esse esquema de atendimento se sedimentou ao longo de décadas de utilização de psicodélicos em terapia, antes de eles serem proibidos. Em seguida, os procedimentos mergulharam na informalidade, pelas mãos de terapeutas naturais e neoxamãs. No caso dos cogumelos, eles são consumidos via oral, por exemplo, misturados in natura com comida ou sucos, ou então mascados secos e inteiros, ou ainda transformados em pó dentro de cápsulas (como os produtos que se encontram à venda pela internet no Brasil).
Quando oferecidos por curandeiros, naturopatas e outros terapeutas alternativos, pode haver algum ritual ou preces durante a ingestão, em geral num recinto decorado com ornamentos de povos tradicionais, orientais ou ameríndios, por vezes com efígies de entes sagrados – santos católicos, deuses indianos, orixás africanos etc., a depender do grau de sincretismo de quem oferece a droga. Quase sempre há música, ambiente ou em fones de ouvido, e o viajante – ou psiconauta, como se diz – fica deitado ou recostado entre almofadas e tapeçarias.
Para quem toma cogumelos e similares por conta própria, recomenda-se que o faça perto da natureza, na companhia de pessoas em quem confia, de preferência com alguém no grupo que permaneça sóbrio, para tomar providências caso um dos presentes passe mal (dores de cabeça, náuseas e tonturas são comuns, mas passam rápido; surtos psicóticos são muito raros, mas podem acontecer, por isso não é prudente usar psicodélicos quando se tem histórico pessoal ou familiar de psicose).
Essas práticas consagradas inspiram o modelo do Oregon. O texto aprovado evita de maneira proposital termos como “psicoterapia”, “tratamento”, “paciente” ou “clínica”. Na falta dos procedimentos consagrados em contextos clínicos, a segurança será garantida pela estrita regulamentação dos serviços de psilocibina e pela supervisão do poder público, como defendem os proponentes da Medida 109. Há outras exigências, como a de que o facilitador licenciado deverá ter no mínimo o ensino médio e só poderá exercer o trabalho depois de um curso de 120 horas e de 40 horas de estágio prático. Os centros de serviço, os produtores de cogumelos e os laboratórios de teste da pureza dos fungos precisarão todos ser vistoriados para obtenção de licença. E só a espécie P. cubensis está autorizada, para facilitar a fiscalização, devendo ser consumida em sua forma natural – não se poderá utilizar a psilocibina sintética, apenas cogumelos desidratados ou pulverizados em cápsulas.
Alguém pode objetar que a produção artificial do psicodélico, realizada desde 1958, seria mais segura e fácil de controlar que um organismo natural. Mas o terceiro princípio da Medida 109 – a “equidade” – parte da ideia de que é injusto alijar da atividade nascente todos aqueles curandeiros, xamãs ou neoxamãs urbanos e terapeutas alternativos que mantiveram vivos os cogumelos e seus usos em rituais clandestinos durante meio século de proibição nos Estados Unidos e boa parte do mundo.
Além disso, pretende-se que as pessoas possam consumir os cogumelos em ambientes mais acolhedores do que clínicas e hospitais, de modo a ter uma experiência mental profunda, seja ela prazerosa ou não. O produto natural estaria também em maior consonância com as tradições de raízes indígenas. “A psilocibina não é só mais uma droga farmacêutica, não é só um novo antidepressivo chegando ao mercado”, disse Tom Eckert na Horizons. “Nós a vemos pela lente do que de fato é: um medicamento antigo, existencial, espiritual.”
Na reunião festiva, enquanto tocavam as flautas, comiam cogumelos. Não ingeriam outra comida; durante toda a noite só bebiam chocolate. Comiam os cogumelos com mel. Quando os cogumelos começaram a fazer efeito, se dançou e se chorou… Uns viam em suas visões como morriam na guerra… Outros, como os devoravam as feras ferozes… Os terceiros, que enriqueciam e podiam comprar escravos… Os quartos, como cometiam adultérios e em seguida eram apedrejados e lhes partiam os crânios… Os quintos, como se afogavam na água… Os sextos, como encontravam a paz na morte… Outros mais, como caíam do telhado e morriam. Todas essas coisas eles viam. Quando o efeito dos cogumelos diminuiu, reuniram-se e narraram uns aos outros o que tinham visto em suas visões.”
Esse é um dos registros mais antigos da ingestão de teonanacatl, o alimento dos deuses em náuatle (língua da família asteca), hoje mais conhecido como “cogumelos mágicos”, do gênero Psilocybe (existem centenas de espécies contendo psilocibina, inclusive em outros gêneros). O registro foi incluído pelo frade franciscano Bernardino de Sahagún em sua Historia General de las Cosas de Nueva España, escrita em sua forma final entre 1575 e 1577, sobre a região do atual México. Combatido pela Igreja Católica como coisa do demônio, o hábito de consumi-los sobreviveu entre povos indígenas, como os mazatecas, mas envolto em tanto segredo que o costume chegou a ser dado como extinto. Em 1938, os antropólogos Robert J. Weitlaner e Jean Bassett Johnson e o botânico Richard Evans Schultes – o primeiro austríaco e os outros dois norte-americanos – documentaram o uso em rituais sem nunca experimentar seus efeitos.
As visões fantásticas mediadas pela psilocibina só viriam a ser apresentadas para o público e a ciência dos Estados Unidos duas décadas depois, por uma pediatra e um banqueiro. Valentina Pavlovna Wasson, nascida na Rússia, e seu marido, Robert Gordon Wasson, jornalista e vice-presidente de relações públicas do banco J. P. Morgan, eram micologistas amadores, como se chamam os estudiosos de fungos. Seguindo a pista de rituais observados pelos estudantes de Johnson na região da cidade de Huautla de Jiménez, no estado mexicano de Oaxaca, o casal esteve na comunidade mazateca pela primeira vez em 1953.
