Ela reconheceu no envelope a letra de Maria Laura; sentiu na carta o perfume que tão bem conhecia. Somada aos problemas nos negócios, a evidência da traição o deixou à beira da catatonia
Coitado do tio Juquinha
Uma vida infeliz e o assassinato do pintor Almeida Júnior
Luiz Gastão Paes de Barros Leães | Edição 86, Novembro 2013
Ainda estava escuro quando, na manhã de 11 de novembro de 1899, ele deixou o sítio onde morava para pegar, na estação de Rio das Pedras, no interior de São Paulo, o trem com destino à capital. Pretendia uma vez mais se entender com os credores hipotecários, comissários de café em Santos, a fim de ver se deles obtinha prorrogação de prazo para o pagamento da dívida. Há meses sentia a catástrofe se aproximar: a formação da lavoura de café, que tantos anos de trabalho lhe custara, estava condenada ao fracasso. Suas noites eram só insônia e desespero.
José de Almeida Sampaio, o Juquinha, era conterrâneo, primo e amicíssimo de José Ferraz de Almeida Júnior, e muito o ajudara quando este último retornou do estrangeiro e se instalou em Itu, antes de se transferir para São Paulo. Quando ia à capital, Juquinha frequentava a casa do primo, a quem pedira que acolhesse seu filho Renato. Desta vez, porém, não imaginava encontrá-lo em seu estúdio, na rua da Glória, nº 74, onde costumeiramente se alojava. O cunhado Ladislau lhe informara que o pintor havia se ausentado; deixara o menino a seus cuidados, encarregado de comunicar ao pai que abandonara a capital em razão da peste bubônica que se alastrava na cidade; dirigira-se à fazenda Boa Esperança, onde pretendia demorar-se um dia em visita à família de Juca, para depois partir para São Pedro, onde almejava permanecer por um tempo.
Juca gostava da companhia do primo famoso, onze anos mais velho que ele, então com 38 anos; naquele parente encontrava a figura paterna atenuada pela camaradagem e aureolada pela notoriedade. Oriundos do mesmo rincão interiorano, compartilhavam afinidades, davam-se bem e eram íntimos. A crônica da cidade, mesclada à história de ascendentes comuns, lhes proporcionava assuntos para conversas infindáveis, às quais se somavam as confidências do pintor, que estudara cinco anos no Rio de Janeiro, na Academia Imperial de Belas Artes, e seis em Paris, sob orientação do pintor neoclássico Alexandre Cabanel. Admirava o talento do primo, que tanto encantara o imperador: ao deparar-se com um quadro de sua autoria na inauguração da Mogiana, Sua Majestade decidiu lhe subvencionar uma viagem à Europa, em 1876, quando o artista completara 26 anos.
Em abril de 1884, dois anos depois de retornar, Almeida Júnior é assim descrito pelo jornal Imprensa Ytuana: “Modesto no porte, simpático no trato, olhar firme e seguro, lábio trêmulo e sensual, apenas sombreado por ligeiro buço, imberbe, cabelo redemoinhado sobre a direita e contornando uma fronte espaçosa que se enruga rapidamente quando o artista está animado, a sua fala descansada de paulista discorre sobre sua arte, louva os quadros dos amigos e admira os primeiros mestres.” O articulista e poeta Ezequiel Freire, que o conheceu, diz dele, em depoimento de 1910: “[…] retraído, cismador, contemplativo, de feições acentuadas a que a extrema mobilidade dos músculos dá uma original expressão inteligente. Pele morena, luzente, barba escassa, como os caipiras que retratou, estatura meã, atitudes curvilíneas, marcha ondulada e ritmada.” Juquinha, o primo mais moço, não poderia destoar muito. Um pouco mais expansivo, talvez? Baixo também, mas atarracado e bem mais forte, tinha a polidez e a reserva de sua gente, sem deixar de ser o que de fato era: um agricultor, rude e determinado, pioneiro no avanço dos cafezais pela “Boca do Sertão”, como era conhecida a zona de Itu em direção a Piracicaba. É assim, aliás, que é retratado pelo pintor numa tela de piquenique no Rio das Pedras, de viés, de terno branco, linho 120, com uma garrafa na mão.
Nessa viagem a São Paulo, ensaiava um último e difícil lance, nele empenhando suas fichas derradeiras. Viajava de fato para tratar de seus interesses? Acalentaria a ilusão de que uma última cartada ainda seria viável? Ou dentro de si já admitia que perdera o jogo e se sentia inapelavelmente derrotado?
Em 21 de setembro de 1899 escrevera a seu credor, Lara Campos, Toledo & Cia., comissários de Santos, uma carta em que se declarava insolvente e propunha a liquidação da hipoteca, com a entrega da fazenda; pedia uma reunião para o dia 31 do mesmo mês. Os termos da carta, bastante objetivos, escondiam uma jogada pueril: Juca suspeitava que o credor queria receber a dívida e não o imóvel, de sorte que, na reunião aprazada com os demais credores, esperava persuadi-lo a alongar o vencimento. Comerciantes experientes, os credores não caíram na inocente artimanha do agricultor. Não responderam à carta, tampouco se fizeram representar na reunião do dia 31. Diante do silêncio, Juca se descontrola e abre o jogo numa correspondência dolorosa datada de 3 de outubro, solicitando mais cinco anos para a quitação da hipoteca. Ainda sem resposta, em 3 de novembro ele remete outra carta para os comissários, reiterando o pedido e transferindo a reunião para o último dia do mês. Silêncio. Desesperado, resolve, em 11 de novembro, embarcar para São Paulo, visando tratar pessoalmente dos negócios. Na realidade, mesmo antes de embarcar, o mutismo dos credores lhe sinalizara a resposta negativa.
