De Pixote a Tropa de Elite, centenas de amadores, profissionais e aspirantes a atores passaram pelas mãos de Fátima Toledo. “O artifício da atuação é um mal”, ela diz. Foto de J. R. Duran
Como não ser ator
No curso de Fátima Toledo, a preparadora de elenco de nove entre dez filmes nacionais, é proibido representar
Emilio Fraia | Edição 28, Janeiro 2009
O curso dura cinco dias, de segunda a sexta-feira, no período da manhã. “Olhem os medos, o abismo, o lado sombrio em vocês: não adianta fazer um trabalho de ator sem isso”, ensina Fátima Toledo com a voz firme. O aquecimento, “baseado na bioenergética”, tem exercícios de meditação e vitalidade, algum alongamento e cinco minutos de “cachorrinho”. O “cachorrinho” consiste em ficar de quatro, a língua para fora, respirando, respirando. Um pedaço de guardanapo de papel é posicionado no chão, estrategicamente, para receber as estalactites de saliva.
O próximo passo são quinze minutos de kundalini, “meditação para liberar a energia primal, que está aprisionada”. De olhos vendados, pés ancorados no piso de ardósia, joelhos flexionados, vamos mexendo a pélvis em um vai-e-vem contínuo, para frente, para trás, guiado por sons frenéticos de cítara, quase um transe. “Às vezes a kundalini dá enjôo”, Fátima explica, “ou a pessoa fica excitada. As mulheres podem ficar menstruadas antes do tempo. Mas precisamos disso para destravar o sensorial, relaxar, soltar a barriga, os lábios, ficar inteiro. Porque chegamos aqui aos pedaços.”
Fátima Toledo, a preparadora de elenco que orientou uma centena de atores e não-atores em 35 filmes, entre eles Pixote, Cidade de Deus e Tropa de Elite, acende um cigarro. Durante os cinco dias é assim. Ela aparece no fim do aquecimento (conduzido por um assistente), quando os colchonetes azuis estão sendo empilhados, e acende um cigarro. A escola fica em um sobrado no bairro da Vila Mariana, em São Paulo. Fátima chega, é séria, tem cerca de 1,60 metro de altura e o cabelo curto. Toma café, usa uma calça preta larga, blusa cinza, havaiana dourada e acende outro cigarro. O primeiro dia do curso é só de papo, uma introdução ao método.
“Para o tipo de trabalho que vamos fazer, o artifício da atuação é um mal”, diz ela com sua voz rouca. “Neste método, não existe a idéia de personagem. No cinema verdadeiro, a pessoa não deve pensar em criar o personagem, tem que viver realmente a situação. São situações fictícias, não somos nós, mas também não é um personagem, porque estamos ali, vivendo aquilo tudo. Depois do ‘corta’, acabou: o ator volta à sua vida, mas naquele momento é a própria pessoa quem está realmente vivendo aquilo.”
Entre os treze alunos, que ouvem tudo sem piscar, tossir nem soluçar, estão Simone e Vilma, atrizes que vieram do Rio para o curso, a cabeleireira Juliana, Camila, uma administradora, Renato, que estudou relações internacionais, Itapoã, “mecânico corporal”, Adriano e Tatiana, recém-formados em uma escola de teatro, e Angelita, que está ali, como disse, “para se descobrir”.
Fátima Toledo pede desculpas, e avisa que vai acender outro cigarro. Tem 55 anos, dois cachorros, é alagoana, foi casada três vezes e não tem filhos. Chegou a São Paulo com 14 anos. Antes, por causa da profissão do pai, engenheiro civil dos departamentos nacionais de águas e esgoto da época, morou em Salvador, Brasília, Natal e Fortaleza. Estudou comunicação visual no Mackenzie e frequentou as aulas do ator e professor russo de teatro Eugênio Kusnet. Sua história no cinema começa em 1980, com Pixote, de Hector Babenco. Na época, tinha 27 anos, queria ser atriz e dava aulas de teatro na Fundação para o Bem-Estar do Menor, a Febem.