Com ajuda da missionária Eunice V. Pike, conhecedora da língua local, os dois foram ganhando a confiança dos habitantes para obter informações sobre os cogumelos, considerados sagrados porque teriam brotado do sangue de Jesus Cristo pingando sobre a Terra. O fungo transportava curandeiros a outros domínios de realidade nas cerimônias de consulta, em que moradores pagavam para obter conselhos e predições. Wasson só conseguiu participar de um ritual em junho de 1955, na companhia do fotógrafo Allan Richardson, quando se tornaram provavelmente os primeiros brancos a comungar o teonanacatl.
As experiências e descobertas do casal Wasson foram comunicadas ao mundo em três publicações pioneiras de 1957: uma reportagem para a revista Life sob o título Em Busca dos Cogumelos Mágicos, o livro Mushrooms, Russia and History (Cogumelos, Rússia e história) e um artigo científico do professor francês de micologia Roger Heim, no qual o fungo foi identificado como Psilocybe mexicana.
Heim procurou ajuda de químicos para isolar o princípio ativo e teve sucesso com o químico suíço Albert Hofmann, do laboratório Sandoz, que em 1938 sintetizara o LSD e, cinco anos depois, realizara a primeira viagem intencional com o ácido lisérgico. Hofmann, além de repetir o autoexperimento, recorrendo a 2,4 dos 100 gramas de fungos recebidos de Heim, estabeleceu as fórmulas e vias de síntese dos princípios ativos psilocibina e psilocina, publicadas em 1958. Nos anos seguintes, o laboratório fabricaria o composto sob o nome de Indocybin.
“Assim, com o isolamento e a síntese dos princípios ativos, realizou-se a desmistificação dos cogumelos mágicos”, escreveu o químico suíço em seu livro LSD: Mein Sorgenkind (LSD: Meu filho problemático), de 1979. “Os compostos cujos efeitos maravilhosos levaram os índios a acreditar por milênios que um deus residia nos cogumelos tiveram suas estruturas químicas elucidadas e podiam ser produzidos sinteticamente em frascos.” Em 1962, Hofmann viajou para Huautla com Wasson e participou de uma cerimônia com María Sabina Magdalena García, a curandeira que sete anos antes abrira as portas do teonanacatl para o banqueiro norte-americano. Em lugar dos cogumelos in natura, tomaram pílulas de Indocybin. Reza a lenda que María Sabina teria dito sobre a droga sintética, confirmando seu poder: Hay espíritu. A frase, entretanto, não aparece no livro do químico.
Hofmann conta que o anúncio dos cogumelos mágicos para o mundo, muito além da Serra Mazateca, desencadeou uma onda de visitantes a Huautla, que se tornou uma meca hippie. Em 1960, numa viagem de férias ao México, um psicólogo da Universidade Harvard experimentou os fungos Psilocybe: Timothy Leary, que se tornaria o guru do LSD e da contracultura. O turismo conturbou o povoado, e a comercialização em torno dos cogumelos, segundo outros curanderos, roubou-lhes o espírito divino. María Sabina foi responsabilizada pela invasão e pela perturbação da vida comunitária. Sua casa foi incendiada. Morreu desnutrida, na miséria, em 1985.
N
a origem da campanha em prol da liberação do cogumelo no Oregon está outro casal: Tom e Sheri Eckert, ambos terapeutas em Portland, a maior cidade do estado. Estrela da Horizons, Tom contou no encontro deste ano como ele e a mulher lançaram a iniciativa, desafiando meio século de proibicionismo da guerra às drogas, declarada em 1971 pelo presidente Richard Nixon. Em 2016, eles fundaram a Sociedade de Psilocibina do Oregon e esboçaram os primeiros rascunhos da proposta legislativa que se chamaria Medida 109. “Mas Sheri e eu ficamos uma semana indecisos sobre ir em frente. Percebemos que só haveria uma coisa a fazer, claro, consultar os cogumelos”, relembrou Tom, entre risos da plateia.
O casal foi acampar nas florestas de coníferas milenares do Oregon, e os mestres dourados se apresentaram. “Nos estágios finais daquela viagem poderosa, Sheri e eu, sentados em lados opostos da fogueira, nos olhamos, e nossas mentes conceberam”, ele contou. Ficou quieto por um tempo, com a mente expandida para o que lhe parecia ser mil anos de amplidão. Pensou que historiadores do futuro olhariam para trás, nessa dobra do tempo, e se perguntou o que estudiosos milhares de anos à frente achariam de nossa civilização. Sentiu que não atentariam para nossas políticas, mas para o estado de nossas consciências, a perda de conexão com nossas dimensões interiores. E percebeu que nada pareceria mais irritante a esses estudiosos do que a criminalização de meios seguros e eficazes para expandir e explorar a consciência.
Foi quando a voz de Sheri quebrou o silêncio: “Estamos grávidos.” Ele olhou para ela, intrigado. “Essa ideia será nosso bebê. Vamos cuidar dessa criança até que ela fique forte”, disse a terapeuta. “E agora, obviamente, há uma cidade inteira cuidando dessa criança”, arrematou Tom para a plateia da Horizons, recordando a máxima norte-americana segundo a qual é preciso uma aldeia inteira para criar uma criança. Foi a sua maneira de agradecer ao movimento que fez a ideia de psicodélicos para todos fincar pé no mundo, em um estado remoto dos Estados Unidos.
Sheri morreu devido a problemas cardíacos em 17 de dezembro de 2020, um mês e meio após a votação que consagrou a Medida 109, sua filha concebida numa noite luminosa na floresta. Coube a Tom manter a criança viva.
Oadministrador Nathan Howard juntou-se ao casal Eckert em 2019, quando a campanha para aprovar os serviços de psilocibina no Oregon já decolava, lastreada em 165 mil assinaturas para constar na cédula de votação. Ele trazia na bagagem experiência com campanhas políticas, depois de trabalhar para o prefeito Ted Wheeler, de Portland, em temas como defesa de aposentados, descarbonização da cidade e licença-paternidade. Antes, tinha fundado com o irmão uma empresa pioneira para cultivar variedades de cânhamo com baixo teor de THC (composto psicoativo da maconha), com as quais se produz o canabidiol (CBD) para uso medicinal, fonte de renda que o ajudou a pagar as anuidades do curso de administração pública na Universidade do Oregon, rompendo o círculo usual de pobreza na área periférica em que tinha crescido, no Leste de Portland. E foram os próprios cogumelos mágicos que o levaram ao caminho que dava na porta dos Eckert.