A viagem a São Paulo na verdade tinha uma finalidade secreta, embutida na intenção de pôr a termo seu problema econômico. Juca sentia que seu mundo particular desabava desgraçadamente também em outra vertente, muito mais atroz: além da traição que a vida lhe aprontara em sua luta para a formação da fazenda e o plantio do café, ele agora via assomar a provável traição da companheira. Haveria base na suspeita? Em depoimento prestado como testemunha no processo, Anna Brandina de Sampaio, irmã de Juca, afiança que “entre seu irmão e Almeida Júnior reinava perfeita amizade”, informando que, “na verdade, há cerca de um ano, mais ou menos, ele, indiciado presente, consultou-o sobre o comportamento de Almeida Júnior como amigo íntimo da casa, e ela, informante, recorda-se de então ele haver dito que confiava inteiramente na fidelidade de sua mulher, sendo esse também o juízo dela, informante”.
Várias testemunhas, porém, contestaram essa afirmação. João Baptista de Castro, hoteleiro, natural e residente de Piracicaba, asseverou que corriam boatos “de manter Almeida Júnior relações amorosas com a mulher do denunciado, segundo ouviu dizer, como soube também por ouvir dizer por diversas pessoas que tais relações já existiam há muito tempo”. Alonso de Carvalho, outro depoente, lavrador em Itu, disse saber “que Almeida Júnior tinha antiga amizade com o acusado, que era seu parente e cuja casa costumava frequentar e que ouviu o irmão do acusado, de nome Antônio de Almeida Sampaio, dizer a ele, depoente, que há anos havia prevenido seu irmão contra aquela amizade, e o dissera na presença de outras pessoas, se bem que não se lembrava se declinara os motivos de sua desconfiança”. Outra testemunha, o sr. Antônio de Mello Cotrim, natural de Tatuí, confirmou que “o motivo verdadeiro do crime era o fato de existirem relações ilícitas entre Almeida Júnior e a mulher do denunciado” e que isso “já era coisa velha, de modo que não se surpreendeu com o acontecimento e logo presumiu quem seria o autor do delito”.
Todas essas certezas e convicções só viriam à luz e ganhariam comprovação após a tragédia. Antes suspeitas vagas, sussurradas nos cantos dos salões das casas e do clube, os comentários mordazes ditos em voz baixa no jardim da praça ou no pátio da igreja finalmente lhe chegaram aos ouvidos. Homem reto, não se deixaria abalar pela maledicência. Mas a dúvida se alojara em seu espírito, por mais que procurasse olhar-se e olhar o mundo sem as lentes do ciúme. Não havia nada de concreto que embaçasse sua crença nesse amor único. A boataria provinha de uma comunidade tacanha. Reles. A suspeita, porém, não se dissipava. Juca escrutava, procurava apreender nas entrelinhas. Descobriu a mecânica voluptuosa de interpretar e deduzir. Desenvolveu uma imaginação retrospectiva prodigiosa e passou a detectar em fatos passados a presença dissimulada do desejo, como se a convivência com o amigo incubasse paixões imperceptíveis, unidas por um denominador comum: sequestrar o objeto de amor e dele dispor, com a vil conivência do objeto sequestrado. Lembrava quando a mulher demorara um pouco mais os dedos no braço do amigo, numa conversa, ou dera um beijo de despedida mais lento… Na ocasião, transformara todas as desconfianças em meras causalidades, que agora repatriava em meio a surtos de ira. Seria verdade? Mas e as provas? E se a investigação que silenciosamente vinha desenvolvendo se mostrasse frutífera, que atitude deveria tomar? Matar? A quem? Aproveitaria a chance de dar cabo à própria vida, já que os negócios também desandavam? Seis meses antes do crime Juca adquirira um punhal – segundo ele, para portar em viagens.
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Em fins de 1899, São Paulo contava com uma população respeitável de 240 mil habitantes, quase metade de origem italiana. Tílburis e troles disputavam espaço com os bondes a tração animal. Os bairros verdadeiramente residenciais ficavam afastados, para além da cidade nova, ou seja, além do córrego Anhangabaú, onde hoje se encontra o Theatro Municipal. Por volta de 1878, o alemão Frederico Glette, associado a um patrício, Victor Nothmann, loteia o bairro de Campos Elíseos, que passa a ser o preferido pela camada afluente, em virtude da proximidade da Estação da Luz. Em 1891 é inaugurada a avenida Paulista, numa região ainda marcada por acentuados traços rurais. Alguns anos antes, em 1883, Almeida Júnior deixaria a terra natal e instalaria seu ateliê num pequeno rés do chão à rua da Princesa, nº 11; em 1888, mudou-se para a rua do Imperador, quando enfim se transferiu para um imóvel que lhe foi cedido pelo conselheiro Antônio Prado, na rua da Glória, nº 74, no atual bairro da Liberdade. O terraço da casa abria-se para os fundos do antigo Teatro São José, que se localizava logo ali no largo de São Gonçalo, atual praça João Mendes. A tela Leitura, de 1892, exibe uma jovem senhora, quem sabe o pivô do drama, sentada junto ao gradil do terraço, segurando um livro; atrás dela, vê-se um imóvel com um toldo listrado e, ao fundo, num espaço mais rural do que urbano, algumas edificações, uma das quais se presume deveria ser o teatro.
Chegando à capital, Juca dirigiu-se de tílburi à rua da Glória, aproveitando o trajeto para repassar trechos do script que há dias o obcecava. Apeando no nº 74, bateu a aldrava da porta com vigor despropositado e invadiu o corredor de entrada, não se dando ao trabalho de cumprimentar o empregado que lhe franqueou o acesso; mesmo com os olhos vendados saberia se orientar por todos os cômodos, tantas vezes lá se hospedara. Eram quatro horas da tarde mais ou menos. Conhecia a casa inteirinha, assim como conhecia o fiel caseiro Severino. Tinha bem gravados na retina todos os móveis, louças, pêndulos, reposteiros e demais trastes que lá se achavam, de que sempre gostou e que viriam a ser pormenorizadamente listados pelo leiloeiro Alfredo C. Pereira no anúncio que este fez publicar em 3 de março de 1900, avisando o público do leilão judicial do espólio de Almeida Júnior. Juca refreou a impulsividade e, afável, informou ao empregado que sabia estarem ausentes o pintor e o filho Renato, mas que tencionava ficar alguns dias hospedado na casa, pois que viera tratar de negócios. Sorridente, o empregado assentiu e ofereceu um café ao amigo do patrão.