Em busca de material para Pixote, Babenco foi algumas vezes à Febem. Em uma das visitas, passando pela porta entreaberta de uma sala, viu uma moça e um grupo de meninos fortes e mal-encarados. “A Fátima fazia um trabalho de terapia ocupacional com meninos-problema da Febem”, recordou Babenco, na sala de sua produtora. “Percebi que ela poderia me ajudar com as crianças do filme.”
De início, Fátima estudou Stanislavski, procurou no método do ator e diretor russo exercícios para dar aos meninos. A coisa não ia bem. Era difícil para as crianças, recrutadas depois de testes em bairros da periferia de São Paulo, se habituarem às idéias de personagem e roteiro. Os prazos começavam a apertar. Fátima decidiu que leriam O Pequeno Príncipe. Depois, foram ao zoológico, cada um escolheu um bicho, ficaram um mês tentando entender como rasteja a cobra, se o hipopótamo no banho mexe a orelha, e quais seriam os movimentos e o comportamento dos outros animais.
“Ali eu resolvi que não tinha roteiro, que não tinha personagem”, conta. A solução foi fazer com que os meninos fossem eles mesmos, que agissem e falassem da forma que sabiam. “Aprendemos que a fala deles muitas vezes é mais completa do que a criada por qualquer roteirista.” O seu método começava a surgir, não a partir de uma teoria, mas de uma necessidade.
Para o papel-título, foi escolhido Fernando Ramos da Silva, de 12 anos. O filme foi indicado para o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, em 1982, e alçou o garoto ao estrelato, incluindo um contrato com a Rede Globo. Fernando mudou-se com a família para o Rio. Mas tinha dificuldades para decorar os textos (mal sabia ler) e não se adaptou à nova rotina. Voltou para Diadema, envolveu-se em assaltos e aos 19 anos, em 1987, foi morto por policiais dentro de casa.
“Durante muito tempo me senti responsável pelo Fernando”, disse Fátima Toledo. “A imprensa não o chamava de Fernando, mas de Pixote; pessoas batiam nele, diziam que ele não era o Fernando, mas sim o Pixote. Ele me ligava chorando. Depois, na Globo, alguns atores olhavam torto para ele, o maltratavam.” Fátima contou ainda que, com o tempo, entendeu que “o destino dele seria o mesmo com ou sem o Pixote“, mas que o filme fez com que “cumprisse sua missão com um pouco mais de poesia”. A experiência deixou uma lição: “Agora, quando fazemos um filme, está claro que não estamos formando atores.”
O curso começa para valer na terça-feira. Fátima acende um cigarro. Inspirada em exercícios de Stella Adler (a única atriz americana treinada pessoalmente por Stanislavski e orientadora de Marlon Brando no começo da carreira), a fase inicial é o que Fátima chama de “Quem é você”. Camila é uma das primeiras. Levanta e, de olhos fechados, deve completar as frases “Eu sou…” e “Eu estou…”. Deve falar sem parar e o que vier à cabeça. “Eu sou… insegura. Inteligente, corajosa. Alta, chata, impaciente. Verdadeira, curiosa, teimosa, apressada, carinhosa. Eu estou… no lugar que eu queria estar”, suspira, pára, começa a chorar. “Eu passei por muitas coisas até ser o que eu queria ser!” O choro corta a fala, Fátima coloca a mão sobre o peito de Camila e lhe diz baixinho: “Preciso acreditar mais em mim, preciso ser mais forte.”
Um a um, nós vamos à frente. A preparadora dá novas instruções: “Eu amo…”, “Eu odeio…”, “Eu quero…”. “Paz no mundo, mais arte, educação!”, Vilma grita, no melhor estilo passeata estudantil. Fátima interrompe: “Não! Você está mentindo! Essas são coisas impostas, não é verdade, não está em você.” Os alunos se sucedem. “Eu amo… minha mãe, ficar sozinha, ter esperança, ser entendida.” “Eu odeio… rúcula, quando me chamam de psicótico, barata, nhoque, meu pé.” No fim, a mesma mão no peito, a voz baixa, quase um sussurro: “Eu preciso ser mais forte, eu preciso me respeitar mais, eu preciso…” Fátima diz que essa parte do trabalho é uma espécie de diagnóstico. “Vejo se a pessoa é agressiva, medrosa, se sabe pedir, dizer não.”