Em 17 de setembro, Howard, na condição de diretor da Fundação Sheri Eckert, subiu ao palco da Horizons de paletó e camisa social para apresentar o primeiro orador do dia, Earl Blumenauer. O deputado federal do Oregon perfilou-se como combatente na luta contra a fracassada guerra às drogas, “cruel e cínica”, e vaticinou: “Abre-se uma nova era no estado, com grande potencial de impacto. É uma fundação sobre a qual se pode construir.”
No dia seguinte, no encerramento da Horizons, Howard apareceu de longos cabelos arranjados num coque, bermuda marrom e camisa de cogumelos vermelhos e amarelos sobre fundo azul. E chamou a atenção vê-lo chegar ao edifício Mark em um Fiat 500 verde–água, com o minúsculo porta-malas abarrotado de comida libanesa e bebidas para o jantar de despedida da Horizons na casa de Tom Eckert. Era difícil imaginar que o jovem cabeludo havia sido uma das forças motrizes a propelir a Medida 109 ao sucesso.
Howard gosta de dizer que passou muito mais tempo morto do que vivo. É sua maneira de, aos 32 anos, assinalar a antiguidade da espécie humana e a pequenez de cada biografia. Em outras encarnações, se as teve, deve ter sido um camaleão. Perto de um viçoso pé de canábis, no jardim de sua casa, Howard contou à piauí dez dias antes que, em 2015, era conselheiro sênior para políticas públicas da campanha para prefeito de Wheeler e vivia com muita animação na época, embora bebesse pesadamente. “Em retrospecto, acho que estava me autodestruindo. Acabei me desentendendo com o chefe de gabinete”, disse. Entre o fim de 2018 e o começo de 2019, um de seus melhores amigos lhe apresentou o Psilocybe.
O dia do encontro com o cogumelo foi um dos mais impactantes de sua vida. Os fungos lhe mostraram quanto daquilo que estava fazendo era condicionado por ambição e histórias de sucesso. “Foi realmente muito dolorido, nada divertido.” No dia seguinte, se sentiu como nunca antes. Ficou claro para ele que tinha desenvolvido uma relação problemática com a política. Deixou a prefeitura, sem saber claramente o que iria fazer. Decidiu que só trabalharia com medicina de plantas e fungos e faria o que estivesse em seu alcance para aumentar o acesso a essas experiências. Quando ouviu falar de Tom e Sheri Eckert, enviou a eles um e-mail, se oferecendo para trabalhar como voluntário. “Acho que transmiti confiança.”
Conforme ia aprendendo sobre as limitações do modelo medicalizado dos psicodélicos, Howard se convencia de que as pessoas que lidavam com cogumelos na clandestinidade deveriam poder continuar com suas práticas curativas. Para ele, a própria ideia de uma planta ser ilegal por imposição do governo estava ligada a uma mentalidade proibicionista e colonial. Por outro lado, a legalização ou descriminalização total – aonde espera eventualmente chegar – lhe pareciam muito ameaçadoras para a ordem estabelecida. “Se exigíssemos terapeutas, só pessoas licenciadas [como médicos ou psicoterapeutas] no Oregon poderiam trabalhar com cogumelos. Só receberíamos um punhado de inscrições, porque o limiar de risco deles é mais alto, com seus custos de seguro etc. Começaria de maneira muito estreita, cara e inacessível.” Além disso, se o Oregon liberasse demais, geraria um monte de notícias negativas. “Embora estivéssemos seguros, um par de manchetes nos jornais poderia desencadear o retrocesso cultural. E muitos de nossos aliados diriam: ‘Esperem aí, não atrapalhem enquanto fazemos nossos testes clínicos para a FDA com psilocibina para depressão.”
Navegando entre os polos da liberação total e do controle excessivo, os Eckert, Howard e companheiros foram definindo os termos cautelosos da Medida 109, que afinal sairia vitoriosa no referendo de 2020. A vida do administrador daria uma guinada: ele ajudou a pôr de pé a Fundação Sheri Eckert, abriu com Tom Eckert a escola InnerTrek, da qual se tornou professor e diretor, e tomou com a mulher, a psiquiatra Leslie Wright–Howard, uma decisão: ter um filho.
O
temor dos proponentes da Medida 109 se baseava num precedente histórico. Muita gente entende os psicodélicos apenas como substâncias proibidas, os chamados “alucinógenos”, cujas viagens supostamente poderiam levar às piores tragédias (suicídios, acidentes) tal como descrevem as peças de propaganda da guerra às drogas. A campanha antidrogas ofuscou o fato histórico de que psilocibina, LSD e MDMA (metilenodioximetanfetamina, base da droga recreativa ecstasy) vêm despertando intenso interesse na psiquiatria e na psicoterapia desde os anos 1950.
A partir de 1947, o laboratório suíço Sandoz distribuiu centenas de milhares de doses do ácido lisérgico, em frascos rotulados como Delysid, para médicos e pesquisadores testarem em tratamentos experimentais. A prática só foi interrompida em 1966, quando o LSD caíra já nas graças do movimento hippie e passara a sofrer restrições da DEA. Pela mão dos psiquiatras e psicoterapeutas, o LSD foi empregado com algum sucesso contra alcoolismo, beneficiando milhares de pacientes, e também na chamada terapia psicolítica, como abertura para acesso a traumas e conteúdos inconscientes. O mesmo se fazia com a MDMA, então conhecida pelo nome Adam, até a proibição tardia pela DEA em 1985, após a droga se tornar popular em raves de música eletrônica.