Enquanto esperava, Juca esquadrinhou os móveis da sala de jantar – a mesa de cinco tábuas, as peças maciças de nogueira, a cristaleira e o guarda-pratas, o relógio de pêndulo, os quadros e os diversos serviços para almoço e jantar. Tomou o café e se dirigiu à sala de visita. Depois de passar em revista a mobília Luís XV e um dunquerque, e espiar dentro das jarras e embaixo dos objetos decorativos dispostos sobre o piano, procurando sei lá o quê, encaminhou-se para o quarto que o filho ocupava, que era colado ao de Almeida Júnior, com a intenção de “mudar de roupa”, como mais tarde explicaria. Na verdade procurava prova que validasse sua obsessão ou dela o liberasse. Era um quarto simples, com boa guarnição de canela cirée, aparelho para toalete, escarradeira. Serviu-se do gabinete de vestir do artista para fazer sua toalete quando deparou com algumas cartas que estavam sobre o lavatório, reconhecendo no subscrito de uma delas a letra de sua mulher. Alçou-a dentre as outras, com dois dedos, como se hasteasse de uma urna um bilhete lacrado, e ao procurar abrir o envelope notou que o invólucro havia sido cortado ao redor por uma espátula e que se abria em quatro, deixando entrever o interior todo escrito a lápis num cursivo que tão bem conhecia. Observando a uma formalidade que lhe parecia necessária, levou a carta às narinas, sorveu um perfume que lhe era familiar e pôs-se a ler. Desabou sentado na cama, como se o combustível que o conduzira o dia todo subitamente tivesse sido cortado mediante a confirmação que encontrara na correspondência. Caiu num choro convulsivo.
Tudo ocorrera num turbilhão: a viagem depois de uma noite insone; a percepção de que os negócios nunca se acomodariam; a antevisão da catástrofe; a evidência da traição de Maria Laura – tudo havia se precipitado, e o espanto da nova realidade o deixava à beira da catatonia. Súbito saiu do transe e num salto pôs-se de pé, cofiou a barba densa e, correndo, dirigiu-se ao quarto contíguo do pintor. Uma réstia de luz iluminava fugazmente o madeiramento do assoalho. Com furor vasculhou todos os móveis, forcejou gavetas da cômoda e do armário, revistou o criado-mudo. Revolveu a cama, revirou o colchão. Sobre um aparador, encontrou algumas cartas, conferiu a caligrafia e as pôs no bolso. Em seguida dirigiu-se ao ateliê, em busca de outras; escancarou algumas gavetas e por fim encontrou um maço de cartas que reconheceu serem de sua mulher. Com curiosidade quase lasciva, passou os olhos em algumas delas, abandonando-as sobre a mesa. Precisava de mais liberdade para a devassa. Chamou o criado e, pretextando precisar enviar um bilhete ao dr. Estanislau do Amaral – que deveria lhe entregar 1 conto de réis por ordem de Theophilo do Amaral Campos –, pediu a Severino que o apresentasse àquele senhor, à rua Visconde do Rio Branco, número 59, e lhe trouxesse o numerário. Nesse ínterim, ficaria tomando conta da casa. Severino, em seu depoimento, disse que Juca estava completamente perturbado e mal conseguia escrever o bilhete, murmurando palavras que ele não entendeu. Logo que se viu livre do empregado, mergulhou na leitura das cartas. Eram devastadoras.
A signatária registra a lápis, com ponta fina, em folhas de papel escritas dos dois lados, sua paixão pelo pintor, seu desespero em relação aos problemas econômicos que oprimem a família e sua aversão ao marido, com quem se casara, costume à época, quando tinha apenas treze anos, dez menos que ele.
A redação é descuidada, tosca, muitas vezes truncada, o que é compreensível em quem, até pela idade em que se casara, carecia de maior escolaridade. Além do mais são mensagens escusas, redigidas às escondidas, em geral à noite, sob a luz escassa das velas. A devoção amorosa aparece mesclada a um estado de profunda ansiedade: “Sinto uma saudade cruel de você; parece que já faz um ano que não te vejo, um ano que não nos abraçamos. Quando foi isso? Me parece um século”, diz numa carta datada de 23 de setembro, provavelmente de 1899. Em outra, esta de 13 de outubro do mesmo ano, escreve: “Deus que me arranje um meio de não ficar longe de você, pois tudo mais não é nada; isso é que me faz maior sofrimento.” Em três folhas, sem data, registra: “Meu bem, está chegando o dia de martírio para mim: separar-me de você, eu fico desesperada com isso […] eu podia viver feliz na tua companhia, afastada dessa gente que só serve para me fazer sofrer, eu já não posso mais suportar esta vida […] Agora quando te verei? Marque quando vem para eu te esperar […] não me canso de pedir a Nossa Senhora de Lourdes que atenda a meus rogos […] Aceite tudo quanto pode haver de afeto, saudades loucas […]. É meia-noite. […] Vou te esperar; quero demais te ver. Adeus, abraço e beijo a tua eterna e terna boca. Vai com pingos de lágrimas de saudades.”