A preparadora conta que “a técnica do método é, antes de mais nada, virar gente”. Esconder-se atrás do personagem é proibido. “O espectador deve enxergar pessoas, não atores. A cena é um resultado da vivência. O personagem impede que a pessoa viva a situação e descubra o seu próprio depoimento. Stanislavski diz ‘se fosse eu…’; eu digo ‘sou eu'”, enfatiza.
Para ativar os atores, Stanislavski trabalhava sempre com uma suposição. No livro A Preparação do Ator, publicado pela primeira vez em 1936, exemplificou: “Suponhamos que neste apartamento tenha morado um homem que ficou louco, e levaram-no para um hospício. Se ele tivesse fugido e estivesse atrás daquela porta agora, o que é que vocês fariam?”
Fátima Toledo observa que a falha do “se fosse eu” de Stanislavski está na “possibilidade de não ser”. “Há a chance do ator não ser! O ‘eu sou’, por outro lado, desperta o sensorial imediatamente. É real! É como na vida!”, diz, e cita como exemplo a preparação do ator Wagner Moura para o filme Tropa de Elite. “Stanislavski diria ao ator: ‘Se você fosse o capitão Nascimento.’ Mas isso tiraria a força do personagem”, argumenta. “Hoje em dia não temos mais esta suavidade. As pessoas não estão mais sentindo, ouvindo, não estão vendo. O ‘se’ dá segurança. Quando tiramos o ‘se’, a pessoa toma uma atitude.” Foi o que Fátima fez para que Wagner Moura virasse o capitão Nascimento.
Oito alunos estão em pé, em duas filas de quatro. Os da frente, de costas para os de trás, não podem se virar. O jogo é: ir ou ficar. Quando a música (meio new age) chegar ao fim, os da frente vão partir, abandonando os de trás. Ou vão permanecer com o parceiro, que deve se concentrar para não permitir que o companheiro da frente vá embora. Fátima surge, a voz rouca, anda de um lado para o outro. Tudo é sério. Durante a aula, ela nunca ri. Gesticula, grave. “Quem vai talvez não volte [pausa dramática]. E se você não for agora, talvez não vá mais. Às vezes as pessoas partem porque a gente deixa, dessa vez, não deixe! [gritando] Ou você olha para frente e parte, sozinho, ou fica e segue onde está. Os encontros não devem ser salva-vidas! Respeite você, depois ame o outro. Se você não for agora, você não vai nunca mais!” Cinco dos oito participantes choram. Três decidem partir, um fica.
Depois de Pixote, Fátima Toledo ficou dez anos longe do cinema. Foi trabalhar no departamento de marketing de um banco onde seu tio era gerente. No início dos anos 90, porém, Hector Babenco voltou a cruzar seu caminho. “Você conhece índio?”, perguntou. Fátima nunca tinha visto um índio na vida. “Então vai para o Pará.” Era o início de Brincando nos Campos do Senhor.
Fátima ficou dois meses vivendo em uma aldeia. O trabalho não diferia muito do que havia feito em Pixote, mas saíram as crianças e entraram os índios. O desafio era parecido: fazer com que alguém que jamais houvesse pisado em um set de filmagem pudesse representar. Pouco depois, em 1991, foi convidada para fazer Medicine Man (no Brasil, O Curandeiro da Selva), dirigido por John McTiernan, com Sean Connery e Lorraine Bracco como protagonistas e José Wilker num papel secundário. Devia, novamente, preparar um grupo de índios, fazê-los atuar. “Não tinha personagem, eram os índios mesmo”, conta.
Em Brincando nos Campos do Senhor e Medicine Man, Fátima entendeu que estava “levantando cenas”. Todo o trabalho com os índios era feito na aldeia, mas ela não sabia se conseguiria o mesmo efeito quando fosse para valer, na frente do diretor. Então, ensaiava as cenas com os índios, e nesse processo percebeu que nasciam situações e intenções que não estavam no roteiro. Babenco e McTiernan deram espaço e Fátima começou a realizar o que hoje desempenha com regularidade, o “levantamento de cenas”.
