Cenas da Pacha, a boate que custou 6 milhões e cobra 2 mil reais por uma noite no camarote: guarda pretoriana, pulseirinhas coloridas e espaço para 3 mil pessoas num "ambiente Ibiza" FOTO: TUCA VIEIRA_2007
Como se jogar na balada
O que rola nas bombadas e micadas nas boates da jeunesse dorée da burguesia paulistana
Daniela Pinheiro | Edição 7, Abril 2007
Quem ainda fala que vai causar na noite está tão semana passada que na certa ainda escuta Caetano Veloso. A expressão do momento é se jogar na balada. Se ela, a balada, é boa, qualifique-a de bombada. Se é ruim, diga micada. Ela fica bombada quando está lotada de jet setters. E promete quando o chill in é feito num restaurante fusion. Se quer se animar, indague: do you smell like Chanel? Mas o que garante mesmo a bombada da balada é quando se cata alguém masterplus. Entendeu, minha santa? Então vamos nos jogar na balada de São Paulo e conhecer gente rica, jovem, animada e de vocabulário caviloso, os vips. Vamos dançar por horas, beber além da conta, provar a droga do momento, ouvir música alta e repetitiva, torrar o dinheiro de papai, dormir sem hora para acordar e, se der sorte, sair de lá com o telefone de alguém descolado.
À meia-noite e meia de uma sexta-feira recente, uma área baldia da Vila Leopoldina estava apinhada de carros importados. Havia sete Audi, três Porsche, cinco BMW, dois Jaguar, dezenas de Toyota e de utilitários importados. Todos pretos e recém-lavados. Umas 200 pessoas se acotovelavam ao longo de duas grades e esperavam, em vão, para entrar na boate Pacha (pronuncia-se Pachá), uma das mais concorridas da noite paulistana. As grades, de 1 metro de altura, formavam um corredor polonês. Com as mãos estendidas, e aos gritos, as pessoinhas tentavam, novamente em vão, chamar a atenção de uma recepcionista, que usava uma maquiagem dramática, e de seguranças de terno preto com mais de 1 metro e 90 de altura. Elas não queriam entrar de graça. Estavam dispostas a gastar, em média, 300 reais pela noitada. Tinham tomado banho e estavam bem vestidas. Mas, mal-intencionadas, queriam apenas entrar pela porta da frente da boate. Ocorre que esse privilégio está restrito aos vips. E ser vip, nos códigos sociais da balada, faz toda diferença.
Vip, como se sabe desde que balada era um tipo de canção dos Beatles, quer dizer very important people. A expressão designava pessoas muito importantes. Um rapaz paulista chamado André Athiê não tem importância na Lapa, em São Paulo, no Brasil, na Terra e na ordem geral do universo. Mas como, desde que a Pacha foi aberta, há cinco meses, ele esteve cerca de cinqüenta noites na casa, ele pertence a uma categoria especial. Athiê comemorava seu aniversário de 20 anos naquela sexta-feira. Por 4 mil reais, ele comprou dois camarotes, e ganhou outro de graça por ser um habitué. Seus 40 convidados não deveriam pegar filas nem pagar nada. Mas a malta dos anônimos gritões lhes atrapalhava o acesso.
André Athiê é magro, tem nariz fino e um topetinho jeitoso mantido com quilos de gel. Ele tem gestos pontiagudos e fuma o tempo todo. Usava uma camiseta azul escura justa, com um zíper que não chegava à altura do umbigo, calça jeans e tênis de mais de mil reais. À 1 e meia da manhã, ele desceu pela quarta vez do camarote, passou em revista a guarda pretoriana de seguranças e foi para a porta buscar seus amigos. Com um copo de vodca na mão direita, o cigarro na outra, dirigiu-se imperiosamente ao chefe da porta, José Roberto dos Santos, um negro de 1,95 metro de altura, 45 anos, dez de noite, impecável num terno escuro com gravata vermelha, que mascava chiclete o tempo todo.
– Zé, meu, os caras estão aí há horas, pô! Deixa aquela ali de listrado passar, comandou o garoto.
Ao que Zé, localizando a listrada no meio do sururu, fez um sinal para um lugar-tenente, que a resgatou da cambada.