À devoção ao pintor se contrapõe uma repulsa pelo marido, a quem se refere com expressões desairosas: burro, imundo, nojento, a quem cada vez mais odeio, causador de todas as minhas desgraças, coisa à toa que eu não posso mais suportar. Não acredita minimamente que o marido consiga superar as dificuldades por que está passando: “Agora a peste inútil e imunda diz que vai pedir rebate, todos os credores deixando pela metade, como coisa que há de conseguir isso.” A certa altura, aconselha o pintor a se precaver, pois Juca pode recorrer a ele, pedindo dinheiro emprestado: “Você não calcula quanto estimei não pagarem o teu quadro tudo de uma vez, porque se ele visse você receber 50 contos esse cara dura não ia sair de cima do teu suor.” Implora aos céus a morte do marido e insinua a possibilidade de o mesmo vir a ser assassinado: “Me consolava muito e muito se me visse livre desse inútil causador de todas as minhas desgraças neste mundo, não há de morrer esse desgraçado para me deixar livre? […] Meu Deus, quando me verei livre de semelhante peste, podia esses colonos fizessem essa grande limpeza e cuidado para mim.” Fala também dos filhos, dois dos quais insinua serem de Almeida Júnior, sobretudo a caçula: “Está com 6 anos a tua filhinha; sinto ver ela na idade de receber educação, que havia de ser boa tendo um pai como ela tem e não aproveitar.” E como se quisesse persuadi-lo de que os pequenos são, de fato, filhos do amante, alude a semelhanças, sobretudo de atitude – quando a menorzinha brinca, comenta num dos bilhetes, “os brinquedos são ouvidos e vistos com chuveiros de lágrimas que não posso conter vendo uma expressão tão igual que parece que herdou tudo”. E: “querido, o outro… está muito ativo também e bonitinho.”
Era tal o espanto e tão profundo o agravo que Juca sentiu faltar-lhe chão, soterrado pelo mundo que desmoronava em cima dele. Levou bem uma meia hora para despontar dos escombros e pôr-se de pé. Lembrou-se de que Severino não tardaria, o que de fato ocorreu; o empregado disse que a resposta à carta viria dali a pouco, por mensageiro. Há aqui uma divergência entre os depoimentos de Juca e Severino. Segundo o primeiro, meia hora mais tarde, um portador do dr. Estanislau chegou com o dinheiro; Juca teria deixado a casa da rua da Glória em companhia do homem, de quem se separaria no largo do Teatro, dirigindo-se a uma repartição que fornecia passaporte sanitário, necessário nas viagens de São Paulo para o interior. Encontrando o local fechado, vagou agitado pelas ruas, até que mais tarde retornou à repartição, onde encontrou um parente, o Amaralzinho, que o convidou a dormir em sua casa, na rua Santa Thereza. No dia seguinte embarcaria para Piracicaba.
Segundo Severino, Juca teria permanecido na rua da Glória até as 19 horas e recebera o dinheiro das mãos do próprio dr. Estanislau do Amaral, a quem informou que pernoitaria na casa de Raphael Pompeu, na ladeira da Tabatinguera, rumando para o interior no dia seguinte. Ao deixar a casa da rua da Glória logo depois, pediu a Severino que lhe levasse a bagagem à Estação da Luz na manhã seguinte, às cinco, quando tomaria o primeiro trem.
***
Provavelmente não pernoitou em nenhum endereço; perambulando pelas ruas até de madrugada, dirigiu-se antes das cinco da manhã à estação. Enquanto errava pela cidade, Juca repassava os últimos capítulos do folhetim em que se transformara sua vida. Aos poucos, a perplexidade começou a destilar um ódio que logo se transformou em determinação homicida. O coração de Juca clamava por vingança e exigia a pena de talião: olho por olho, dente por dente. Ao conspurcar-lhe a honra e destruir-lhe a vida, os traidores deveriam pagar com a vida. Ao sofrer um mal ou dano, a vítima torna-se credora de valor equivalente junto a seus ofensores. É o que explicaria ao sr. Antônio Alfredo Costa, depoente no processo: ao perguntar a Juca, após o crime, quando este recebeu voz de prisão, se era inimigo de Almeida Júnior, “ele respondeu que não, que até eram amigos, mas que a vida daquele homem lhe pertencia”. A testemunha Silvério Francisco Ferreira confirmou ter ouvido o mesmo comentário. Matar o rival era, portanto, direito seu, sobre o qual não cabia contestação. Alimentava, porém, sérias dúvidas em relação à mulher. Subtrair a vida da adúltera talvez fosse pouco, punição insuficiente para reparar a dor por ele sofrida – no fundo, seria permitir que Maria Laura se imolasse num preito ao rival. Melhor poupá-la e sequestrar seu objeto de amor, confiscá-lo do mundo, mantendo-a viva, sopesando o sofrimento que infligira ao marido.
Pronunciado o veredicto, Juca passou a maquinar os meios de executá-lo. O golpe deveria ser único, no sangradouro, como costumava fazer ao sacrificar os animais do sítio. Quer dizer, ele teria que se valer da surpresa, para evitar interferências, e o ferimento, ainda que único, precisaria ser fatal. Ademais, o ato deveria ser praticado logo após o conhecimento das cartas vis, ou seja, ainda sob a influência da emoção que de fato ainda o dominava, para que ele pudesse se eximir de qualquer condenação. Envolto em especulações, foi como um sonâmbulo que caminhou pela Marechal Deodoro, vencendo os dois quarteirões que se interpunham entre o largo de São Gonçalo e o largo da Sé. Àquela hora praticamente todos os estabelecimentos comerciais haviam cerrado as portas. Passou pelo antigo ateliê que Almeida Jr. mantivera nessa rua e se lembrou com aversão da pintura feita pelo rival no teto na velha catedral da Sé, cujo contorno agora entrevia.
O largo da Sé era pequeno, ocupado pela velha catedral e, bem junto a ela, em posição perpendicular, pela igreja de São Pedro dos Clérigos. Num dente formado pela lateral da igreja da Sé, perfilavam-se dois grupos de tílburis de aluguel. Combinou com um dos cocheiros que o apanhasse lá pelas quatro da manhã na rua de Santa Thereza, esquina da rua do Carmo, em frente à casa do Amaralzinho. Depois caminhou pela rua XV de Novembro, iluminada por lampiões a gás e àquela hora ainda apinhada de gente e tomada pelos bondes. Havia algo irreal no contraste entre o tormento interior por que passava e a identidade que continuava a reconhecer no mundo exterior. O centro da cidade estava como sempre, até mais límpido. Mas para ele esse mundo já não era o mesmo.