“O trabalho do coach americano é bem diferente”, ressalta Fátima. Nos Estados Unidos, muitos atores têm o seu próprio coach, ou então o preparador é contratado para ajudar o ator a superar problemas como montar a cavalo, aprender um sotaque ou plantar bananeira. “Preparação como a da Fátima é uma invenção brasileira”, considerou Christian Duuvoort, que também prepara atores – ele tem um método chamado “ator imaginário” – e foi responsável por treinar parte do elenco de Ensaio sobre a Cegueira, de Fernando Meirelles.
“Hoje, tenho espaço para discutir aspectos do roteiro; os meus atores podem criar cenas que não estão no roteiro”, diz Fátima. “O Brasil me deu essa possibilidade. Lá fora, é difícil o preparador ir para o set.”
Ela conta que no roteiro original de Casa de Alice, do diretor Chico Teixeira, havia uma cena em que uma personagem se refugia na área de serviço e prepara um veneno para dar à adolescente que está de caso com o seu marido. Depois, no que seria uma reviravolta interna, desiste de dar o veneno. “Para quê?”, Fátima questionou. “Vai ser um caminho complicado. Mostrar alguém que pensou em matar e desistiu. Por que tudo isso? Por que essa pessoa não explode de uma vez e não coloca toda sua dor em cima da outra personagem?” Teixeira concordou em eliminar a cena do envenenamento. “Não é que estivesse mal-escrita, é que ‘levantando’ a gente vê que não funciona”, conclui Fátima.
Ela fala que não tem condições de levantar todas as cenas de um filme. Por isso, os diretores entregam a ela uma lista das que consideram as mais importantes. Muitas são trabalhadas na própria escola, na Vila Mariana. Quando estão prontas, Fátima chama o diretor. Ele faz ajustes, corrige, dá o tom, muda a marcação. Antes de rodar, ela vai ao set com o diretor e os atores, ainda sem a câmera, e repassam as cenas.
O primeiro cigarro do dia tem um gosto especial. Fátima se apóia na janela e bate as cinzas. Olha para os alunos. O curso, que custa 1 200 reais, simula as etapas do trabalho de Fátima em um filme. É uma miniatura do método. Começa com o “Quem é você”; passa por exercícios que trabalham idéias como a partida, o amor, o abandono, o ódio, a dor (sentimentos e situações arquetípicos, segundo a preparadora); e culmina no “levantamento de cenas”. Estamos na quarta-feira e Fátima avisa que precisa de um pouco mais de “Quem é você” para conhecer melhor a turma. Diz não estar satisfeita porque as pessoas estão muito defensivas, “precisam mostrar mais verdade!”.
Um grupo de alunos vai à frente e Fátima distribui bexigas. Cada aluno recebe três bexigas. Deve encher cada uma delas com um sonho, algo importante, que se queira muito, realmente sério. É preciso cuidar desse sonho, não deixar que ele escape. É preciso mantê-lo por perto e nas mãos. Você tem lutado por ele?, ouve-se. Alguns abraçam as bexigas, acariciam; outros equilibram na ponta dos dedos; Juliana faz embaixadinha. A bexiga de Camila estoura. Ela começa a chorar.
Outro grupo de alunos observa, esperando para atacar. O exército recebeu instruções secretas para, quando for dado o sinal, correr e estourar os sonhos dos colegas. Os soldados se preparam, alongam, estalam os dedos, o pescoço. Angelita, vaidosa, pergunta: “Meu nariz está sujo?” Olham fixamente para o flanco inimigo, onde se ninam bexigas, sonhos crescem e tudo é colorido e mágico. Fátima abre espaço para o pelotão e grita: “Vai!” O que se vê então é a maior batalha desde Waterloo, só que com bexigas coloridas. Angelita é implacável, não deixa sobrar nada, esmaga os sonhos verdes, os vermelhos, trucida (com as unhas) os amarelos. Tiros espoucam. A guerra é sangrenta.