– Tá vindo, Andrézinho, tá vindo, disse o armário ao vip, que se acalmou.
A Pacha faz parte de uma franquia espalhada por 23 países. Comporta 3 mil pessoas em 10 mil metros quadrados, um espaço pouco maior do que o gramado do Maracanã. Um outro salão será inaugurado, em setembro, com capacidade para mais 5 mil pessoas. Nela, há dois tipos distintos de público, que, como ecstasy e cocaína, não se misturam. A galera, que paga ingresso direitinho (40 reais mulher e 80 homem), entra pelos fundos e o direito de circular se restringe ao térreo. São estudantes, secretárias, gerentes, advogadas, estagiários, aspones, psicólogas, administradores, redatores de publicidade, divulgadores, aspirantes a estilista. É uma galera disciplinada, que faz filas nos banheiros, no balcão das bebidas e se mantém em pé pela escassez de lugares para sentar.
E há os vips. Eles fazem parte do mailing list (expressão que quer dizer muito para quem freqüenta a noite) dos promoters: são dândis, modelos, filhos de milionários, cocotes, desocupados, grã-finos e celebridades. Nunca se viu um vip sozinho. Como os turistas japoneses, os vips sempre andam em bando. Geralmente é um ricão, ao qual se agrega uma corriola.
Há vips que aparecem sem avisar. Recentemente, esteve lá um príncipe do Qatar. Rebentos da família Safra costumam se jogar na balada em companhia de sete seguranças (que deixam as armas em um armário trancado). Eles têm entrada e estacionamento separados da galera. Orbitam no primeiro andar, onde contam com banheiro, bar e serviços, conforme eles dizem, “diferenciados”. São atendidos por garçonetes maquiadas e penteadas por cabeleireiros contratados pela boate. Os vips são identificados pelo uso de pulseirinhas de cores diferentes – o que faz com que na hora de pegá-las no caixa, as mulheres olhem antes para o pulso do que para os sapatos umas das outras. Na semana em que o príncipe do Qatar deu o ar da sua graça, a pulseira vermelha dava acesso ao camarote. A princípio, o príncipe petrolífero se recusou a usá-la. Passou mais de uma hora gritando para o funcionário que tentava empulseirá-lo: Don´t touch me! Don´t touch me! Não o comoveu e, amuado, terminou por botar a vermelhinha. A amarela permitia ficar em pé, perto do camarote, o que seria o purgatório do pachá, entre o paraíso vip e o inferno do anonimato. A azul era a do povoléu. Existe ainda uma outra, a mais invejada, a branca coberta por cerejinhas – ela é a dos sócios, dos funcionários e dos André Athiê, um jet setter.
Homens e mulheres estavam vestidos com uniformidade. Eles, de calça jeans surrada (rasgos milimetricamente estudados no joelho), camiseta colorida, um colar grosso de prata (daqueles usados por bicheiros), sapatos pontudos ou tênis, e o tal topetinho, armado com habilidade. Elas, de short branco (a cor da estação), sandálias de salto alto, bolsas de marca. A maioria de franja. Não há cabelos encaracolados na Pacha. Todo mundo dança igual (de maneira dessincronizada), olha igual (com condescendência) e ri igual (exageradamente), seja galera ou vip.
O restaurante Ritz, no bairro do Itaim-Bibi, é freqüentado pelo povo da moda, executivos jovens, jornalistas e publicitários e adeptos do menu salada & destilados. É uma tarde de sol e Benjamin Ramalho toma um suco de uva numa mesa de centro do Ritz. Ele está na casa dos 30 e cultiva costeletas finas. Veste camisa social branca para fora da calça da mesma cor, tal qual os dos personagens do anúncio do cigarro que ele fuma, Parliament. Ben, como é conhecido, atendia o celular a cada dez minutos. É muito solicitado por ser o relações-públicas da Pacha. É ele que administra o mailing, a lista dos vips a serem convidados, ou não, para uma noite na boate. Diz ele: “O mailing é vivo. Uns se casam, outros se separam, outros ficam pobres, outros enriquecem. Quem faz o mailing tem que ter sensibilidade, saber quem importa, quem deve estar no lugar. Esse é o segredo da noite. Tenho 6,5 mil e-mails. Mas meu mailing seleto tem 800 nomes. Tem gente que gasta 50 reais. Outros, 300. Esse é um critério de seleção. As pessoas estão dispostas a pagar para serem diferentes. E elas têm razão”. Cavalheiro, Ben pagou a conta.