Com a inclusão desses compostos no famoso Schedule 1 – rol de substâncias designadas pela DEA como perigosas, com suposto alto potencial para abuso e sem utilidade médica –, estudos com psicodélicos escassearam progressivamente na pesquisa acadêmica (hoje se sabe, com base na ciência, que substâncias como LSD, psilocibina e mescalina são bastante seguras e não causam dependência). Seguiram, porém, firmes e fortes no submundo das baladas e das terapias alternativas, e logo ressurgiriam na cena biomédica graças aos esforços de alguns militantes. Entre eles, o psicofarmacologista norte-americano Rick Doblin e a filantropa britânica Amanda Feilding, além de cientistas consagrados que não corriam mais o risco de ver sua carreira afundar sob o peso dos preconceitos de seus pares e financiadores, como David Nutt, do Imperial College de Londres, e Roland Griffiths, da Universidade Johns Hopkins.
Em 1986, Doblin fundou a Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, na sigla em inglês) com a meta de fazer com que o ecstasy se tornasse um medicamento autorizado. Trinta e seis anos e dezenas de milhões de dólares depois, angariados de fundações privadas e doadores individuais, Doblin está à frente dos testes clínicos de fase 3 que devem conduzir a droga à aprovação pela FDA, como adjuvante de psicoterapia para transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), decisão esperada para 2023 ou 2024. O TEPT aflige centenas de milhares de veteranos das frequentes guerras norte-americanas e pode estar associado a muitos dos dezessete suicídios diários de ex-combatentes nos Estados Unidos, o que põe tais estudos sob luz pública favorável até para olhos ultraconservadores.
Amanda Feilding, condessa de Wemyss e March, criou em 1998 no Reino Unido a Fundação Beckley para defender a reforma de políticas proibicionistas de drogas e a reabilitação de psicodélicos como remédios ou “vitaminas da mente”, na ótica dessa defensora do LSD. Ela encontrou em David Nutt um parceiro para deslanchar os primeiros estudos com imagens de ressonância magnética funcional de cérebros humanos sob efeito do ácido lisérgico e da psilocibina.
Entre os jovens pesquisadores recrutados por eles estava o psicofarmacologista Robin Carhart-Harris, que liderou no Imperial College um estudo de psilocibina para tratar depressão resistente aos tratamentos atuais. O estudo ganhou em 2016 as páginas do periódico médico Lancet, manchetes na imprensa leiga e, dois anos depois, virou um documentário sintomaticamente intitulado Magic Medicine (Medicina mágica). Os bons resultados imediatos se baseavam no acompanhamento de meros doze voluntários, por apenas três meses. Mas foi o quanto bastou para o estudo projetar Carhart–Harris como celebridade do renascimento psicodélico. O Imperial College anunciou um centro de estudos psicodélicos, mas o pesquisador, um prolífico autor de artigos científicos, alguns controversos, terminou contratado pela Universidade da Califórnia em São Francisco.
No outro lado do Atlântico, Griffiths pesquisava psilocibina desde a virada do século XXI. Em 2006, publicou um artigo que chamou a atenção sobre experiências místicas desencadeadas em 36 participantes pelo psicoativo dos cogumelos (ou uma substância inócua, no grupo de controle). Eles recebiam os cogumelos (ou placebo) em duas ou três sessões alternadas, e dois meses depois relatavam ter passado por experiências de significado pessoal e espiritual, com impacto positivo em atitudes e comportamentos. Era como que uma retomada do polêmico Experimento da Sexta-Feira Santa, realizado por Timothy Leary com estudantes de teologia em 1962, em que os agraciados com psilocibina se exaltaram em transes místicos na Capela Marsh, em Boston, enquanto os que tomaram placebo os observavam atônitos.
Quem já fez uso da psilocibina entende facilmente que pessoas com inclinação religiosa enquadrem como vivência mística a percepção de participar de uma unidade muito maior que o ego, na medida em que esse se fragmenta e enfraquece sob o efeito da droga. Ou então que as visões obtidas depois de ingerir a substância correspondam a luzes divinas e entidades sagradas, como santas e santos, ou espíritos e orixás. Essas pessoas costumam manifestar também sentimentos intensos de compaixão, empatia e aceitação, inclusive voltados à própria pessoa do psiconauta. Isso levou Griffiths e seu pupilo Matthew W. Johnson a repetir num estudo de 2016, agora com controle mais rigoroso por grupo de placebo, experimentos dos anos 1960 e 1970 com pacientes de câncer terminal, com uma considerável redução de ansiedade e depressão diante da perspectiva da morte (em outubro passado, na conferência tradicional da Horizons em Nova York, Griffiths revelou que está com câncer de cólon em estágio 4, o mais grave). Estudo similar realizado pelo psiquiatra Stephen Ross na Universidade de Nova York foi publicado também em 2016.
A renascença psicodélica já ia a todo vapor. Dezenas de estudos estavam em andamento, inclusive no Brasil. Em 2018, saiu a versão digital de trabalho do grupo do físico e neurocientista Dráulio Barros de Araújo, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), demonstrando, também com placebo, a eficácia imediata da N,N-dimetiltriptamina (DMT), uma das substâncias psicoativas do chá ritual ayahuasca, na redução de escores de depressão em pacientes com resistência a tratamento (o de Carhart-Harris com psilocibina, dois anos antes, não contara com esse tipo de controle).
No cenário internacional, entretanto, a psilocibina, ao lado da MDMA, era a vedete dos ensaios clínicos. Os resultados promissores – todos preliminares, porque ainda calçados em grupos diminutos de pacientes – despertaram a atenção de investidores, que se lançaram numa corrida por propriedade intelectual sobre aplicações de psicodélicos.
O movimento mais agressivo de apropriação partiu da britânica Compass Pathways, da médica Ekaterina Malievskaia e seu marido, o empresário George Goldsmith. Em 2021, a empresa levantou 225 milhões de dólares numa oferta pública inicial de ações para financiar testes clínicos de fase 3 com psilocibina para depressão, além de depositar vários pedidos de patente sobre a sua versão (COMP360) da substância usada há séculos, talvez milênios, pelos mazatecas. No último dia 3 de novembro, Malievskaia publicou no prestigiado periódico The New England Journal of Medicine o maior ensaio clínico dessa droga para deprimidos, ainda na fase 2, com 233 pacientes e resultados positivos em 29% dos que tomaram uma dose cheia de psilocibina sintética em cápsulas.