Entre os escombros, um farrapo de sonho (laranja) agoniza. Ao fim do ataque, Angelita faz um balanço da ofensiva: “Sobre os sonhos da minha colega”, diz, “eu vi que ela estava ali, com todo cuidado com o balãozinho dela; eu fui assim e tipo cheguei na vida dela e pá, estourei. Ela olhou para mim e não teve ação, senti no olhar, consegui enxergar dentro dela, lá no fundo, que ela teve raiva, mas não conseguiu pôr para fora, sabe.” A comandante Fátima é taxativa: “Você não ajudou!” Angelita abaixa a cabeça, estica entre os dedos um pedaço de sonho, dos azuis, e suspira: “Mas eu tentei…” Fátima Toledo busca o que chama de “verdade”: “Às vezes, a pessoa não está habituada a reagir. Na vida, nos submetemos a muitas coisas. Você falava [fazendo voz de idiota]: ‘Eu destruí seu sonho, eu destruí seu sonho’, e ria. O correto seria [gritando]: ‘Eu destruí seu sonho! Reage! Pelo amor de Deus bate em mim! Faz alguma coisa comigo, porra! Você viu o que eu fiz com você? Quer que eu faça de novo?’ Você tinha que ter ajudado a pessoa a reagir.”
Em 2002, com Cidade de Deus, Fátima Toledo ganhou fama. Para o diretor Fernando Meirelles, não há diferença entre o trabalho de Fátima Toledo e o de um coach tradicional. “Os coachs trabalham sempre em áreas específicas”, disse. “O tom da interpretação, o ritmo das cenas e tudo mais é decidido pelo diretor. Sempre. Lá fora e aqui.” Em O Jardineiro Fiel, Meirelles decidiu não usar um preparador porque se tratava de um elenco experiente. Ensaio sobre a Cegueira teve uma preparação para todos os extras que interpretariam cegos. “O elenco principal também participou, mas eram exercícios para ajudá-los a se habituarem a fazer os movimentos sem enxergar; não envolvia cenas do filme”, contou.
“Em Cidade de Deus, Fátima trabalhou por três semanas com os personagens principais, sobretudo nas cenas dramáticas”, lembrou Meirelles. “Ela veio para arrancar de cada um deles o máximo de emoção possível, sempre com aquela intensidade típica da Fátima.”
Cada diretor tem uma forma de se relacionar com o tipo de preparação que Fátima Toledo propõe. Para cineastas como Sérgio Machado e José Padilha, ela é mais do que um “coach tradicional”. “Karim Aïnouz, eu e o Walter Salles estamos muito interessados neste tipo de atuação”, comentou Machado. “Nunca suportei ver uma cena em que percebo que os atores estão atuando. Tenho ojeriza a isso, faz com que eu me lembre de que estou vendo um filme, e não vivendo uma experiência.” Em Tropa de Elite, de José Padilha, muitas das cenas dramáticas nasceram da interação de Fátima com os atores. Nos extras do DVD do filme, Padilha disse: “A Fátima é uma pessoa intuitiva, talvez haja uma técnica profunda por trás disso. Eu não sei porque eu não entendo.”
Machado conta que, quando fez Cidade Baixa, percebeu que Fátima estava lá para “ajudá-lo com o filme que queria fazer”. “Não se trata de uma terceirização do trabalho do diretor”, disse. “Ela me ajudou a chegar onde eu queria. Foi marcante. A intensidade da Fátima contagiou todo mundo”, recordou. “Quando a Fátima queria fragilizar a Alice Braga, fazia um trabalho de pressão, colocava uma pessoa deitada em cima dela. Eu tinha na equipe um maquinista que era lutador de jiu-jítsu. Ele ajudava, ficava em cima da Alice, que começava a chorar de um jeito… A Alice ali, com as roupas pequenas da personagem, tentava se mexer, o maquinista a imobilizava, ela chorava, se fragilizava. Tudo no maior respeito. Aquilo era muito comovente. A Alice estava ali chorando, se entregando, isso fez com que toda a equipe também se entregasse. É por isso que no Cidade Baixa o espectador vê uma paixão tão grande.”
Bruno Barreto interrompeu um trabalho com Fátima – no recém-lançado Última Parada 174, candidato brasileiro a uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2009 – por acreditar que seu método reduz os espaços de criação do diretor. “O maior prazer que tenho ao filmar é dirigir o ator. Ele tinha que vir preparado, mas não pronto. Com a Fátima, ele vem quase pronto. O diretor pode intervir muito pouco”, afirmou.
