“Ser operada pelo doutor Alexsandro é uma grife, tem glamour”, disse K., que nasceu homem. “Ele faz as periquitas mais bonitas do Brasil, ficam melhores que as originais” IMAGEM: MARTIN KLIMAS
Como mudar de sexo
A vida, as angústias e as cirurgias que transexuais fazem com o doutor Eloísio Alexsandro num hospital público do Rio de Janeiro
Clara Becker | Edição 43, Abril 2010
Em uma manhã de fevereiro, um jovem estudante de letras de cabelos curtos, espinhas no rosto e vestido com roupas largas em estilo grunge, esperava ao lado da mãe a vez de ser atendido no ambulatório de urologia do Hospital Universitário Pedro Ernesto, em Vila Isabel, na Zona Norte do Rio. M., como pediu para ser chamado, tem 22 anos, mas parece um adolescente. Seu jeito frágil e sereno contrastava com o da mulher, que parecia ansiosa e desconfortável por estar ali. Ao chegar, o médico Eloísio Alexsandro, chefe do ambulatório, sugeriu que conversassem em separado e pediu que ela entrasse primeiro no seu consultório.
Depois de algumas perguntas, a mãe lhe disse, com os olhos marejados: “Eu já li tudo na internet, doutor. Ela não é assim. Ela é virgem. Como alguém que nunca transou com homem nem com mulher pode saber se é transexual?” M., que nasceu e foi criada como menina, passava pelo primeiro estágio de um longo tratamento destinado a transexuais que, na maioria dos casos, acaba em uma cirurgia de mudança de sexo.
Um mês antes, M. tomara a primeira dose de testosterona, o hormônio responsável pelo desenvolvimento das características masculinas. Teve um surto de acnes no rosto e pelos grossos lhe brotaram nas pernas. A transformação definitiva apavorava a mãe. “Pelo que eu sei, transexuais jogam com os brinquedos do sexo oposto, e ela nunca fez isso”, disse a senhora. “Como vocês abraçam a causa assim, doutor?”
Com um tom de voz seguro, o médico lhe disse que o processo de mudança de sexo era lento e progressivo. Assegurou que a maior parte das modificações hormonais era reversível. E disse que a cirurgia para mudar o aparelho genital – a parte do processo que mais assusta os familiares – ocorreria no final do tratamento, e só depois do aval de um psicólogo e um psiquiatra.
A mulher ainda parecia transtornada. O médico lhe disse que aceitar a “condição” de seu rebento seria uma prova de amor. “Eu tento, doutor, mas não consigo chamá-la pelo nome masculino”, respondeu.
A longa jornada de M. incluirá uma série de injeções de testosterona, que farão com que a voz engrosse, a barba cresça e a sua agressividade aumente. A menstruação cessará e as mamas, que hoje são esmagadas por faixas apertadas, serão extirpadas cirurgicamente. Outra operação plástica dará um contorno mais masculino ao peitoral, delimitando o tórax. Se M. quiser, também poderá fazer uma histerectomia e terá seu útero, ovários e trompas removidos.
Ele terá duas alternativas quanto ao órgão sexual. Se responder bem à testosterona, seu clitóris poderá ter triplicado de tamanho e, eventualmente, funcionará como uma espécie de micropênis. Daí, bastará costurar os grandes lábios para formar um escroto na sua base.
A outra hipótese é uma neofaloplastia, procedimento cirúrgico no qual um pênis é construído a partir de um tecido sensível retirado do próprio corpo, como o antebraço. Ainda assim, não há garantia de que a aparência e o funcionamento do novo órgão serão razoáveis. Como o procedimento é experimental, o paciente precisa concordar com o risco.
Na sala de Eloísio Alexsandro no Hospital Pedro Ernesto, em meio a tubos de ensaio, jalecos, pilhas de livros e computadores, um quadro na parede chama a atenção. É uma reprodução de A Mulher Barbuda, tela pintada em 1631 pelo espanhol José de Ribera, que fez carreira na Itália. Ela mostra uma mulher de feições severas, nariz largo, olhos escuros e barba negra à Rasputin, amamentando uma criança. Ao seu lado, está o marido, também barbado. A senhora barbuda seria Magdalena Ventura de los Abruzos, a quem o duque de Alcalá, vice-rei de Nápoles, teria encarregado Ribera de pintar o retrato. “Desconfio que ela tivesse um tumor benigno na glândula adrenal”, disse Alexsandro, comentando a aparência masculinizada da figura.
O médico gasta tempo e dinheiro estudando história da arte médica, a disciplina que procura detectar patologias em pinturas e esculturas. Entre os iniciados no assunto, é praticamente consenso que a Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, sofria de arteriosclerose. Alexsandro discorda: “É um diagnóstico leviano.”
O urologista não fica só nas obras clássicas. Um dia, na saída do ambulatório do hospital, ele comentou o filme argentino XXY, um de seus preferidos. A fita conta a história de Alex, uma hermafrodita cujos pais resolveram não fazer a operação de definição de sexo, para que ela pudesse decidir mais tarde. “XXY tem um erro médico crucial”, disse Alexsandro. “Tem uma cena em que ela aparece fazendo xixi em pé. Mas, pelo tipo de hermafroditismo dela, em que a uretra fica na vagina e não no pênis, ela deveria fazer xixi sentada.”