Um mailing bom costuma ter 50% de celebridades (atores, cantores, apresentadores) e a outra metade é dividida entre estilistas, playboys, manequins e atletas. O desafio é levar famosos que não sejam arroz de festa, nomes batidos como Reynaldo Gianecchini, Carolina Dieckmann, Ronaldo Fenômeno ou Juliana Paes. E também os ricaços de sempre, como Rico Mansur, Álvaro Garnero e João Paulo Diniz. Os vips recebem seus convites em casa, entregues por motoboy. “Se mandar por e-mail ou por carta, esquece”, explicou-me a promoter Helô Ricci, uma moça magra, alta e de tom de voz enternecedor, que há quinze anos trabalha na noite paulistana.
“Boate, não. É nightclub”, explicou um dos donos da Pacha, o argentino Leo Sanchez. Ele estava no escritório nos fundos da Pacha, enfeitado com um enorme pôster do Capitão América. Apesar de morar no Brasil há cinco anos, ele só fala espanhol: “Boate é uma coisa toda preta, claustrofóbica. Aqui é diferente. É como um club onde se faz esportes: tem os sócios, os cartões, as pessoas te conhecem, os privilégios, os amigos se encontram e se sentem diferenciados do resto”. Aos 41 anos, careca, tatuado, Sanchez poderia ser confundido com um astro de luta-livre. Ele e outros doze sócios desembolsaram 6 milhões de reais para construir a boate – perdão, o club. Pagarão 100 mil dólares por ano enquanto usarem a marca no Brasil. O grosso da receita do empreendimento, diz ele, vem do ingresso dos anônimos, e não dos vips.
A Pacha é toda branca. A idéia, conforme Sanchez, é “dar um clima Ibiza” à casa. A entrada principal tem paredes com relevos disformes, supostamente imitando as casinhas da ilha de Santorini, na Grécia. Um enorme lustre, feito de pano branco, lembra o candelabro do musical O Fantasma da Ópera. Sofás brancos se espalham pelos ambientes pintados de azul-turquesa. Há um balcão que vende sushis e outro para pizzas. Respira-se fumaça. Um dos espaços tem a forma de um circo. Os anônimos só têm acesso ao picadeiro, que é a pista de dança. Os vips assistem a tudo a 1,40 metro de altura do chão, nas arquibancadas, onde ficam os camarotes. Nunca descem.
Eram três da manhã, e o camarote de André Athiê estava bombando. Ele e os amigos subiam nos sofás brancos, bebendo vodca de canudinho. Para vencer a alta octanagem de decibéis, com os gestos de quem cochicha, gritavam nos ouvidos uns dos outros. Para Athiê, não há no momento lugar como a Pacha na noite paulistana. Ele já provou quase tudo: foi ao Royal, ao Museum, ao Vegas, à Disco, ao Café de la Musique. “Aqui é como Nova York ou Europa”, disse, numa pausa. “Não parece que você está no Brasil. É ambiente doideira. É para ficar feliz e ver mulher bonita. Isso é que faz uma balada bombar”, diz. Com o pai, o arquiteto Sérgio Athiê, freqüentou a La Cave, em Courchevel, a estação de esqui francesa, onde havia uma garrafa de champanhe por 27 mil euros. Outra vez, foi com um amigo no Club Z, em Genebra. Em outra, com um primo, na Marquee, em Nova York. Eram 9 da manhã quando ele deixou a Pacha. Ele e seus convidados derrubaram catorze garrafas de vodca. “Aquilo é que foi aniversário”, comentou, dias depois.