Barreto disse que para ele os ensaios com os atores são muito importantes. “É quando a dramaturgia começa a sair do papel e ganhar vida. Respeito o trabalho da Fátima, mas levantar cenas é um momento crucial. Isso deve ser feito pelo diretor, não por outra pessoa”, comentou. “Acho que o modo como se conduz os atores imprime uma marca nos filmes. Bergman, Antonioni, Nelson Pereira: os atores têm funções distintas para cada um destes cineastas.”
Na opinião de Barreto, “não é preciso transformar o ator em um farrapo humano para que ele renda bem”. “Nem sempre a verdade é verossímil. Tem ator que chora facilmente, mas isso não significa que vamos ter uma boa cena”, explicou.
Durante as entrevistas de seleção de pessoas para viverem os personagens de Última Parada 174, Barreto disse ter acontecido algo que o incomodou. “Nos vídeos de seleção, os candidatos se apresentavam, um a um. O assistente da Fátima, fora do quadro, perguntava o nome, a idade, porque o candidato estava ali etc. Num dos vídeos, lá pelas tantas, a voz dizia: ‘Na verdade, aqui é a polícia, sabemos que você está envolvido com drogas.’ A pessoa tomava um susto. Tremia, apavorada. Então, a voz dizia que era mentira, que aquilo fazia parte do teste. Isso me incomodou, é brincar um pouco demais com a cabeça das pessoas”, concluiu.
Fátima Toledo nega o episódio. “Essa acusação é de uma irresponsabilidade cruel”, disse. “Quero que ele prove, mostre essa fita.”
Para Hector Babenco, “Fátima impõe um modelo de atuação que é a marca dela, e no qual o diretor, vampiristicamente, absorve os resultados”. “Ela injeta autoconfiança nos não-atores. No Pixote, isso foi importante para que os meninos se relacionassem de igual para igual com a gente.”
Nos filmes que dirige, Babenco disse achar interessante que alguém faça um trabalho anterior, de relaxamento. “Mas não quero ninguém ensaiando o meu ator”, definiu. “Não cresci brincando com uma câmera de vídeo, comecei trabalhando em teatro, minha formação vem de trabalhar com os atores.” Para ele, o preparador de elenco virou uma função tão corriqueira quanto a de um figurinista, maquiador ou continuísta. “Os diretores não conseguem mais conceber um filme sem essa função”, comentou.
Carlos Reichenbach, que trabalhou com Fátima Toledo em Dois Córregos e Garotas do ABC, disse que “o coach estimula o essencial em qualquer ator estreante: concentração e disciplina”. Mas fala que nem sempre “os atores profissionais gostam de se submeter ao treinamento do preparador”.
Exemplo disso é o “manifesto” que o ator Pedro Cardoso divulgou no último Festival do Rio. Nele, Cardoso criticava a perda de autonomia do ator e questionava a opção de diretores em trabalhar com preparadores de elenco. Dizia que “o haver agora no mercado desses amestradores de atores faz parte da desautorização do ator como autor do seu próprio trabalho”. “Quer dizer que nem o seu próprio trabalho é o ator que faz?!”, ironizou Cardoso.
Sérgio Machado enfatizou que Karim Aïnouz e ele não têm nenhum interesse em trabalhar com atores que a princípio rejeitam o método de Fátima Toledo. “Tem ator que chega e fala: ‘Se for com a Fátima, eu não faço.’ Então eu digo: ‘Até mais, amigo.’ A Fátima nos dá atores à flor da pele. Quando se está à flor da pele, é mais fácil ficar alegre, ficar triste. A pessoa fica disponível, grita e chora mais facilmente.” Aïnouz tem dúvidas, no entanto, se o método funcionaria em uma comédia. “E tenho curiosidade em saber como a Fernanda Montenegro trabalharia com a Fátima.”