Alexsandro é alto, magro e, com 39 anos, seus cabelos começam a pratear nas têmporas. Fala sempre de maneira enfática e gesticulando. Com frequência, recorre a desenhos e rabiscos para ilustrar raciocínios. É solteiro, não tem filhos e vive sozinho no Rio. Trabalha quase quinze horas por dia, seis dias por semana. Com pouco tempo para comer, sempre anda com uma caixa de Bis branco para driblar a baixa ingestão calórica. Tem poucos amigos e, nas escassas horas vagas, zanza sozinho por livrarias e sebos atrás de raridades.
No trabalho, seus colegas o têm como rígido, controlador e exigente, sobretudo em questões de disciplina. Os residentes novatos se assustam quando, ao lhe darem uma resposta, o chefe retruca, áspero: “Na medicina não tem muito ou pouco. Quero números, eu quero saber quantos mililitros o paciente urinou!”
Quando era criança, em Tarumirim, no interior de Minas Gerais, Alexsandro brincava de cientista com os peixes que pegava no córrego da fazenda em que morava. Repetia o que havia aprendido com as experiências de Mendel, e promovia o cruzamento de peixes com cor de olhos diferentes, para produzir um exemplar recessivo. Alterava os formatos das caudas, a cor das escamas e sonhava em descobrir uma espécie nova.
Na hora de decidir o que seria na vida, às vésperas do vestibular, disse ao pai que queria estudar biologia. Com um filho engenheiro e uma advogada, o pai achou melhor que ele fosse médico. Alexsandro aceitou. Formou-se na Universidade Federal do Espírito Santo. Fez especializações em urologia pediátrica e cirurgia reconstrutora genital na Espanha, nos Estados Unidos e na Bélgica. Na Europa, familiarizou-se com técnicas inovadoras ao operar croatas, sérvios e bósnios que tiveram o pênis mutilado durante as guerras balcânicas dos anos 90.
A experiência profissional o leva a dizer que é uma temeridade responder, de maneira padrão, à mais prosaica das perguntas de pais de recém-nascidos: é menino ou menina? “O obstetra, depois que bate no bumbum do neném, deveria dizer: ‘tem falo’ ou ‘não tem falo'”, afirmou.
Há pouco mais de quatro anos, Linda (que preferiu não revelar o seu sobrenome) estava desolada e sem esperanças. Havia mandado cartas para todos os programas de televisão, pedindo que a ajudassem a ser operada para mudar de sexo. Chegou a interpelar desconhecidos na rua para perguntar se sabiam de alguém que pudesse realizar a cirurgia.
Com 31 anos, Linda é morena, tem cabelos longos, negros e alisados, nariz fino, sobrancelhas desenhadas à pinça e unhas compridas e bem cuidadas. Suas mãos e pés, no entanto, são grandes. Tem os braços musculosos, os ombros largos e no rosto vê-se a marca azulada da barba, resultado de uma eletrólise ainda não concluída. “Acho que quando Deus estava me fazendo, se distraiu e trocou meu sexo”, Linda me disse.
Ela nasceu menino. Desde pequena, na Paraíba, sempre teve certeza de que era uma mulher. Sentia-se estranha num corpo de homem e não suportava se olhar no espelho. Ao falar sobre sua infância, só sorri quando menciona que era confundida com uma menina por amigas da mãe. Lembrou-se de uma vez, quando tinha 11 anos, botou um vestido e pintou os lábios de vermelho. Seu pai ficou possesso. Apanhou dele várias vezes, que lhe gritava: “Vira homem, fala que nem homem!” Os onze irmãos também nunca aceitaram os seus modos femininos.
Linda não sabe explicar o motivo, mas sua voz jamais engrossou. Ao falar com ela pelo telefone, ninguém diria que há um homem do outro lado da linha. Nunca fez xixi em pé e sempre ficou nervosa ao se tocar. Aos 16 anos, depois de meses ingerindo hormônios femininos por conta própria, pequenos seios brotaram em seu tórax. Insatisfeita, pediu a uma amiga travesti que lhe injetasse silicone industrial – comprado numa loja de autopeças – no peito, no culote e nos glúteos. Ficou como se tivesse duas bolas de rúgbi presas ao tronco. Mais alguns meses e o implante caseiro se deslocou, fazendo com que os seios artificiais parassem na altura do umbigo. Conheceu no Rio uma transexual que lhe contou as proezas do doutor Alexsandro.
Boa parte dos transexuais que chegam a Alexsandro no Hospital Pedro Ernesto resume assim a sua angústia: é como estar aprisionado dentro de um corpo do sexo oposto. O transexual é alguém que se olha no espelho e não se reconhece. Nasceu com cromossomos, órgãos genitais e hormônios de um sexo, mas tem a mente, as aspirações, desejos e inquietações próprias do outro. Ele é diferente do travesti que, em geral, está satisfeito com sua genitália e se sente confortável em se vestir como o sexo oposto. E é ainda mais diverso do hermafrodita (ou intersexo, o termo usado pelos especialistas), a pessoa com alterações anatômicas fora do padrão masculino e feminino.
A corredora sul-africana Caster Semeya, medalha de ouro nos 800 metros do Mundial de Atletismo de Berlim, no ano passado, é um exemplo. Exames clínicos mostraram que, apesar da genitália feminina, ela não tem útero ou ovários. Seu nível de testosterona é três vezes maior do que o da média feminina, pois é produzido por testículos internos atrofiados. A Federação Internacional de Atletismo deliberou que Caster pode ficar com a medalha de ouro. Mas não foi decidido se ela poderá voltar a competir.