Pensou em tomar um trago, ou ao menos um café, e apertou o passo em direção ao largo do Rosário. Lá chegando, trocou um dedo de prosa com dois conhecidos, também do interior, e entrou, primeiro, no Castelões, depois na Brasserie Paulista. Acompanhou por vários minutos a onda expansiva das confeitarias, sem música mas com trilha sonora cheia de vozes, tilintar de copos e risos. Pediu uma bebida, depois outra, e ficou um tempo a observar o movimento e ruminar seu drama. Sentindo o efeito do álcool, solicitou um café e resolveu comer alguma coisa. No caixa, um homem calvo, o cenho franzido, examinava a comanda. Ao fundo, um senhor, numa mesa também solitária, fumava um cigarro e bebericava lentamente. Juca mal encostou na refeição. Quando saiu à rua, os grupos tinham se dispersado e a animação se desvanecera. Eram onze horas. Retomou sua errância.
Rodou ao léu até as três e pouco da madrugada, quando se dirigiu ao ponto de encontro combinado com o cocheiro. Dali a pouco encostava o tílburi; tomou-o e percebeu-se muito cansado, o corpo moído. Sentia-se irremediavelmente sozinho. Pegou-se pensando nos momentos felizes do casamento, da noite de núpcias ao nascimento dos filhos, e esse recrudescimento do amor, fruto mais da ilusão retrospectiva, chocava-se e estilhaçava-se contra a realidade atual. Sua vida se desfigurava no redemoinho da frustração e do ódio dentro do qual se debatia. Afastou com raiva essa intromissão do passado, e à medida que atravessava a cidade vazia, mapeava os passos de sua futura vingança. Foi um trabalho de ourives que consumiu a noite inteira do dia 11 para o dia 12. Às cinco da manhã, quando tomou o trem, levando a mala que Severino lhe entregara, tinha um plano bem lapidado.
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Antes de embarcar, Juca enviou dois telegramas, um para a mulher, que se achava na fazenda Boa Esperança, e outro para seu cunhado, o dr. Octavio do Amaral. Convocava Maria Laura a se juntar a ele, no dia 13, em Piracicaba, no Hotel Central, com todos os filhos; ela lhe escrevera, dizendo sentir-se incomodada na fazenda, receando que a vinda do filho Renato pudesse trazer o contágio da peste bubônica; ao cunhado, chamava-o para lhe mostrar as cartas que encontrara e lhe comunicar a intenção de divórcio. No caminho, deteve-se em Jundiaí a fim
de buscar a filha Zilda, aluna interna de um colégio daquela cidade; ato contínuo, rumaram para Piracicaba. Depois de se registrar no hotel e fazer uma rápida refeição com a menina, recolheu-se cedo, cansado. Não tinha certeza de que a família chegaria à cidade realmente no dia assentado, pois o telegrama que enviara naquela manhã talvez não fosse entregue no mesmo dia, uma vez que não havia portador diário da estação de João Alfredo para a fazenda Boa Esperança.
Mesmo assim, na manhã seguinte, depois de fazer um pouco de hora, procurou o dr. Francisco Antônio de Almeida Morato, futuro lente da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, com o qual, no entanto, não conseguiu falar. Dirigiu-se à rua Santo Antônio, nº 6, residência do dr. Prudente de Moraes, primeiro presidente civil do país, que após deixar o cargo reabrira banca na cidade com o genro João Domingues de Sampaio. Prudente de Morais era natural de Itu, e Juca o conhecia satisfatoriamente, se bem que não desfrutasse de intimidade, visto que as respectivas famílias mantinham relações de amizade cerimoniosa. Tocou a campainha e esperou alguns segundos, olhando a própria sombra no vidro esmerilado da porta. Uma empregada alta e negra o fez entrar e o conduziu ao escritório amplo, repleto de móveis escuros e pesados; atrás da mesa lotada de revistas e processos, uma cadeira de espaldar alto dava as costas a quadros com diplomas e fotografias; na frente da mesa, duas poltronas de couro. Sentou-se numa delas. Enquanto aguardava o advogado, ensaiou as palavras com que pretendia expor o caso: não poderiam ser nem descontroladas, que o expusessem ao ridículo, nem inexpressivas, a ponto de ocultar sua emoção e indignação.
Quando o presidente entrou na sala, com um pedido simpático de desculpa pelo atraso de minutos, Juca lembrou-se da tela, de corpo inteiro, que Almeida Júnior fizera do ilustre personagem, com base em fotografia, esboçando numa fresta da janela a fachada do antigo palácio do governo do estado, no velho Pátio do Colégio. Os cabelos de seu interlocutor, ainda que abundantes, estavam bem mais grisalhos e a barba totalmente branca; em sua fisionomia, traços de uma velhice prematura ausente no quadro, mas ainda o vigor físico e moral retratado anos antes. Juca relatou os fatos e mostrou a correspondência; Prudente de Morais ouviu tudo em silêncio, depois sintetizou a situação com objetividade: as cartas eram prova suficiente das relações ilícitas mantidas por sua mulher e legitimavam o pedido unilateral de divórcio perpétuo ad thorum et habitationem, sem rompimento do vínculo matrimonial. A manifestação da esposa na petição, ainda que desnecessária perante a lei, era aconselhada, caso o marido intentasse uma separação amistosa – e aqui Juca o interrompeu para informar que Maria Laura estava a caminho. Dado o teor das mensagens, o presidente não tinha dúvida de que, se quisesse, Juca poderia ficar com a guarda dos filhos menores; e, como eram casados em comunhão universal de bens, caberia também pensar na partilha. Juca saiu satisfeito da entrevista, julgando que o advogado tratara a questão de maneira neutra, abstendo-se de fazer qualquer comentário constrangedor.