O ator e diretor de teatro Mário Bortolotto é contra o método. “Fátima pega não-ator, faz os caras repetirem o que fazem na vida real, parece que é trabalho de ator, mas não é”, comentou. “Quando pega ator de verdade, faz os caras sofrerem para render uma coisa que eles poderiam render só com o trabalho deles. Não tenho nada contra o não-ator, o que eu não quero é submeter o cara a uma tortura psicológica para conseguir o resultado. Vejo os atores reclamando muito, mas não fazem isso publicamente porque ela virou uma grife. É uma pessoa forte no cinema nacional, então ninguém fala mal, senão não vai ser chamado para o próximo filme.” Bortolotto disse que o que mais gosta quando está atuando é de “brincar de ser e não ser de verdade”. “A Fátima Toledo faz você acreditar que está vivendo as situações para valer. Ela tira toda a graça da brincadeira”, explicou. “Sem falar que ela trabalha muito a coisa do improviso, né? O roteiro é praticamente ignorado em prol de uma suposta espontaneidade do tipo ‘falem com suas próprias palavras’.”
Para o diretor Antunes Filho, do Centro de Pesquisa Teatral, o CPT, os atores dos filmes nacionais “fazem bem a ação externa”. “Mas e a ação interna?”, questionou. “Posso induzir você a chorar, mas isso não quer dizer que você seja ator. Estou utilizando você de forma domesticada.”
No mesmo ano em que Cidade de Deus chegou aos cinemas, em 2002, foi lançado Desmundo, de Alain Fresnot. Nele, Fátima preparou a atriz Simone Spoladore. Em um dos principais exercícios propostos pela preparadora, Simone tinha que ficar dentro de um quadrado de fita crepe, vendada, durante horas. “Parti de uma cena do roteiro, em que a personagem é presa em um porão. Eu precisava buscar esse sentimento de prisão”, argumentou. “Queria ver como a Simone reagiria. O ator não imagina que aquele quadrado é o porão, não sabe o que estou fazendo.”
Fátima não costuma dar os diálogos do roteiro para os atores lerem (em Tropa de Elite, nenhum dos atores recebeu o roteiro com os diálogos. O roteiro com as situações da trama não foi dado a André Ramiro, mas Wagner Moura recebeu. Em O Céu de Suely e Cidade Baixa, os atores leram o roteiro, mas sem os diálogos). “Se o ator sabe”, Fátima defende, “ele começa a atuar. Quero que venha à tona a loucura da própria pessoa. É a prisão da própria Simone que vai preencher o filme. Quando o ator olha para a referência de prisão que tem, ele começa a construir. Agora, se você fica dentro do quadrado, sem fazer nada, vendado, tem uma hora que você grita: ‘Que porra é essa, me tira daqui, vai tomar no cu!’ Quero que a prisão se torne algo físico.”
O procedimento de não dar o roteiro para os atores é comum nas preparações do diretor britânico Mike Leigh, de Segredos e Mentiras, de 1996. O que difere é que Leigh é o diretor, e é a partir do trabalho com os atores que a trama vai sendo construída. “Mike Leigh nunca escreve uma linha de roteiro”, disse o cineasta Mauro Baptista. “Ele seleciona um grupo de atores e tem em mente apenas uma idéia sobre o filme, às vezes nem isso. Aluga uma locação e começa a se reunir separadamente com cada ator, a conversar, a criar os personagens.”
Fátima Toledo diz que para cada situação usa uma estratégia. “Às vezes, o ator precisa do meu carinho, daí eu dou minha distância. Às vezes, quer minha distância, dou meu carinho.” Para a atriz Carla Ribas, de Casa de Alice, o caminho foi o da distância. “Eu dizia: ‘Como você é chata, você é muito chata, pára de chorar, é muito ruim trabalhar com você.'” Fátima acende um cigarro e conta que fazia isso porque Carla precisava entrar no universo do filme, “o mundo da periferia, do abandono”. “Quero a pessoa vulnerável”, disse. “Mas não é psicologia. O método é estritamente físico, não quero saber da vida da pessoa.”
Esse método parece ganhar força em um contexto que, para Ilana Feldman, pesquisadora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, “é caracterizado pelo apelo cada vez mais intenso à produção e dramatização da realidade, quando a linguagem desapareceria como construção para surgir confundida com as coisas, quando é o próprio ‘real’ que parece falar”.
Feldman lembrou que em 2007 os documentários constituíram cerca de metade dos lançamentos de filmes nacionais. E citou ainda os reality shows, como O Aprendiz e Big Brother, as imagens amadoras nos telejornais (como forma de validar a “verdade” da notícia), o cartaz do filme Tropa de Elite que dizia “uma guerra tem muitas versões, esta é a verdadeira”, “além do boom de um certo realismo vinculado à impressão de autenticidade das imagens amadoras” (flagras, vídeo-cassetadas, pegadinhas, amadorismos no YouTube).