O hermafrodita costuma nascer com um pênis e uma vagina, a chamada genitália ambígua. Nesses casos, Alexsandro é chamado para dar um parecer e, quando indicado, intervir cirurgicamente para determinar o sexo do bebê. A situação é considerada uma emergência médica porque os pais precisam da definição sexual para registrar a criança.
Certa vez, um juiz lhe deu 24 horas para decidir sobre um caso em que, segundo o magistrado, a questão era simples porque havia só duas hipóteses: ou o bebê era homem ou mulher. “Fiz cópias dos capítulos que se referiam ao assunto na literatura médica e mandei tudo para o juiz. Ele não me importunou mais”, disse o médico.
Em 2003, Alexsandro fez sua primeira cirurgia de mudança de sexo no Brasil. Um transexual havia conseguido uma autorização judicial para se tornar fisicamente mulher e foi encaminhado ao Pedro Ernesto, referência em urologia reconstrutora genital. Na especialização no exterior, Alexsandro já havia operado transexuais e por isso se dispôs ao trabalho. Nunca mais parou. “Aconteceu naturalmente”, disse. “Nunca pensei em trabalhar com pacientes transexuais.” Sua mãe e irmãos não sabem exatamente como ele ganha a vida.
“Não tem questão mais gratificante”, disse Alexsandro. “Os benefícios para a paciente são inegáveis, elas choram de felicidade. O agradecimento é sincero, vem de dentro, não é cordial. A emoção delas motiva o meu trabalho, é contagiante.”
Alexsandro diz que tem como modelo o homem universal da Renascença, encarnado por Leonardo da Vinci, que tinha conhecimentos em múltiplas áreas. Além das cirurgias no Pedro Ernesto, ele também opera na Santa Casa, é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Gama Filho, onde orienta uma dezena de alunos de mestrado e doutorado, e coordena os departamentos de urologia reconstrutora e trauma da Sociedade Brasileira de Urologia, seções nacional e estadual.
Aos 18 anos, Linda deixou Campina Grande e partiu para o Rio de Janeiro. Vendeu balas em sinais, foi feirante, pedreira e se prostituiu, mas era incapaz de usar seu membro ativamente em relações sexuais. Por isso, não conseguia clientes, que a abordavam perguntando pelo tamanho do seu pênis. Em 2004, descobriu ter o vírus da Aids.
Desde então, Linda ganha a vida fazendo megahair, implante de cabelo, em homens e mulheres. Mora numa quitinete que construiu sozinha na Ilha do Governador. “Carregava baldes de cimento com salto alto, top e shortinho do Tchan para não perder a pose”, contou.
Nos últimos quatro anos, o sofrimento por conta da genitália masculina se agravou. Ela contou, com a voz trêmula: “Achava que não ia aguentar esperar pela operação, queria cortar eu mesma. Se morrer, pelo menos morro sem. Isso não é vida.”
Para o caso de bater um desespero inescapável, juntou um arsenal de emergência. Guardou numa gaveta do quarto bisturi, xilocaína e agulha. “Lembrava do meu pai castrando porcos e depois batendo as cinzas do fogão a lenha para estancar o sangue. Pensava que poderia, um dia, fazer igual”, contou.
A incerteza quanto ao sexo aparece na literatura, médica ou leiga, desde a Antiguidade. Na mitologia grega, Vênus Castina era a deusa que atendia às súplicas das almas femininas trancadas em corpos masculinos. Tirésias foi transformado em mulher como punição. Ao apreciar os deleites do prazer feminino, foi castigado e voltou a ser homem. O imperador romano Heliogabalus se casou com um escravo e assumiu as tarefas femininas do matrimônio. Ele gostava de ser chamado de rainha e teria oferecido o Império Romano ao cirurgião que o transformasse em mulher.
O rei Henri III, da França, queria ser uma mulher e pedia para ser chamado de Sa majesté, no feminino, expressão que é adotada até hoje. Também na França, o chevalier d’Eon, conhecido como Madame Beaumont, serviu como diplomata e espião do rei Luis XV. Viveu 49 anos como homem e 34 como mulher. Quando morreu, choveram apostas na Bolsa de Londres acerca do seu verdadeiro sexo. Uma comissão atestou que d’Eon era, biologicamente, homem.
Num ensaio dos anos 20, Sigmund Freud parafraseou Napoleão Bonaparte e cunhou uma frase famosa: “Anatomia é destino.” Para ele, a definição da sexualidade de um indivíduo se ligava à superação do complexo de Édipo, à fixação do gênero que seria objeto da sua libido. Mas a anatomia, a definição biológica, serviria como realidade última e inapelável, em contraponto às vivências neuróticas ou psicóticas. Freud sempre reconheceu, no entanto, que todas as pessoas têm traços psíquicos masculinos e femininos, não importa a sua orientação sexual. Eles seriam resquícios do polimorfismo infantil, anterior à estruturação do complexo de Édipo.
A ambiguidade psicológica de qualquer pessoa seria uma herança genética da constituição da espécie. Antes de os humanos se constituírem em sexos diferentes, teria havido um ser andrógino. Os mamilos dos homens e o clitóris das mulheres seriam traços da antiga constituição única.