Leo Sanchez acha que a balada brasileira tem peculiaridades estranhas. “Trabalhei vinte anos em toda a América do Sul e fui a quase todos os melhores clubs do mundo, mas só no Brasil se vê algumas coisas”, disse. “Aqui, é imprescindível haver mais mulheres do que homens. Você pode ter o melhor DJ do mundo tocando, mas se tiver mais homem, vão falar que a noite estava péssima. Deve ser o único lugar no planeta onde a música não está em primeiro lugar.” Outra particularidade diz respeito ao consumo extraordinário de álcool. Na Pacha, há três enfermeiros (sempre atarefados), uma UTI móvel (ainda não usada) e quatro bombeiros de plantão para acolher os alcoolizados. E há, por fim, o raio da mailing list. “As pessoas querem vir e ver um famoso, um rico”, disse Sanchez. “Brasileiro se sente valorizado quando está no meio de gente que ele viu na tevê. Mas tem que ter variedade. Gays, que são animados, por exemplo, devem ser cultivados. Estamos com promoters tentando aprimorar isso aí.”
À 1 da manhã de uma quinta-feira, Julia Petit chegou à Pacha com sete amigos. Ela também é vip. À tarde, a boate havia mandado para sua casa uma camiseta e uma garrafa de champanhe. Ela atravessou rapidamente o corredor polonês. Um segurança fez sinal para uma recepcionista vestida de preto, que a deixou passar e lhe deu um sorriso tão simpático quanto o de uma aeromoça em início de carreira. Ela rumou ao caixa para pegar sua pulseirinha vermelha e um cartão de consumo (que teve o valor de 0 real porque tudo o que ela quis foi de graça).
Julia tem 34 anos, tem uma produtora de trilhas sonoras para publicidade e pesa 47 quilos. É filha de Francesc Petit, um dos donos da agência de propaganda DPZ. Vestia jeans, blusa preta de decote abissal, faixa colorida no cabelo ruivo-eletrizante e colar com pingente em forma de âncora. Suas costas nuas deixavam tatuagens à vista. A cintura é da largura da palma da mão do Zé, o segurança. A pele é tão fina que parece de bebê. Os olhos são ligeiramente mais separados um do outro do que o normal. “Vir aqui para mim é trabalho”, ela informou, displicente. “Venho conhecer um DJ novo, ouvir uma música diferente, mas também, claro, dar umas risadas.” No caminho para o camarote, teve um encontro inesperado. Topou com André Athiê, vestido com uma camiseta preta de propaganda da Armani. Nunca tinham se visto antes. Segundo Ben Ramalho, Julia Petit é a figura mais popular na Pacha, e Athiê o cliente mais fiel.
– Ah, você é o que vem toda semana?, Julia perguntou.
– É, tô aqui direto.
– Mas você vem no camarote?
– Claro, respondeu Athiê.
– Mas você paga a bebida?
– Pago, mas eles fazem um preço ótimo para mim.
Eles riram um para o outro. Despediram-se com um beijinho no rosto. Ela seguiu para o camarote. Benjamin a abraçou por trás.
– O que você quer, amor? Champanhe, vodca?
– Champanhe, né? Amanhã tenho que trabalhar às 9, respondeu a jovem.
Pouco depois, Athiê me perguntou, apontando para um rapaz ao lado de Julia Petit: “Me disseram que ela gosta de moleque, é verdade? Ela está com aquele cara?”. Expliquei que ela era a chefe do cara. “Pô, vou lá. Se ela estiver com o cara, foda-se. Aqui sou intocável”, gargalhou.
Assíduos das baladas notaram algo de novo na noite nos últimos tempos: a volta da cocaína. O ecstasy reinou absoluto nas pistas de dança durante cinco anos, explica um veterano baladeiro. Por três motivos, completa um consumidor ocasional: dá energia para dançar durante horas, incrementa a libido e é relativamente barata – o comprimido custa cerca de 35 reais. Mas o ecstasy, com o tempo, diminui os efeitos. É preciso tomar mais comprimidos para obter a mesma excitação. Já a cocaína, que está há anos com o preço estável, não precisa ser cheirada em quantidades crescentes. A impressão é confirmada pelos números das vendas de bebidas em boa parte das boates paulistanas. “As pessoas estão consumindo menos energético e vodca, que são considerados os parceiros ideais do ecstasy”, diz Ben que, por exigência profissional, circula continuamente pela noite. “Ao mesmo tempo, houve uma subida na venda de uísque, tido como companhia ideal da cocaína”, explicou.