A investida da Compass nas patentes causou revolta entre defensores tradicionais de psicodélicos, como o empresário e influenciador Timothy Ferriss e os empresários David Bronner (da marca de produtos naturais de higiene Dr. Bronner’s) e William Linton (dos insumos biomédicos Promega). Linton fundou o Instituto Usona, que concorre com a Compass noutro ensaio clínico com psilocibina para depressão, e ajudou a lançar o site Porta Sophia para reunir a literatura e o conhecimento prévio sobre psicodélicos e suas aplicações, com o propósito de evitar que órgãos oficiais registrassem patentes do que já se encontra em domínio público (apesar disso, a Compass teve concedidas duas patentes para COMP360).
A Compass sustenta que, sem o aporte bilionário de capital garantido pela propriedade intelectual para realizar testes exigidos pela FDA, psicodélicos demorarão a ser aprovados e cobertos por seguros de saúde. Contra esse modelo de negócios se insurgiram em Oregon os proponentes da Medida 109, que enxergam os serviços de psilocibina como uma maneira de dar acesso precoce a quem precisa do composto, independente da recomendação de médicos ou psicoterapeutas.
Há muitas pedras no caminho, contudo, como reconhece Nathan Howard. “Acho que no fim vai dar certo, só não sei se em 2 anos, 20 anos ou 2 mil anos”, disse ele. “Vou ficar muito surpreso se fizermos tudo corretamente e chegarmos a plantas e fungos medicinais liberados ainda durante meu tempo de vida, mas não me incomoda pensar que talvez seja só para meus netos. Minha vida é apenas um pequeno bip.”
A
pós a morte de sua mulher, Tom Eckert seguiu em frente. Com a entrada em vigor da Lei de Serviços de Psilocibina, em 2021, ele passou a presidir o conselho consultivo criado pela Autoridade de Saúde do Oregon (OHA, na sigla em inglês) com a missão de detalhar as regras para implementar os locais destinados a administrar os cogumelos. Criou a fundação em homenagem à mulher, Sheri, com o propósito de levantar fundos para subsidiar a formação de facilitadores, e a escola InnerTrek, para oferecer os cursos de 120 horas requeridos no licenciamento. Não demorou a ser acusado de conflito de interesses, na medida em que coordenava os trabalhos para definir regras que poderiam beneficiar ou prejudicar sua escola. Em março de 2022, sob pressão, ele renunciou ao cargo para se dedicar só à fundação e ao curso.
Um dos pontos nevrálgicos nas discussões do conselho consultivo sempre foi o dilema entre segurança e acessibilidade: quanto mais regras e exigências para proteger o cliente, mais caros os serviços tendem a se tornar. O curso da InnerTrek custará 7,9 mil dólares, e o candidato a facilitador ainda precisará desembolsar 2 mil dólares para sua licença pessoal e mais 10 mil dólares se buscar autorização para abrir seu próprio centro de serviços com cogumelos. Tudo somado dá mais de 100 mil reais. São custos proibitivos para muitos interessados em se estabelecer legalmente no ramo, depois de atuar na clandestinidade como terapeutas informais. Os empreendedores de olho em montar uma unidade produtora de cogumelos P. cubensis ou um laboratório para verificar a pureza do produto com testes de DNA também deverão arcar com taxas de 10 mil dólares para cada estabelecimento.
Estima-se que um procedimento completo com psilocibina – pelo menos aquelas três sessões, de preparação, dosagem e integração – vá custar cerca de 1,5 mil dólares, cerca de 8 mil reais, quantia comparável ao que ganha por mês um norte-americano empregado pelo salário mínimo de 7,25 dólares por hora. Além disso, o serviço não contaria com a cobertura de seguros de saúde, pois a droga permanece proibida no plano federal.
Diante de custos proibitivos, a Fundação Sheri Eckert planeja dar bolsas de 5 mil dólares para pessoas de baixa renda interessadas no curso da InnerTrek. Outras iniciativas surgiram, como o Sequoia Center, estabelecido em Portland com doações de filantropos preocupados com o acesso aos serviços de psilocibina, em especial para minorias raciais e LGBTQIA+. Por ora, enquanto se finaliza o regulamento detalhado, o Sequoia oferece sessões de cetamina, anestésico de uso antigo que também provoca dissociação mental e vem sendo usado para tratar casos graves de depressão.
A psicóloga clínica Alissa Bazinet, fundadora do Sequoia com o psicoterapeuta Brian Hannah, mudou-se jovem para Seattle e depois Portland, cidades mais progressistas que o meio rural onde nasceu há 41 anos, no vizinho estado de Washington, ao Norte. “O Oregon é um lugar muito idealista, visionário. Gostamos de correr riscos”, diz, em seu consultório no Sequoia. Ela fez doutorado na Universidade da Califórnia, em San Diego, e passou uma década lidando com saúde mental de veteranos. Hoje também integra um dos subcomitês do conselho consultivo da OHA, a autoridade de saúde do estado, e dá aulas de ética no Earth Medicine Center, cujo website descreve a instituição como “um corpo docente diverso e multigeracional, composto por membros negros, indígenas, chicanos, latinos, queer, não binários e não conformes que entendem e valorizam a intersecção de ciência ocidental com sabedoria indígena”.
Bazinet se aproximou da campanha da Medida 109 atraída pelo potencial da psilocibina para ajudar ex-combatentes e pelo “idealismo” do casal Eckert. “Francamente, não esperava que a medida fosse passar. Fui à casa deles na noite da eleição de 2020, muito tensa, e quando vimos os resultados projetados no telão, senti um nó na barriga, um sentimento arrasador de que era cedo demais”, ela conta. “Sheri, que eu conhecia há pouco tempo, veio até mim, pôs a mão no meu ombro, olhou-me nos olhos e disse: ‘Você vai ter muito trabalho para fazer.’”