A cultura, dizem os antropólogos, também teria um grande peso na definição dos papéis sexuais. São a família, os clãs, os costumes, as tradições, em suma, a organização social, que levam um indivíduo a ser mulher ou homem. Como, numa outra frase famosa, disse Simone de Beauvoir: “Não se nasce mulher: torna-se.”
A causa da desarmonia entre corpo e mente é desconhecida. Experiências científicas recentes apontam para hipóteses biológicas, como a exposição aos hormônios esteróides da mãe durante a gestação. Uma das linhas de pesquisa sustenta que a formação de gênero ocorre no cérebro do feto, ainda entre a segunda e quarta semana de gestação, antes da genitália, que só começa a ser formada a partir da sexta semana.
A transexualidade foi descrita em detalhes, pela primeira vez, somente em 1966. O médico alemão Harry Benjamin descreveu o que seriam as características para se diagnosticar o “verdadeiro transexual”. Ele já defendia que a cirurgia de mudança de sexo era a “única alternativa terapêutica possível” para acabar com o sofrimento deles.
Segundo uma estimativa da Organização Mundial da Saúde, a OMS, um em cada 30 mil homens quer se tornar mulher. E uma em cada grupo de 100 mil mulheres deseja ser homem. Mas a estatística é imprecisa em relação ao número daqueles que, de fato, estariam dispostos a se submeter a uma cirurgia de mudança de sexo.
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, publicado desde 1952 pela Associação Americana de Psiquiatria, serve de guia para hospitais e seguradoras de saúde ao redor do mundo. Nele, a transexualidade é classificada como uma doença. O Código Internacional de Doenças, elaborado pela OMS, a define como “transtorno de identidade de gênero”. Na França, porém, desde fevereiro passado, ela não é considerada mais uma patologia graças à ação do Movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros.
No começo do ano, o presidente Barack Obama indicou uma transexual, Amanda Simpson, para o cargo de conselheira-sênior do Departamento de Comércio. Simpson foi registrada como homem ao nascer, há 48 anos, e passou por uma cirurgia genital. A sua nomeação, especula-se nos Estados Unidos, pode significar mudanças na legislação, no sentido de que a transexualidade deixe de ser considerada uma patologia clínica.
Mas é exatamente o fato de ser classificada como doença que permite que a cirurgia seja feita gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde, o SUS. Desde 1997, o procedimento é autorizado pelo Conselho Federal de Medicina como solução terapêutica para adequar a genitália ao sexo psíquico.
As intervenções cirúrgicas só são possíveis se atenderem a critérios estabelecidos por uma resolução do Conselho. Uma equipe composta por psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social deve produzir um laudo unânime sobre a necessidade do procedimento.
O candidato ou candidata deve apresentar uma boa saúde mental, mas num quadro de desconforto extremo com seu sexo anatômico. Precisa manifestar a vontade de eliminar os genitais, o que significa perder as características primárias e secundárias do próprio sexo. Durante dois anos, a pessoa deve se vestir, se apresentar e se comportar como alguém do sexo que pretende assumir. Se depois de tudo, o paciente ainda quiser levar o plano adiante, a cirurgia é autorizada.
O cirurgião Roberto Farina fez, em 1971, a primeira cirurgia de mudança de sexo no Brasil. Foi condenado a dois anos de reclusão por “lesões corporais graves”, num processo movido pelo Conselho Federal de Medicina. Posteriormente, Farina foi absolvido e a Justiça reconheceu que não houve perda do pênis, visto que o órgão era inútil e que a cirurgia era a única maneira de aliviar a angústia do paciente.
“É comovente como os pacientes usam argumentos tão variados para um mesmo sentimento”, disse o psiquiatra Miguel Chalub, um dos responsáveis pelos laudos para as cirurgias do Pedro Ernesto. “Eles falam coisas do tipo ‘foi um erro da natureza’, ‘é como se eu tivesse nascido com dois narizes, preciso consertar’, ‘sou uma mulher com um ponteiro a ser ajustado’ ou ‘ isso é carne morta, uma verruga’.”
Ainda que os médicos possam diagnosticar o transtorno, não existem testes objetivos para provar o resultado. Do ponto de vista clínico, não há como ter absoluta certeza se a pessoa é realmente transexual. Os médicos se valem da experiência e da sensibilidade para fazer a triagem entre pacientes mentalmente saudáveis e os psicóticos, que são recusados para a operação.
“Quando eles chegam falando coisas do tipo ‘Isso aqui cresceu de um dia para o outro, preciso tirar’, algo está errado”, disse o psicanalista Sergio Zaidhaft, referindo-se aos psicóticos. Ele fornece laudos psiquiátricos para os candidatos à cirurgia no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Em março de 2003, Alexsandro montou o Grupo de Atenção Integral à Saúde das Pessoas que Vivenciam a Transexualidade, conhecido pela sigla GEN. “No início, o ambulatório onde as transexuais eram atendidas virou um point de freakshow“, ele disse. Resolveu então fazer palestras para o pessoal do hospital, e explicou a questão da transexualidade a agentes de segurança, técnicos de raios X, enfermeiros, maqueiros, ascensoristas, secretárias e mesmo diretores.
Um dia, ele entreouviu o seguinte diálogo: “Ali é o ambulatório dos travecos?”, perguntou um segurança. “Traveco nada, rapaz, é transexual!”, respondeu o outro. Os pelos do braço do médico se arrepiaram quando contou a história.