Entre os ricos, a sugestão de cheirar vem em inglês: Do you smell like Chanel? Entre os gays, o pó é “padê”. Os modernos dizem: “Ah, quero magia”. No mercado vip, o papelote de cocaína é vendido por 80 reais. Dentro das boates, é difícil identificar o movimento. Os seguranças são orientados a botar para fora quem for pego cheirando. E se for um vip? “Há sempre policiais civis à paisana misturados com o público. Ninguém vai fazer essa merda em cima da mesa. Até por medo de ser preso”, explicou André Athiê, numa tarde de quarta-feira tomando chope numa lanchonete do Itaim-Bibi. O que acontece nos banheiros ninguém controla.
A pista de dança lotou. Julia Petit parecia entediada. Conversou alguma coisa com os amigos que brindavam com champanhe, dançou um pouco, mas logo pegou o celular. Começou a escrever torpedos. Até o fim da noite, checou o telefone com ansiosa freqüência. No camarote atrás do seu, um sujeito de uns 40 anos, em companhia de quatro mulheres e dois homens fortes, estava elétrico. Pulava no mesmo lugar como estivesse secando do banho sem toalha. Do nada, apresentou-se: “Anota aí, eu sou cirurgião vascular. Essa balada aqui é boa demais. Eu amo balada, só que o povo acha que médico não pode beber, se divertir”, falou, um tanto histérico. “Eu dou festa para mil pessoas na minha casa no Morumbi. É open bar. Não é pobreza não”, insistiu, sem que ninguém lhe houvesse perguntado nada. E mais ainda do nada, virou-se e retornou ao seu grupo. (Ainda bem que não é o meu médico.)
André Athiê disse nunca ter saído da Pacha sem beijar uma menina. O mais comum é beijar várias. Pára por aí? “Claro! Você acha que a menina que não é cachorra vai dar para você no primeiro dia?”, perguntou. Seu alvo costuma ser as patricinhas da FAAP, que formam boa parte do público jovem da Pacha. FAAP vem a ser Fundação Armando Alvares Penteado, uma universidade, no bairro de Higienópolis, cujos alunos, na maioria, têm origem burguesa.
Quando se tem mais de 30 anos, é diferente. O empresário Mário Castilho, de 33, que estava na festa de Athiê, explicou: “Boate não é lugar de conversar. Quem quer conversar, vai no barzinho. Você vai à boate para, vamos falar claro, ir à caça. Mas é difícil sair com alguém. Às 7 da manhã, você já bebeu pra caramba, no outro dia tem que resolver coisas, fazer esporte. É um perrengue. O lance é sair da boate com um telefone interessante. Se tiver interação boa, chamo para jantar”. A isso se chama “catar um masterplus”.
O empresário Arnaldo Waligora acompanhou de perto a noite paulistana nos últimos vinte anos. Aos 52 anos, ex-proprietário da Creações Wali, badalada no final dos anos 80, ele definiu assim o impulso coletivo que move a balada: “As pessoas saem de casa para colocar para fora seus demoniozinhos internos. Vão beber, paquerar, se divertir, fuder, beijar, dançar, incomodar os outros e, os infantilóides, se drogar”. A balada não se restringe à boate. Em geral, começa na casa de alguém, ou em um bar (o tal chill in) para drinks (cerveja nem pensar, que é coisa de pobre e de bregas). Três, quatro doses depois, lá pela uma da manhã, é hora de chegar na boate. Quando a maioria delas está quase fechando, ao amanhecer, os mais animados ainda esticam na Love Story, reduto de prostitutas, boêmios e notívagos.
Às 2 e meia, a Pacha chegou ao auge. As luzes estroboscópicas, a música alta que parecia reverberar na caixa torácica, os gritos vindos da pista de dança, tudo bombava. As pessoas tiravam fotos umas das outras com o celular. Havia pouca gente se beijando. Cada um dançava sozinho. Julia Petit parecia continuar à margem. Falou-se sobre outras boates. Ela gosta da Royal, “onde mandam buscar sanduíche de pernil especialmente para os amigos”, disse. Enquanto conversava, mexia no cabelo, olhava para o nada. “Sabe, eu venho nesses lugares porque não tenho que pegar fila, gastar tempo, explicar nada. Se tivesse que passar por tudo isso, te juro, não saía de casa. Não tenho o mínimo saco.”