De volta à cidade, encontrou-se, por volta das duas e meia da tarde, com Alonso de Carvalho, também lavrador em Itu, que o convidou para um café em sua casa. Ao cruzarem o largo do Hotel Central, porém, resolveram entrar, pois Juca, que não tomara o desjejum, desejava uma média e algum biscoito. Ficaram por lá, na sala de jantar, a conversar, junto com o dono do hotel, sobre o aperto financeiro do fazendeiro. Só depois, numa leitura retrospectiva, é que se notaria a franqueza incomum com que Juquinha, de natural tão discreto, expusera seus problemas pecuniários. Destoava de sua costumeira cartilha reservada. Parecia distante, frágil, com a lucidez levemente sobrenatural daqueles que, depois de uma noite em claro, saem à rua e percebem luzes e formas com uma nitidez quase dolorosa. Comentava seu infortúnio na condução da lavoura como se falasse de outra pessoa, talvez para matizar o panorama sombrio que apresentava a seus interlocutores, pontuado de suspiros.
Ouviu-se um carro à porta do hotel. Segundo uma das testemunhas, o copeiro Silvério Francisco Ferreira, surgiu o vulto de uma senhora na entrada do estabelecimento; era Anna Brandina, irmã de Juca, que perguntava se o irmão havia chegado. A senhora já adentrava a sala de jantar do hotel, entregava ao copeiro uma valise e interpelava sorridente o irmão, que se levantava para saudá-la: “Então, seu patife, por que não foi à estação?” Atrás dela vinham as crianças e Maria Laura, que se adiantou para cumprimentar o marido. Dando as costas à esposa, Juca abraçou rapidamente a irmã e precipitou-se em direção à porta principal.
Ali avistou Almeida Júnior, prestes a entrar no casarão, depois de pagar o cocheiro que os trouxera da estação da Estrada de Ferro Ituana. Descendo a escada aos saltos e empurrando a porta de vidro do corredor de entrada, Juca levou a mão direita à cava do colete para sacar o punhal e se atirou sobre o primo, que estava próximo ao batente da porta. Passando-lhe o braço esquerdo pelas costas, imobilizou-o e cravou-lhe o punhal na região supraclavicular esquerda. Jogando todo o peso contra o rival, Juca derrubou-o na calçada, mantendo-o subjugado entre as pernas enquanto afundava a lâmina, de cima para baixo, em busca da carótida. Rodou a arma, que se partiu no cabo, e sentiu rasgarem-se os tecidos entre a traqueia e a faringe, lesando os vasos grossos da região. Um líquido quente e viscoso escorreu por seu pulso, empapando também a camisa do ferido; era com prazer selvagem que perquiria o pavor estampado nos olhos do rival e acompanhava os esforços desesperados que o outro fazia para se desprender.
Juca pensou ouvir os ruídos das próprias mandíbulas e sentiu aflorar uma espuma na comissura da boca. Lembrou-se da frase que planejara dizer na ocasião e disparou: “Miserável, me roubaste a honra, mas não me roubaste a vida.” A voz saiu muito baixa e lhe soou frouxa, como se envergonhada da frase extravagante, então ele a repetiu, dessa vez aos berros, para que todos a ouvissem e dela não se esquecessem. Permaneceu um tempo sobre a vítima, a mão grudada no que restava do cabo da faca; tanto procurava conter Almeida Júnior como resistir aos esforços de duas pessoas, que sabia serem sua irmã e sua mulher, que tentavam arrancá-lo dali. Até que por fim as mulheres, ajudadas por Alonso de Carvalho, conseguiram alçá-lo e o conduziram para dentro do hotel. Na rua, o pintor, que se levantara e sacara um punhal, ensaiou um passo, vergou os joelhos e desfaleceu no lajeado da sarjeta. Uma senhora que passava de carro lançou gritos apavorados.
O ato fora tão rápido que ninguém, salvo o copeiro, presenciara o golpe fatal. Os depoimentos registram os fatos imediatamente posteriores. Antônio Alfredo Coelho, lavrador de 28 anos que se encontrava no jardim público defronte do hotel, disse que se aproximou ao ouvir gritos, vendo, junto à porta de entrada, a vítima ser amparada por uma senhora; ofereceu-se para substituí-la, no que foi auxiliado por Antônio de Mello Cotrim, um curioso que acorrera ao local. Francisco José Rodrigues, negociante, natural de Portugal, esclareceu que estava em sua loja quando, atraído pela gritaria, procurou verificar o que se passava na esquina do Hotel Central, onde deparou com um homem ferido, segurando uma faca e esforçando-se para entrar no estabelecimento, ao que se lhe opunha uma senhora loura e de pouca altura, que o amparava.
Felinto de Matos Brito, de 18 anos, afirmou que, ao passar pela rua Direita, ouviu a algazarra que partia da entrada do hotel, onde divisou um homem com uma faca, tentando em vão alcançar um grupo de três pessoas; o sujeito flexionou os joelhos e escorregou, sendo apoiado por Antônio Alfredo Coelho. Maria Laura confirmou que, auxiliada pela cunhada, tentou apartar o marido e retirou a arma que estava encravada no pescoço da vítima, arremessando-a à distância e solicitando socorro. Antônio de Mello Cotrim, que atravessava o largo da Matriz, escutou o vozerio e viu um homem ensanguentado com um punhal na mão; tomou-o pelo braço, retirou-lhe a arma e o sujeito caiu desfalecido. João Baptista de Castro, dono do hotel, que minutos antes estivera de prosa com Juquinha e Alonso de Carvalho, não presenciou a cena: com a chegada da família do hóspede, entrou para vestir um paletó, visto achar-se em mangas de camisa; ao ouvir os gritos da senhora e das crianças, voltou e deparou com Juca encostado na grade da escada; vislumbrou Almeida Júnior do lado de fora, escorado por duas pessoas. Foi então que tratou de conduzir d. Maria Laura para a sala de visita do hotel, onde se achavam a cunhada e os filhos menores. Alonso de Carvalho tampouco testemunhou o crime; espavorido pelo berreiro, tentou correr até o local, mas não o fez com a necessária prontidão – topando com as crianças no corredor, a espiar pela porta de vidro, ele saiu, tendo o cuidado de manter os pequenos trancados do lado de dentro; abalroado por José Leme do Prado e outros que procuravam conduzir Juca para o interior do estabelecimento, virou-se e avistou a silhueta de Almeida Júnior caído na rua. João Baptista de Castro, o proprietário, gritou pedindo que isolassem Juca na sala de jantar, enquanto acompanhava Maria Laura à sala de visita, onde já estavam Anna e as crianças; em companhia do dr. Joaquim da Silveira Mello, Theodomiro e Erasmo Ribeiro, ali se demorou, acomodando a família.