A psicóloga atendeu ao chamado e pôs os serviços com cogumelos no centro de sua carreira. Envolvida até o pescoço com a implementação da Medida 109, ela se diz frustrada com alguns aspectos do processo de regulamentação. A começar pela ênfase dada, na campanha, ao potencial de tratamento para depressão, quando a filosofia de início era permitir o acesso aos cogumelos para quem está em busca de bem-estar, equilíbrio, autoconhecimento ou paz interior, não tanto de psicoterapia. Todo o esforço para dissociar o serviço de uma prática clínica não estaria funcionando. “O país inteiro acha que estamos fazendo isso, quando não estamos. É uma facada no coração”, diz ela, que recebe em média três e-mails por dia de pessoas com diagnósticos psiquiátricos interessadas em se tratar com psilocibina no Sequoia, a maioria de fora do Oregon, embora o centro ainda nem ofereça o serviço.
Quando oferecer, ela própria não poderá atuar como facilitadora. As normas até aqui acordadas estipulam separação rígida entre facilitação e terapia. Mesmo fazendo o curso preparatório, um psicólogo clínico não poderá tratar seu paciente de psicoterapia como cliente de psilocibina, nem vice-versa. Se a pessoa já for psicoterapeuta de alguém, ficará impedida de lhe dar cogumelos como tratamento, tendo de recorrer a um facilitador credenciado. “Não me parece ético estar com o cliente e dizer que estou operando como facilitadora de psilocibina e não posso atuar nesse momento como psicóloga clínica”, diz. “Sei que outros psicólogos licenciados estão pensando da mesma maneira.”
É o caso de Charles Jasper, psicoterapeuta de 70 anos que vinha trabalhando para oferecer legalmente uma gama de técnicas de ioga, meditação, respiração, canábis (que ele assegura ter efeito psicodélico em altas doses), psilocibina e cetamina para moldar tratamentos sob medida a seus pacientes, no que chama de terapia psicodélica somática. Ele transformou a sala de sua casa num trip room, o saguão do embarque psicodélico onde não faltam aparelho potente de som, tambores, ícones esotéricos e sinos de cristal. O porão da residência abriga um apartamento completo, que pode ser alugado por diárias abaixo de 100 dólares, uma pechincha para os padrões de Portland. (Foi ali que me hospedei durante a conferência. Nas nossas conversas, as únicas substâncias psicoativas que Jasper e eu consumimos foram a teína de folhas de chá e a teobromina do excelente chocolate chileno que serviu.)
Jasper está fazendo o curso da InnerTrek e pagou para comparecer à conferência Horizons. Saiu decepcionado das sessões dedicadas a esclarecer candidatos a facilitadores, proprietários de centros de serviço, de áreas de cultivo ou de laboratórios. Reclamou do excesso de burocracia, que provavelmente o impedirá de usar a psilocibina em sua própria casa–consultório, por força de regras de zoneamento. “E eu não poderei nem mesmo atuar como psicólogo enquanto estiver oferecendo o serviço”, reclama. “O modelo do Oregon não vai dar certo. É excessivamente regulado e caro. Quanto eu teria de cobrar pelas minhas sessões?” Por ora, ele decidiu deixar a psicoterapia assistida por psilocibina em banho-maria, até que a regulamentação no Oregon e no país fique mais clara.
A administradora Angie Albee, de 44 anos, trabalhou por uma década no terceiro setor com refugiados e vítimas de violência doméstica e sexual, e percebeu a necessidade aguda de alternativas para a cura de traumas. Hoje, é gerente da seção de Serviços de Psilocibina do Centro de Proteção da Saúde da OHA, e tem uma explicação para a perplexidade gerada pelas regras que limitam o “escopo de atendimento” dos serviços, dissociando-os de práticas psicoterapêuticas. Ela acha que a contrariedade dos psicólogos e psiquiatras com a interdição decorre da predominância cultural do modelo medicalizado e da distância que a Medida 109 tomou em relação a essa mentalidade, no sentido de conferir ao cliente mais autonomia do que se dá ao paciente de um psicoterapeuta ou psiquiatra. “Há muito a desaprender da tradição ocidental, como, em vez de conduzir, deixar que o cliente dirija sua jornada”, diz.
Albee acha que o novo modelo, não sendo médico nem clínico, reúne o conhecimento de atores no domínio científico, o da medicina ocidental, com séculos de sabedoria e conhecimento indígenas, abrindo espaço ainda para o mundo holístico e o que mais houver entre uma coisa e outra. Ela chama a atenção para o fato de que a ciência feita desde o fim dos anos 1990 com substâncias psicodélicas se baseia em ensaios clínicos e pesquisas acadêmicas. “Esse tipo de pesquisa e informação científica abriu o caminho para a Medida 109, mas não quero deixar de reconhecer o que as comunidades indígenas vinham praticando fora do contexto clínico por séculos”, argumenta.
De seu ponto de vista, a Medida 109 é interessante por magnetizar uma colaboração entre os campos médico, clínico, holístico e comunitário, e levá-los a perguntar se podem, juntos, fazer diferença na saúde e na vida das pessoas. “Quando se considera todo o sofrimento que há no mundo e as pessoas que estão em busca de opções diferentes, é muito claro que a 109 pode oferecer algum apoio para essa gente que quer experimentar”, diz. Para ela, o modelo do Oregon ainda pode coexistir com o modelo médico. No caso de diagnósticos complicados, em que a moldura da 109 não seja apropriada, o modelo clínico forneceria o apoio necessário.
A
pesar da legalização em escala estadual, os cogumelos ainda ficarão fora do alcance de parte da população do Oregon. Isso porque os propositores da medida incluíram no texto da Medida 109 uma cláusula permitindo que os condados adotem normas proibindo localmente os serviços de psilocibina legalizados no plano estadual – o chamado opt-out –, desde que o eleitorado votasse nesse sentido na eleição em novembro deste ano. Dos 36 condados do Oregon, 27 optaram por incluir essa consulta na cédula e agora, na votação de novembro, 25 deles decidiram pela não legalização. A psilocibina será, porém, acessível em doze condados do estado, onde estão as cidades mais populosas, como Portland, Salem (a capital) ou Eugene.