“Foi tudo difícil, muitos profissionais não viam com bons olhos o programa, foi muito sofrimento, não sei como não desisti”, disse. “Mas nossa ação foi ganhando repercussão, apresentávamos muitos trabalhos em congressos médicos, e as pessoas passaram a bater à nossa porta.”
Desde a criação do GEN, Alexsandro operou oitenta pacientes. Hoje tem 140 em acompanhamento pré-operatório. A fila de espera é, em média, de dois anos. Ela inclui professores universitários, modelos, engenheiros, mães de santo, maestrinas, advogadas, domésticas, cabeleireiras, prostitutas, donas de casa e estudantes.
A maioria tem um histórico parecido: teve que lidar com a rejeição familiar, o que fez com que saíssem de casa cedo, abandonassem os estudos e tentassem modificar a aparência física por conta própria. Na vida adulta, a maioria teve dificuldades em arrumar trabalho. Além do preconceito pelo aspecto físico, documentos com um nome incompatível com a figura afastam ainda mais as possibilidades. A situação provoca um sofrimento psíquico maior.
Transexuais de todo Brasil são atendidos às quartas-feiras pela manhã no Hospital Pedro Ernesto. A maioria tem aparência andrógina. Vinte e cinco deles moram fora do Rio e têm as passagens reembolsadas pelo Sistema Único de Saúde.
Antes de começar a maratona de consultas e exames, Alexsandro contou que uma das cafetinas mais populares de Copacabana o procurara, com uma mala de dinheiro, para furar a fila da operação. Mesmo que ela quisesse pagar pela cirurgia, deveria cumprir a exigência dos dois anos de acompanhamento terapêutico.
Na fila de Alexsandro estão também pacientes com problemas diversos que, igualmente, exigem cirurgias urológicas reconstrutoras. Fez questão disso para evitar a segregação. “Não apoio uma divisão separada, como faziam com os tuberculosos antigamente”, explicou, “porque a fila misturada é uma forma de inclusão social.”
Muitas de suas cirurgias são reparos de operações malfeitas. É o que deve ocorrer com Jane, uma mulher de 58 anos, magra, baixa e de aparência frágil que passou por uma cirurgia de troca de sexo no ano passado. Como não teve auxílio para tomar banho e ir ao banheiro, ela acabou perdendo o molde que mantém a forma do canal vaginal aberto até a cicatrização. A pele teve uma aderência e o canal fechou completamente.
Jane tem uma genitália como a de uma boneca, não tem mais pênis ou vagina. Consegue urinar porque o orifício da uretra foi preservado. “Ficou feio, sem forma, não posso mostrar para ninguém” disse ela quando tentava marcar uma cirurgia reparadora com Alexsandro.
Em uma manhã de março, a sala de espera estava lotada. Havia pacientes com câncer peniano, disfunções urinárias, falos malformados e travestis que queriam aumentar o pênis. Numa cadeira estava uma advogada que só se traveste quando chega à rodoviária do Rio. Em sua terra natal, vai ao fórum todos os dias de terno e gravata. Noutra, sentara-se uma prostituta que trabalha no Leme e que dobrou seu cachê depois de ter sido operada pelo doutor Alexsandro.
Sentado no final da fila, um moreno alto chamava a atenção pelo porte e beleza. Havia sido chamado para posar nu em uma revista masculina e, ao saber que o cachê era condicionado ao tamanho do pênis, injetou silicone industrial no membro. O resultado foi como o de uma elefantíase, que deformou e inutilizou seu órgão sexual.
“Ser operada pelo doutor Alexsandro é grife, tem glamour”, disse K. que aguardava a sua primeira consulta com o médico. “Ele faz as periquitas mais bonitas do Brasil, ficam melhores que as originais.” K. é alta e forte, usava salto alto, saia jeans curta, uma blusa verde colada ao corpo e sutiã com enchimento. Além de hormônios femininos, tomava também finasterida, para retardar a calvície em andamento. Ao avistar o cirurgião, seus olhos se encheram de lágrimas. “Deixa encostar nessas mãos de fada, doutor”, pediu.
A primeira a entrar no consultório foi uma mulher de cabelos loiros compridos, magra e de rosto fino, que usava um vestido de alcinha estampado com flores. Bonita e feminina, era praticamente impossível identificar características masculinas na sua aparência. Casada há dez anos, e operada há dois, passou a ter casos extraconjugais.
“Preciso me autoafirmar enquanto mulher, doutor”, justificou ela durante a consulta anual de revisão. Disse que tinha uma vida sexual muito satisfatória. Tinha orgasmos com facilidade, se masturbava e não precisava mais de lubrificantes para a penetração.
Quando a mulher deixou a sala, Alexsandro comentou: “A operação fica cada vez melhor com o passar do tempo. A metaplasia, uma alteração celular, faz com que a pele tenda a assumir a função do tecido original e se adapte ao ambiente novo.”
O paciente seguinte, A., entrou com os ombros curvados e tinha olheiras profundas. Era difícil dizer se era um homem afeminado ou uma mulher masculinizada. Falava bem baixo, tinha cabelos encaracolados curtos e usava roupas unissex – calça jeans, blusa de algodão preta larga e tênis.