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Em quase todos os depoimentos, as testemunhas fizeram referência à frase berrada por Juca, evocando questão de honra de família. Algumas testemunhas declararam ter ouvido a vítima dispensar socorro médico, pois sabia estar morrendo: “Estou morto”, dizia, e completava afrontado, antes de desfalecer: “Que homem ingrato!” Contou Antônio Alfredo Coelho que ele e mais duas pessoas seguraram o moribundo pelas pernas e braços e quiseram recolhê-lo ao interior do hotel, mas foram impedidos – na primeira vez, por Juca, e, depois, pelo dono do estabelecimento –, razão pela qual o depositaram, com zelo, na calçada. Alonso de Carvalho declarou que ouvira Juca lhe dizer “Matei o desgraçado”; a Felinto de Matos Brito, o réu teria dito que não queria mais ver o primo, ordenando que o deixassem morrer na rua, “um ordinário a menos na sociedade”. A vítima logo expirou. O corpo permaneceu na calçada, cercado por curiosos e exposto ao calorão daquela tarde, até que a polícia autorizou a remoção ao necrotério da Santa Casa de Misericórdia, onde seria realizado o auto de corpo de delito. Lá ficaria até as oito da noite, quando foi transportado para a redação d’O Popular, onde foi velado durante a noite. O enterro efetuou-se no dia seguinte, pela manhã.
Recolhido à sala de jantar, Juca conversava com Alonso de Carvalho, jactando-se do ato tresloucado, quando o oficial de Justiça Antônio de Oliveira Góes e a testemunha Antônio Alfredo Coelho deram-lhe voz de prisão, que logo se tornaria efetiva com o aparecimento do delegado, dr. João Xavier da Silveira. A fim de evitar uma eventual alegação de resistência à prisão, Juca de pronto declarou que não fugiria e que se dava por preso. Sentou-se numa cadeira e murchou, caindo num silêncio abissal, indiferente às pessoas que o rodeavam. Na verdade, sentia-se um trapo, exausto. Não era sono nervoso, tampouco tinha a ver com o alívio de ter cumprido a missão pavorosa a que dedicara tantas horas de planejamento: era uma fadiga imemorial, que enterrava o sentido de tudo que o orientara até aquele momento e o deixava num estado de opacidade.
Na sala de jantar do hotel, sua figura era a imagem da desolação. Ainda sentia as pernas trêmulas, sequela do paroxismo que o acometera minutos antes. Vivia numa espécie de grau zero, como se tudo externo a seu ensimesmamento lhe resultasse intoleravelmente frívolo. Acompanhou o delegado, sem arriscar palavra ou ensaiar gesto. Partiram de carro, junto com Antônio de Oliveira Góes e Antônio Alfredo Coelho. As demais testemunhas seguiram a pé.
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Na delegacia, lavrou-se o auto de prisão em flagrante e Juca foi recolhido à cadeia. Às quatro da tarde, foi redigido o auto de corpo de delito e no dia seguinte, 14 de novembro, procedeu-se ao interrogatório do detento. Nessa ocasião, Juca, reabastecido de uma energia que parecia esgotada, fez um relato linear da viagem a São Paulo, da descoberta das cartas comprometedoras, da ida a Piracicaba para tratar da questão do divórcio, do encontro inesperado com Almeida Júnior e do assassinato, “impelido pelo estado nervoso em que se achava”. Mencionou a frase que caracterizava o crime como questão de honra. Expurgadas as coordenadas do instante e do lugar em que se passou, a cena do crime tornara-se sépia, algo que já não lhe dizia respeito. Na mesma data, nove testemunhas prestaram depoimentos, inclusive a mulher e a irmã de Juquinha. No dia 17 de novembro, o delegado fez seu relatório e o encaminhou ao promotor público, por intermédio do juiz de direito da comarca. Uma semana depois, o promotor ofereceu a denúncia, requerendo se instaurasse o competente sumário de culpa e se inquirissem as testemunhas, promovendo-se o interrogatório do réu. As testemunhas foram ouvidas de 5 a 11 de dezembro e a oitiva do réu se deu em 15 de dezembro, sempre na presença do dr. Rafael Marques Cantinho, juiz de direito, e do dr. Cherubim Ferraz de Andrade, promotor público. Também presentes o réu e seu advogado, dr. João Domingues Sampaio. Em 18 de dezembro foi proferida a sentença de pronúncia, sendo o nome do réu lançado no rol dos culpados. Em 29 de dezembro, o promotor apresentou o libelo contra o réu, afirmando que ele cometera o crime com premeditação, visto que haviam decorrido mais de 24 horas entre a deliberação criminosa e a execução, valendo-se o imputado de sua superioridade física e agindo de surpresa, sem dar oportunidade à vítima de se defender.