“Vip? Que vip? Não tem vip no Brasil. Quem é vip mesmo não sai, recebe em casa. Hoje o que existe é uma mailing society“, disse a colunista da revista Vogue RG e do jornal O Estado de S. Paulo, Chris Mello. “Existem 1 milhão de sites, revistas de fofocas, colunas sociais, blogs. É impossível encher tudo isso com gente famosa. Então, apareceu na televisão, já virou vip, é deprimente”, diz. Aos 33 anos, Chris Mello acha que a noite de São Paulo morreu. Ela contou que esteve recentemente em Paris, na festa do fotógrafo Mario Testino, onde diz ter trocado idéias com o estilista Karl Lagerfeld sobre Flor da Índia, a nova droga de emagrecimento usada pelos endinheirados. Comendo mexilhões em um restaurante paulistano, ela vestia calça e blusa pretas, usava um rabo de cavalo e sapatilhas Chanel. Os olhos são muito azuis e seu cabelo muito preto. “Em São Paulo, há pelo menos quatro festas PJ (pessoa jurídica) por semana. Vai todo mundo, é tudo de graça e é garantido que você vai sair em jornal no dia seguinte. Quem vai se meter em ir para boate?”, disse, tomando mais um gole da sua Coca light.
Gente normal acha que o centro de São Paulo é perigoso e ermo. Mas é no cruzamento da rua da Consolação com a avenida São Luiz que os vips se esbaldam. Fica ali a boate Royal. Numa sexta-feira, o camarote do empresário Marcus Buaiz, um dos donos da boate, recebia o filho do ministro Walfrido Mares Guia, o herdeiro da Elma Chips e um sobrinho de Abilio Diniz, o dono do Pão de Açúcar. Três modelos da agência Elite dançavam, enfiando os saltos agulha no couro do sofá marrom capitonê.
A Royal tem o pé direito baixo, mesas escuras e rasgos das paredes de onde é possível avistar o centro de São Paulo. O público é diferente da Pacha, onde todo mundo se parece. Mistura o colunista Arnaldo Jabor ao cantor Seu Jorge, de Junior, o irmão de Sandy, à modelo Alessandra Ambrósio, e a terceira geração de milionários das famílias Setúbal, Simonsen e Moraes. Na área dos sofás, estão os camarotes, vendidos por 1,5 mil reais. Em alguns, sente-se o cheiro de maconha. Por ser menor (lotação 400 pessoas), paquera-se mais. O contato físico é inevitável. Aliás, na balada não existem as expressões “por favor”, “com licença”, ou “desculpe”. Para atravessar a multidão, os vips e a galera se valem de cotoveladas e empurrões. De vez em quando, um palavrão.
Às duas e meia da manhã de uma sexta-feira, o DJ Felipe Venâncio e Marcus Buaiz, com um copo de marguerita na mão, conversavam sobre a oportunidade de abrir um restaurante japonês. O camarote de Buaiz é o único com uma cortina preta de voil, que é fechada quando se quer privacidade. “Boate depende do dono. São nossas amizades que enchem o lugar de gente bacana. É como uma festa. As pessoas se sentem em casa”, disse. Ele me segurou pelo braço levemente e levantou o dedo indicador da mão direita: “Olha essa música. Isso é o hit hoje. Olha o que vai acontecer”. De repente, todas as pessoas, que sacolejavam apenas com ombros da direita para esquerda na música anterior, começaram a cantar com as mãos para cima:
Get up, get out, get away from these liars
‘Cause they don’t get your soul or your fire
Take my hand, knot your fingers through mine
And we’ll walk from this dark room for the last time
A música é “Open your eyes”, da banda Snow Patrol. Foi mixada em uma versão dance. “É a música de abertura do seriado E.R. , sabe?”, disse Buaiz, que batia palmas no ritmo e ria para os convidados. Seus amigos se abraçavam, pulavam e cantavam em coro. A modelo Loiane, uma loira de 1,80 metro de altura, vestido verde, franja e a sexta taça de champanhe na mão, e que antes bebera tequila, cerveja e vodca, tomava seu primeiro tombo. Ao longo da noite, caiu outras duas vezes. No balcão em frente à janela, um sujeito de camiseta e calça pretas e um enorme relógio Bulgari parecia, finalmente, se dar bem. Ele havia chegado meia hora antes, sozinho. Seu contato visual com uma morena de rabo de cavalo tinha sido infrutífero. Até pousar na frente dela uma garrafa de champanhe Cristal, estalando de gelada. No Royal, ela custa 2,2 mil reais (são vendidas cerca de três por noite). Em menos de cinco minutos, a morena conversava com ele – e bebia, é claro, que ela não é boba.