A concessão do opt-out foi uma maneira de arrefecer a resistência conservadora à Medida 109. É também fruto do aprendizado acumulado com a experiência de descriminalização da maconha medicinal ou recreativa, hoje uma realidade em 38 dos 50 estados norte-americanos – governos locais podem escolher banir a oferta em sua área, mas não recriminalizar o uso da canábis. Também a Medida 110, como a 109 aprovada há dois anos no Oregon, exclui penas de prisão e só prevê multas modestas para quem for pego com pequenas quantidades de qualquer substância, inclusive cocaína, metanfetamina e heroína.
Uma frase repetida na Horizons afirmava que o mundo está de olho no Oregon. De fato, os participantes da conferência queriam dizer que os estados mais progressistas dos Estados Unidos andam observando com atenção tudo que se passa no estado. A expectativa nem sempre enunciada é ver repetir-se o que aconteceu com a maconha medicinal, cuja legalização em 1996 na Califórnia acabou sendo adotada em outros estados (21 deles, hoje, autorizam também o uso adulto, dito “recreativo”, sem necessidade de prescrição médica).
No Colorado, os eleitores seguiram o precedente do Oregon e decidiram em 8 de novembro aprovar a Proposta 122, que legaliza “centros de cura” com psilocibina, mas com duas diferenças: deixando aberta a possibilidade de estender a liberalização a outros psicodélicos em 2026 e não incluindo a cláusula que permite aos condados desistirem da medida (opt–out). Em Washington – estado vizinho do Oregon – tramita no Legislativo o projeto de lei nº 5660, do Senado estadual, para autorizar serviços de psilocibina. Várias cidades norte-americanas já caminharam na direção de regulamentar, descriminalizar ou despenalizar o uso adulto de psicodélicos, como Oakland, São Francisco e Santa Cruz (Califórnia), Denver (Colorado), Cambridge (Massachusetts), Detroit e Ann Arbor (Michigan), Seattle (Washington) e mesmo a capital federal, Washington, D.C.
Não está claro, ainda, se o recuo da maré proibicionista sinaliza a chegada de um tsunami psicodélico nos Estados Unidos ou apenas uma oscilação de baixo impacto. No plano federal, o governo do democrata Joe Biden emite sinais de fumaça liberalizante, como na decisão anunciada em outubro de perdoar alguns milhares de prisioneiros federais pela posse de maconha. Também vale mencionar o vazamento da correspondência de uma burocrata da área de saúde enviada a Madeleine Dean, deputada democrata da Pensilvânia, que mencionava a possibilidade de uma força-tarefa federal sobre terapias psicodélicas, em preparação para a prevista licença da FDA para MDMA e psilocibina. Propostas nessa área não têm obtido tração no Congresso.
Há vários obstáculos no caminho que podem descarrilar as iniciativas psicodélicas. Fala-se muito da atenção excessiva despertada pelo vagalhão de reportagens, documentários, podcasts e séries de tevê sobre estudos que, na maioria, são ensaios clínicos com poucas dezenas de voluntários. Para complicar, pesquisas clínicas com psicodélicos padecem de uma deficiência estrutural no que respeita ao controle por placebo. Como o efeito subjetivo da substância é óbvio, pela alteração profunda da consciência e do comportamento, quase sempre o participante voluntário e o cientista experimentador sabem qual droga foi usada, bagunçando o sistema duplo-cego, em que os dois lados deveriam ignorar quem recebeu a substância em teste e quem recebeu placebo.
O efeito psicodélico é inconfundível até para quem nunca tomou uma substância alteradora da consciência. Como nos testes cegos de vinho, a ideia aqui é minimizar o enviesamento dos resultados que possa ser causado por influência das expectativas dos envolvidos (ainda que tomando drogas inócuas, é comum pessoas mostrarem melhora de sintomas). Mesmo em testes de fase 3, com várias centenas de pacientes, essa deficiência poderá pesar quando chegar a hora de a FDA decidir sobre a autorização desses tratamentos.
A responsabilidade pelo excesso de holofotes costuma ser atribuída aos suspeitos de sempre, a imprensa e os jornalistas, pela receptividade quase sensacionalista com que noticiam, aqui e ali, ensaios de baixa potência estatística. Em defesa dos jornalistas, pode-se argumentar que são os periódicos científicos que acolhem e promovem esses artigos com critérios rebaixados de qualidade. Na revista Psychological Medicine de 19 de outubro, o especialista em ética e políticas públicas sobre drogas Wayne D. Hall, do Centro Nacional de Pesquisa sobre Uso de Substâncias na Juventude da Universidade de Queensland, em Brisbane (Austrália), e o psicólogo Keith Humphreys, da área de ciências psiquiátricas e comportamentais da Universidade Stanford, em Palo Alto, criticam especificamente artigos de Robin Carhart-Harris em periódicos de alto impacto, como The New England Journal of Medicine e Nature Medicine. Em sua avaliação, os trabalhos não satisfazem os padrões normalmente exigidos por seus editores. Assinados pelo neurocientista célebre, os estudos granjearam ampla cobertura jornalística.
Outro sintoma de que o entusiasmo com psicodélicos talvez seja uma febre infecciosa em vias de ceder aos anticorpos da publicidade aparece na crise das startups, empresas que surgiram às dezenas para amealhar capital de risco com meras promessas de benefícios e patentes para tratar, além de depressão, estresse pós-traumático e dependência química, várias outras patologias, como anorexia, TOC, enxaqueca e danos cerebrais em atletas. Até Alzheimer e Parkinson já apareceram na lista. Um índice de ações de companhias do ramo, Psychedelic Invest Index, chegou a marcar mais de 100 pontos no primeiro semestre de 2021 e, a partir daí, declinou. Em 2022, não ultrapassou 50. O mercado passa por uma onda de fusões, fechamentos e compras das empresas em dificuldades na praça.
Essa turbulência pode representar o retorno ao leito natural de uma torrente que não estancou, mas há quem tema um revertério na opinião pública até aqui favorável, caso se avolumem notícias negativas. Ganhou destaque um episódio de abuso sexual ocorrido no Canadá com uma voluntária do teste clínico de MDMA. Não é improvável que outros surjam, dado que o paciente fica horas em situação de alta vulnerabilidade, da qual já se aproveitaram alguns xamãs que atendem turistas, terapeutas psicodélicos e gurus que usam ayahuasca.