Em 20 de fevereiro de 1900, instalou-se o júri de sentença na sala de sessões do Fórum de Piracicaba. Às 11 horas, com as portas abertas, o oficial de Justiça Antônio Francisco Teixeira, servindo de porteiro, tocou a campainha. Em plenário, procedeu-se ao sorteio dos juízes de fato. O juiz de direito abriu a urna com 48 cédulas, com os nomes dos jurados, e as retirou, contando-as uma a uma. Recolheu-as e fechou a urna. Isto feito, o escrivão procedeu à chamada dos jurados sorteados, constatando estarem presentes 39 deles. Declarando aberta a sessão, o juiz pôs-se a verificar as faltas e as escusas apresentadas pelos que deixaram de responder à convocação, anunciando as multas que impusera aos ausentes. Ato contínuo apresentou o processo a ser submetido a julgamento. O escrivão fez a chamada das partes e das testemunhas. Dados os pregões pelo porteiro, veio à presença do tribunal o réu, dessa vez acompanhado pelo advogado Francisco Morato, sendo as testemunhas recolhidas a uma sala de onde não poderiam ouvir os debates nem os depoimentos.
Em seguida, procedeu-se ao sorteio dos doze jurados; à medida que o juiz extraía as cédulas da urna, aqueles que não eram recusados nem pela defesa nem pela acusação iam tomando seus assentos apartados do público. Levantaram-se então juiz, jurados e demais circunstantes; assinou-se o termo de juramento, que um dos juízes de fato, na condição de presidente interino do júri de sentença, leu em voz alta, com a mão direita estendida sobre a Bíblia: “Juro pronunciar-me bem e sinceramente nesta causa, haver-me com franqueza e verdade, só tendo diante dos meus olhos Deus e a Lei; e proferir o meu voto segundo a minha consciência.” Os demais jurados, também com a mão direita no livro sagrado, repetiram, cada um, a frase: “Assim o juro.” Deferido o juramento dos juízes de fato e achando-se o réu “livre de ferros e sem coação”, passou o juiz a interrogá-lo.
Revestida com lambris escuros nas paredes, a sala do fórum era espaçosa, para os padrões do interior; o juiz de direito, sentado num patamar mais elevado, presidia a mesa. Juiz, promotor e advogados portavam toga negra com gola de arminho. Juca, ladeado por dois guardas fardados, praticamente repetiu o que declarara em seu depoimento. Uma pequena plateia se acotovelava nos fundos da sala.
Findo o interrogatório, o juiz de direito resumiu a matéria em debate, esclarecendo as questões propostas ao júri de sentença, lendo-as em voz alta e entregando-as, junto com os autos do processo, ao presidente interino. Os jurados retiraram-se para a sala secreta das conferências, à esquerda do salão nobre; à porta se postaram dois oficiais de justiça, encarregados de impedir qualquer tipo de interferência. Os membros do júri elegeriam, por escrutínio secreto e maioria absoluta de votos, os senhores Manoel de Morais e Barros, para presidente, e João Egídio Rodrigues, para secretário. O senhor Manoel de Morais e Barros era o irmão mais velho de Prudente de Morais, tinha propriedade rural em Itu e havia sido juiz municipal da comarca.
Sendo a comarca relativamente pequena, Juquinha conhecia quase todos, ao menos de vista. Teve tempo de examinar os presentes: o juiz, homem de meia-idade, com o rosto bronzeado, as sobrancelhas desgrenhadas e o bigode tingido de nicotina; o promotor, moço esbelto, com minúsculas rugas nos olhos e vasinhos nas asas do nariz; o escrivão, mulato de feição inquieta e sorridente; esparramados no fundo da sala, reconheceu alguns conhecidos dentre os curiosos. Estava perdido nessas divagações quando ouviu soarem três toques na porta da sala secreta; o juiz ordenou que a abrissem, determinando que os jurados retornassem à sala pública.
Entraram em fila indiana e procuraram seus assentos. O presidente do conselho se adiantou e leu, em voz alta, as seis questões formuladas pelo juiz e as respostas dadas por escrito pelos membros do júri. Em suma, por unanimidade, os membros do conselho de sentença afirmaram que no dia 13 de novembro de 1899 o réu matara José Ferraz de Almeida Júnior, não cometendo, porém, o crime com premeditação, tampouco se valendo de superioridade de forças ou do elemento surpresa, uma vez que havia motivos para que a vítima se prevenisse contra a ação do réu. Ademais, o júri reconhecia que Juca se achava em estado de completa privação de sentidos e de inteligência no momento em que cometera o crime. Diante disso o juiz escreveu sua sentença e a leu em alta voz: “De conformidade com as decisões do júri, absolvo o réu José de Almeida Sampaio da acusação que lhe foi intentada; mando que se lhe dê baixa na culpa, e que em seu favor se passe alvará a fim de ser solto, se por al [ou seja, ‘por outra razão’, no estranho linguajar jurídico, conhecido hoje apenas pelos praticantes de palavras cruzadas] não estiver preso. Custas por conta da municipalidade.” Não se interpôs recurso por parte da acusação. A sentença, assinada pelo dr. Raphael Marques Cantinho, vem datada de 20 de fevereiro de 1900. Juquinha ficara encarcerado 97 dias e agora estava em liberdade. O dr. Francisco Morato se adiantou e o cumprimentou; Juca agradeceu e com ele saiu da sala de sessões do fórum. Não havia em seu semblante sinal de regozijo; parecia indiferente. Acompanhado de parentes, deixou o prédio e foi pegar, a poucos metros do local do crime, a condução que o levaria para a estação de trem. Silencioso e circunspeto, cruzou o jardim da cidade. O mundo brilhava como um objeto novo em folha.
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José de Almeida Sampaio – Juquinha para os íntimos – era o irmão mais moço de minha bisavó materna, Francisca Eugênia Sampaio Góes Paes de Barros. A figura de Almeida Júnior era execrada na família. Meu sogro, cuja mãe – tia Luizinha de Almeida Sampaio Lara – também era irmã de tio Juquinha, recusou-se a comprar algumas telas do pintor que lhe foram oferecidas por uma bagatela, por lealdade ao tio ultrajado.