A. explicou que não se travestia todo o tempo para “não bagunçar a cabeça” do filho. Só vestia as roupas da mulher quando não havia ninguém em casa. Seu plano é fazer a cirurgia, virar mulher, mudar de cidade e começar uma vida nova. Desde que começara o tratamento hormonal, sua esposa havia lhe pedido para dormir no sofá da sala. Ela vivia à base de tranquilizantes.
A. é um transexual especial. Ele não é só um homem que quer ser mulher. É um homem que quer virar lésbica. Está convicto de que é uma mulher que ama outras mulheres. No que depender dele, seu casamento continuará.
Casos de gênero que parecem confusos para um leigo são rotina na vida de Alexsandro. No intervalo de uma de suas consultas, ele se lembrou da história de duas transexuais, ambas nascidas homens, que haviam se conhecido na sala de espera do ambulatório de urologia do Pedro Ernesto. Uma era estudante da Universidade Federal Fluminense e já havia sido operada. A outra – que ainda mantinha o órgão sexual masculino – era uma psicóloga gaúcha. Foram morar juntas. Anos depois, tornaram-se um casal lésbico quando a segunda também passou pela cirurgia.
Em 1952, soube-se da primeira cirurgia de mudança de sexo no mundo. Na Dinamarca, George se tornou Christine Jorgensen e, no ano seguinte, foi eleita A Mulher do Ano por diversos jornais e revistas. A história se espalhou e surgiram milhares de candidatos à operação.
Até os anos 70, a cirurgia de alteração do sexo masculino para o feminino consistia na amputação do pênis e a modelação de um orifício funcional. Na década seguinte, passou-se a construir um feixe de tecidos semelhante ao clitóris – como exibiu a modelo Roberta Close nas páginas da Playboy em 1984. Atualmente, o desafio é reproduzir esteticamente uma vagina, preservando as terminações nervosas para garantir o prazer sexual.
Depois do procedimento, as pacientes usam lubrificantes à base de gel até passarem a se umedecer sozinhas. A origem da secreção não é certa. Pode ser suor, dilatação dos vasos sanguíneos ou líquido seminal produzido pela próstata, que não é retirada.
As pesquisas e a perícia de Alexsandro foram reconhecidas pela International Society for Sexual Medicine, que premiou sua técnica de vulvoplastia – procedimento que refina a parte interna do assoalho da vulva. “No exterior, a depilação é menos cavada e a cicatriz é mais central. Aqui, me preocupo em deixar a cicatriz na virilha, onde é mais fácil escondê-la”, explicou.
Outro trabalho seu foi premiado: o de reaproveitamento de tecidos do pênis de transexuais (que, em geral, seriam jogados fora) em pacientes mutilados recentemente. Ele também é editor da revista Urologia Contemporânea e diretor sul-americano da World Professional Association for Transgender Health.
Antes da cirurgia, médico e paciente sentam para definir os detalhes. Pode-se escolher entre lábios vaginais maiores ou menores, montes de Vênus mais lautos ou mais retos. “A escolha da vagina é bem individual”, disse Alexsandro durante um jantar num centro comercial. “Algumas têm o mito da supermulher e querem vaginas com uma cavidade ampla, para serem penetradas por pênis grandes. Querem transar com vários homens. Outras têm fixação pelo orgasmo, outras querem apenas uma vagina funcional, pois querem continuar com o sexo anal. E há aquelas que só de não ter o pênis já estão contentes.”
Linda pertencia a essa última categoria. “Não quero saber como vai ficar e sim o que não vai ficar”, ela me disse na véspera de sua cirurgia. “Só de cortar está ótimo, se tiver vagina melhor ainda.” A operação havia sido antecipada devido ao seu estado emocional, que se deteriorara. Os especialistas que a atendiam alertaram sobre o risco de suicídio.
Na sexta-feira, 28 de fevereiro, antes de o sol nascer, Linda já estava de banho tomado, enrolada em uma toalha em um dos leitos do Hospital Pedro Ernesto. Estava com os pés na cabeceira para ativar a circulação e evitar varizes. A operação estava marcada para as 9 horas. Os calmantes que tomara na véspera pareciam insuficientes. A cada dez minutos, ela olhava a hora na tela do celular. “Estou louca para me jogar na sala de cirurgia”, disse. “Meus problemas vão acabar”, falou.
Às 9h30, o doutor Alexsandro entrou e Linda pulou na maca. “É uma cirurgia de caráter mutilante e irreversível, não trabalhamos com arrependimentos”, ele disse. Ela mostrou estar segura. “Agora só vai tocar de novo no chão na segunda-feira”, disse Alexsandro encarando sua paciente de soslaio.
Deitada de barriga para cima, ela foi empurrada pelos longos corredores, pintados de verde-musgo e com a tinta descascando, até o centro cirúrgico. Ao longo de todo caminho, balbuciava para si mesma: “Nunca mais, Jesus Cristo, nunca mais.”
Às 10h30, sedada, ela foi levada para a sala de cirurgia, que, ao contrário de todas as demais, tinha as vitrines que dão para o corredor tapadas por um plástico azul. “O Pedro Ernesto é um hospital universitário, e normalmente as pessoas podem acompanhar as cirurgias”, explicou Alexsandro. “Mas se eu deixar, isso aqui vira um show de bizarrice. Não quero alimentar o mito transexual.”