Segundo a pesquisadora, a busca é por “um espetáculo que simule sua não-encenação, cujo efeito almejado seria a produção de uma impressão de autenticidade e de um valor de verdade que sejam tomados como inequívocos e inquestionáveis.” O “não atuar”, evocado por Fátima Toledo, contribuiria para essa impressão de autenticidade nos filmes.
Karim Aïnouz, que trabalhou com Fátima em O Céu de Suely e mais recentemente na minissérie para a televisão Alice (em parceria com Sérgio Machado), pensa que essa busca tem a ver com a teledramaturgia nacional e com o modelo de interpretação dos atores de televisão. “A novela é tão distante da verdade que, no cinema, os diretores e espectadores acabam tendo uma avidez por experiências físicas reais”, disse. “Por isso, o trabalho da Fátima é importante.”
Em uma sequência de Linha de Passe, de Walter Salles, um motoboy em fuga sequestra um carro, desses grandes, blindados, dirigido por um homem rico, de terno. Ambos estão apavorados por razões distintas. Antes de libertar o homem, o motoboy diz aos gritos para que o sequestrado olhe para ele. “Olha para mim, olha para mim!”, berra o ator.
Os gritos de “olha para mim” surgiram em um exercício proposto por Fátima. “É o exercício de ser olhado”, contou ela. “O Walter transformou em cena.” Segundo ela, “hoje em dia, o espectador está anestesiado, em transe”, e precisa ser acordado. “Os gritos tiram o homem engravatado e o espectador desse transe, dessa anestesia e faz com que olhem para si mesmos.” Walter Salles, que também a contratou para Central do Brasil, considera que um elenco preparado por Fátima adquire “uma densidade” rara. “Nenhum ator mente. Todos passam a habitar os seus personagens de forma visceral”, afirmou. “Ela potencializa o que está no papel. Basta ver os filmes e atores premiados nos últimos anos no Brasil. Fátima está quase sempre por trás deles.”
Em 2010, Fátima Toledo espera se lançar como diretora com um longa-metragem cujo título provisório é Sobre a Verdade. Verdade, que para Fátima Toledo “não é apenas uma forma de trabalhar, mas de viver”. “É poder dizer ‘eu amo’ sem medo de dizer ‘eu amo'”, afirma. “Muita gente fala: ‘Você é uma pessoa intensa.’ Não é que eu seja intensa, é que eu vivo na verdade, digo o que tenho que dizer, faço o que tenho que fazer, e a verdade para a maioria das pessoas tem a ver com intensidade.”
Na sexta-feira, último dia do curso, algumas cenas são levantadas. A primeira é de O Céu de Suely, com as alunas Angelita, Tatiana e Simone. A segunda é do filme Cidade Baixa. Adriano e Itapoã se enfrentam em um braço-de-ferro. Fátima tenta trabalhar exercícios de atração e repulsão. No filme, os personagens de Wagner Moura e Lázaro Ramos são amigos, mas brigam e disputam a mesma mulher. Na cena, preparada na sala, nos fundos da casa na Vila Mariana, Itapoã perde o braço-de-ferro. Adriano está dormindo, tem uma arma (de plástico) embaixo do travesseiro e Itapoã precisa demovê-lo da idéia de matar alguém. Brigam, caem no chão, Itapoã tenta pegar a arma. Adriano se defende. Fátima grita “corta!”, comenta que Adriano “atuou”, que ainda há um pouco de atuação ali e que isso a afastou dele.
No mesmo dia, uma das alunas, Juliana, não aparece. Desistiu do curso. Na véspera, Vilma e ela tentaram apresentar a cena de O Céu de Suely em que duas personagens se abraçam e se beijam, na cama. “Travei”, conta a aspirante a atriz, depois, por telefone. “Tentei levar adiante, mas acho que não ficou legal.” Juliana lamenta ter desistido do curso. “Eu devia ter ido no último dia, acabei ficando sem o diploma.”