Persiste, sem solução prática à vista, a questão espinhosa do reconhecimento e da compensação do saber acumulado por povos tradicionais sobre o uso de substâncias poderosas presentes em fungos e plantas. Uma das raras novidades na área, ainda em escala pequena, é a Iniciativa de Reciprocidade Indígena lançada em 2021 pelo Instituto Chacruna, uma ONG dirigida pela antropóloga brasileira Beatriz Labate, em São Francisco. O programa encoraja grandes financiadores de projetos psicodélicos a doar uma parte dos fundos para duas dezenas de organizações de base nas Américas, desde o Brasil até os Estados Unidos, e já angariou para elas mais de 100 mil dólares.
Até aqui, o renascimento psicodélico tem sido um empreendimento da ciência estabelecida e do capitalismo inovador que busca recuperar para a medicina o conhecimento acadêmico acumulado por décadas, antes da guerra às drogas, e por séculos ou milênios nas aldeias e florestas. O modelo do Oregon almeja abrir canais para que mais pessoas, como clientes ou facilitadores, tenham acesso aos benefícios dessas técnicas de cura e autoconhecimento. A equidade pretendida, entretanto, ainda parece a quadratura de um círculo impossível de resolver com a régua do capital e o compasso da pesquisa. A questão foi bem resumida pelo advogado e ativista Jon Dennis, na conferência Horizons, depois de lembrar que vivem na pobreza mais de 500 mil dos 4,2 milhões de habitantes do estado pioneiro: “Se à [curandeira] María Sabina não fosse permitido conduzir cerimônias no Oregon, ou ela tivesse que pagar para participar delas, a iniquidade com certeza continuaria se perpetuando.”
Os 4 gramas de cogumelos Psilocybe cubensis desidratados que ingeri logo após o meio-dia começaram a fazer efeito mais rápida e intensamente do que estava acostumado com as doses menores já experimentadas, de 2 gramas. Foi preciso abortar, após meros quinze minutos, o plano de caminhar meia hora pelo condomínio na Serra da Mantiqueira, pois o coração já começava a bater mais rápido, a cabeça se esvaziava e as cores assumiam tons cada vez mais irreais. Não foi fácil subir a rampa do terreno, pisando em bloquetes que começavam a dançar e a pulsar diante dos olhos, com os rejuntes de areia se transformando em filetes de arco-íris.
O meu propósito era buscar respostas para algumas questões pessoais e profissionais prementes, não fazer um relato jornalístico, e também ultrapassar a rebentação, como diz metaforicamente um amigo neurocientista, e lançar-me ao mar. Como acontece em muitas experiências psicodélicas, o que veio não foram as respostas esperadas, mas oito horas de uma jornada oceânica, tempestuosa, até que eu voltasse a bom porto.
Nunca tinha vivenciado algo tão intenso. Capturado no turbilhão, em certa altura abri os olhos decidido a vomitar, na expectativa de interromper o efeito avassalador, mas a casa se transformara numa sucessão de vidraças iridescentes, em que os contornos dos objetos se decompunham em cores várias, como se tudo de concreto existisse no interior de um prisma. A mão direita estendida à frente servia para assegurar que sucessivas vidraças podiam ser transpostas. Por duas vezes ajoelhei diante do vaso sanitário, mas a golfada não veio; em seu lugar, um jorro avassalador de aceitação e entrega, abraçado sobre a cerâmica branca e fria que alternava entre negror e cascatas coloridas.
“Vou me render”, avisei. A partir daí, a despersonalização só não foi completa porque a ela sobrevivia um olho da mente que tudo observava, intrigado. Era a dissolução do ego de que falam neurocientistas, o relaxamento de um esquema de interação entre áreas do cérebro, a chamada rede de modo padrão, muito ativo durante a introspecção, quando a pessoa não está envolvida em tarefa alguma. Na depressão, a rede fica turbinada e leva à ruminação, circularidade de pensamentos negativos que pode desembocar em ideações suicidas. Desatarraxada por psicodélicos como a psilocibina, outros setores cerebrais entram na conversa e surgem brechas no ciclo vicioso, permitindo que aflorem novos pensamentos sobre traumas e dores do passado. A flexibilidade reconquistada, acredita-se, estaria por trás do efeito terapêutico, mediada pela formação de novas conexões entre neurônios (neuroplasticidade).
A dissolução do ego também se acompanha de um sentimento de comunhão com um todo maior que a pessoa, com a natureza e a humanidade, e não raro assume tonalidades místicas, quando o psiconauta vê, incorpora ou se sente na presença de seres divinos. Mesmo um ateu obstinado pode chegar ao limiar de uma experiência mediúnica, como ocorreu comigo naquela tarde de domingo, em que me fundi com a figura de São Francisco de Assis. Passadas duas ou três horas, teve início a descida progressiva do efeito psicodélico, marcada pela necessidade imperiosa de falar sobre a viagem e por um aguçamento extremo dos sentidos, das emoções e da atenção. Uma simples refeição abre torrentes de prazer; a mera lembrança de um jovem querido em luta com o crack faz jorrarem lágrimas de compaixão; canções do R.E.M. desencadeiam a urgência de dançar pela sala; um passeio pelo jardim reabre os olhos curiosos da criança que sobrevive em cada um de nós.
As respostas buscadas não se apresentaram. Viagens psicodélicas são imprevisíveis, nunca óbvias. Em contrapartida, sobrevieram dias seguidos de paz, determinação e tolerância com os perrengues do cotidiano que, na prática, desalojaram as perguntas para dar lugar ao ímpeto vital de criar, crescer e amar. Não foi cura porque não havia doença, mas, em outro sentido, foi também uma cura. Todas as pessoas, doentes ou não, deveriam ter o direito e a oportunidade de visitar terras sem males na companhia dos mestres dourados de María Sabina e do casal Tom e Sheri Eckert.