Apesar da equipe numerosa – três anestesistas, dois instrumentadores, duas enfermeiras, um técnico de enfermagem, o doutor Alexsandro e outro cirurgião, e dois residentes em urologia – ouvia-se apenas uma música tranquila ao fundo, e os batimentos cardíacos de Linda através dos aparelhos. “O ambiente está bem próximo do ideal”, disse o cirurgião. “Já aconteceu de profissionais, por motivos religiosos, se recusarem a trabalhar nessas operações.”
Ele reuniu a equipe para as últimas orientações e puxou o banco ergonômico de couro preto, que traz de casa. “Como o pênis dela é acima da média, e tem um bom prepúcio, vamos usar a técnica da inversão da pele peniana”, explicou.
Demóstenes Apostolides, urologista da Marinha, começaria a cirurgia. Era seu último dia no Hospital Pedro Ernesto, onde passou um ano no programa de especialização em cirurgia reconstrutora genital criado por Alexsandro. É a única formação em cirurgia dessa natureza no Brasil.
Alexsandro cedeu seu banco ao colega. Apostolides sentou-se, puxou a máscara para cima do nariz e começou. Ele desmembrou o pênis por dentro do períneo, descascando-o como se fosse uma banana. A ideia era tirar as cartilagens, deixá-lo vazio. Os tecidos e a pele exteriores do pênis seriam mais tarde empurrados de volta para o períneo, por cima do reto, num espaço moldado com o dedo que faria as vezes de canal vaginal.
De quando em quando, Apostolides pedia a Alexsandro para verificar a precisão dos cortes e orientar os próximos passos. Linda jazia imóvel, com as pernas abertas em posição ginecológica, coberta por lençóis azuis da cintura para baixo. O cheiro forte de sangue quente deixava o ar úmido e espesso, mas não inibia o apetite dos médicos. Durante quinze minutos, trocaram experiências gastronômicas, endereços de restaurantes e pratos que valiam a pena serem experimentados.
Na segunda hora de cirurgia, Alexsandro assumiu o controle. O silêncio dominou a sala e a equipe formou uma rodinha em volta do chefe. Seus movimentos pareciam orquestrados. Ele empunhava bisturis, linhas e tesouras como se fosse ambidestro, com segurança e delicadeza notáveis. Por debaixo das máscaras, a equipe cochichava: “Aquilo ali é o quê?”, “Você viu o que ele fez com a uretra?”, “Nossa quem inventou isso?” Ouviu-se até um “isso me dá até saudades do meu namorado”.
Alexsandro cortou um triângulo no meio da glande e costurou as duas pontas ao avesso, formando um delicado clitóris. Os testículos foram extraídos com a ajuda de um bisturi elétrico que, ao queimar o tecido, inundou a sala com um cheiro de carne esturricada. A pele do escroto foi esticada e usada para formar os grandes lábios. Os pequenos lábios foram feitos a partir do prepúcio e parte da uretra.
A cada meia hora, Alexsandro reclinava o corpo para trás, tomando um pouco de distância para verificar a simetria. “Quem é de fora vê só barbárie, mas o olho treinado vê beleza”, comentou. A hora final foi gasta costurando tudo o que foi desmembrado.
Depois de seis horas, Alexsandro deu o último ponto e declarou a cirurgia terminada. Contemplou a joia que acabara de lapidar, virou-se para um dos residentes e indagou, provocativo : “E aí, Felipe?” O rapaz não se intimidou. “Não me leve a mal, doutor, mas o conjunto da obra…”, disse. Todos riram alto.
A enfermeira residente, Aline Rodrigues, de 24 anos, tinha dúvidas sobre questões de fundo. “Não sei se o SUS deveria pagar por essa cirurgia”, ela me disse. “Falta verba para tantas coisas mais importantes. Para mim, todo homem tem ciúmes do próprio pênis, nunca vi um que quisesse tirar. Fora que não adianta, não vai ser mulher, não pode parir”, disse.
À meia-noite, Linda acordou da anestesia. As outras cinco camas da enfermaria estavam ocupadas, mas todos dormiam. Em meio à escuridão, deslizou lentamente a mão direita por baixo do lençol e seus dedos hesitantes tatearam até o meio de suas pernas. “Estou livre, cortaram”, disse. Sorriu e voltou a dormir.
Pacientes amputados costumam ter a sensação de membro fantasma. Sentem sensações, dor e incômodo na parte amputada como se ela ainda existisse. Transexuais não sentem dor fantasma. “Isso só comprova que, para elas, o pênis de fato não fazia parte do corpo”, explicou Alexsandro. Ele considerou a cirurgia de Linda um sucesso.
No dia seguinte, Linda dava gargalhadas que eram ouvidas em todo o 5º andar do Pedro Ernesto. Disse estar com a impressão de sorrir por dentro. As dores do pós-operatório, os fios da sonda e do soro, não eram nada comparados à satisfação com que ela experimentava seu novo corpo.
Durante a troca de curativos, pediu que tirassem uma foto do resultado com o seu celular. “Eu quero ver a cara dela“, disse. Quando viu o trabalho de Alexsandro, seu rosto se iluminou. “Está perfeita, mesmo inchada já está bonita”, disse, armazenando a imagem como tela de fundo do telefone. “Agora quero ver quem não vai deixar eu usar o banheiro feminino! Vou fazer xixi de porta aberta”, gabou-se e gargalhou novamente.
Quatro dias depois, Linda continuava radiante. “Nasci de novo, agora vou começar a viver de verdade”, falou. Havia feito escova no cabelo e modelado a linha da sobrancelha. Ela me mostrou sua carteira de identidade, colocando o polegar sobre a foto em que aparecia menos sorridente e mais masculinizada. Ali, estava seu nome de registro: Orlando Vicente. Depois de operadas, o passo seguinte das pacientes é dar entrada na Justiça para a mudança de documentos.
Como não há legislação específica, os transexuais ficam à mercê da deliberação de um juiz quando pedem a mudança oficial do nome. As interpretações são as mais diversas. Há os que permitem mudar nome e sexo nos documentos, mas não no cartório. Outros que obrigam a pessoa a escrever “transexual” no quesito “sexo”. E os irredutíveis que negam todas as possibilidades.
A alegação desses últimos é que se deve preservar o interesse de terceiros. Por exemplo, evitar que um desavisado se case com um transexual. Ou que um esportista participe de competições em categorias indevidas. Alexsandro conseguiu o apoio da Defensoria Pública do Rio para seu programa de assistência aos transexuais. O que fez com que, com o laudo da operação, as pacientes levem de quatro a cinco meses para terem seus novos registros em mãos.
“Ninguém se apresenta com a genitália exposta”, disse Heloísa Barboza, professora de direito civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. “O que define homem ou mulher não é um pênis ou uma vagina. É o que a pessoa é.” Como Heloísa Barboza é defensora da causa transexual, muitas vezes ela é considerada uma militante gay.
“Enquanto o Ministério da Saúde reconhece a minoria transexual, o jurídico não, o que é a cara do Brasil”, ela disse, em sua casa. “Se a pessoa não obtém sua requalificação civil, o processo de transexualização não está completo.” Segundo a professora, o maior entrave é de ordem moral: “É preconceito, desinformação e ignorância.”
Na Inglaterra e Espanha, há leis protetoras sobre a identidade de gênero. Não é preciso que a pessoa se submeta à mudança de sexo para obter novos documentos. Heranças, pensão e acesso a plano de saúde do cônjuge são garantidos.
Depois de anos convivendo com transexuais, Heloísa Barboza formou uma opinião distinta do estereótipo vigente. Acha que, de fato, eles são pessoas conservadoras, que procuram fazer a congruência entre sexo e gênero para se enquadrarem no padrão heterossexual. “Elas sofreram tanto que buscam o modelo de maior aceitação, querem ser uma mulher como a Doris Day”, disse. “Elas não são feministas, costumam ser recatadas, delicadas e menos exuberantes do que as travestis.”
Luciana passou pela cirurgia há três anos e virou mulher. Mas não ficou totalmente satisfeita com o novo corpo. Magricela, adoraria ter os seios maiores, engrossar um pouco as pernas e fazer escova definitiva nos cabelos. Aos 47 anos, ela é evangélica, e guarda a virgindade para a noite de núpcias. Ganha a vida como costureira, mas seus rendimentos mensais são insuficientes para comprar os hormônios femininos que terá que tomar para o resto da vida.
Ela mora na Marambaia, subúrbio ao sul do Rio, em um casebre feito de tijolos, telhas Eternit, porta e janelas de papelão. Tudo o que possui são três máquinas de costura, uma cama coberta com lençóis gastos, um lampião, um ventilador, fogão e geladeira antigos. Ela largou a escola, no interior da Bahia, porque não suportava ouvir seu nome de batismo na chamada. A cada vez que a professora dizia “Carlos Alberto”, tinha vontade de morrer.
Apesar da vida pobre, Luciana se recusa a ir ao banco para buscar os vencimentos do seguro-desemprego, só para não ser humilhada. “Vão chamar aquele nome e vai aparecer outra coisa; prefiro não ir”, ela me disse, em sua casa. Também não vai a postos de saúde e por pouco não abriu mão de tirar carteira de identidade. Tremia só de pensar em ter que se apresentar para o alistamento militar. Assim que os sargentos responsáveis pela triagem a viram, logo a dispensaram. “Eu pago meus impostos, mas não me sinto uma cidadã. É um desamparo só”, falou.
Uma semana depois da cirurgia, Linda recebeu alta. Antes de ir embora, teve uma aula de higiene pessoal com uma enfermeira. “É como se você estivesse ensinando para uma criança”, explicou-me a chefe de enfermagem Cristiane Amorim. “É tudo novo, elas não sabem nem como se limpar.”
Apesar da ardência causada pelos pontos, Linda se emocionou ao sentir o xixi escorrer por entre as pernas. Com medo de estragar a cirurgia ao subir as escadas do ônibus, pediu 50 reais emprestados a uma vizinha para voltar de táxi para casa.
Alexsandro se prepara para ir, agora em maio, à Costa Rica. Uma vez por ano, ele se junta à organização Médicos sem Fronteiras e viaja o mundo operando crianças com anomalias genitais. Além de trabalhar no Pedro Ernesto, mantém um consultório privado. Apesar de não revelar quanto cobra, uma cirurgia de mudança de sexo pode custar mais de 50 mil reais.
Linda ainda continuará com os tratamentos psicológico, psiquiátrico e médico por muitos anos. “Você acha que eu posso dar alta para um paciente desses? Isso aqui é um compromisso de vida”, disse Alexsandro.
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