Aos 29 anos, Marcus Buaiz é um empresário de sucesso. Seus negócios, sempre na área de entretenimento, estima-se, somam 25 milhões de reais. Os de sua família, no ramo de café, shoppings e comunicação, no Espírito Santo, se aproximam da casa do bilhão. A idéia da Royal nasceu, segundo diz, para “ter um lugar legal para sair com os amigos”. O projeto custou 1,5 milhão de reais. Foi inaugurada há oito meses. Suas freqüentes viagens ao exterior para boates como Les Caves du Roy, em St.Tropez; a Billionaire, na Sardenha; a Vip Room de Cannes; e a Pink Elephant, em Nova York, serviram de inspiração para criar a atmosfera do lugar.
De calça jeans, camiseta, tênis e um boné com aba virada para trás, Buaiz tem uma leve dislexia, que o faz pronunciar palavras começadas em “d”, “g” ou “t” de maneira incomum. Gelada é “djelada”. Num sábado à tarde, quando a boate ainda cheirava a cigarro da noite anterior, e três faxineiras limpavam o salão, Buaiz chegou com sono. Pediu um energético para acordar. Sua visão sobre o negócio é clara: “A noite pode ser muito rentável, tanto que a Royal se pagou em seis meses. Mas tem que encarar a coisa como business, não sair um milímetro fora das suas contas”. Olhando pela janela, apontou a calçada, que reformou para valorizar o ponto, e continuou: “a noite é como casamento. De tempos em tempos, você tem que mudar para agradar sua mulher. Tem que dar uma malhada, ficar bem, ter umas novidades, para não cair no tédio. É a mesma coisa. Tem que mudar a decoração, o som, as bebidas, as garçonetes. Não pode deixar enjoar”, diz ele, que se casa em maio com a cantora Wanessa Camargo, filha do sertanejo Zezé di Camargo.
No século passado, poucas boates paulistas se igualaram ao The Gallery, nos Jardins. Por quase quinze anos, ela atraía artistas, estrangeiros de passagem, modelos (então conhecidas como “manequins”), milionários, escritores, músicos, gays, políticos, boêmios. Bebia-se champanhe a rodo no Gallery, comia-se caviar até enjoar e dançava-se ao som de uma orquestra ao vivo. Para entrar, só sócios que desembolsavam mil dólares por ano. Os clientes diziam que iria durar para sempre. Que era bom demais para acabar. “Mas acabou”, disse um dos sócios, José Victor Oliva. “Acho que uma das razões do sucesso é porque naquela época, começo dos anos 80, havia um entendimento de que tudo era permitido e não havia motivos para competir um com o outro. A Aids mudou a noção de sexualidade, a de sensualidade. E não tinha essa coisa vip, de gente que vive de vipice. Morte aos vips”, conclamou, passando a mão na cabeça raspada, que ressalta a cicatriz que lhe cruza a parte esquerda da fronte.
Aos 53 anos, de camiseta branca, um relógio imenso no pulso, ele expõe nas paredes de seu escritório as lembranças mais trepidantes do The Gallery: o dia em que Tony Bennett cantou, quando Matilde Mastrangi leiloou sua calcinha, o então metalúrgico Lula com camiseta da boate, fotos com B. B. King, Dulce Figueiredo, Pelé, Tom Jobim. “Parece que as pessoas hoje, hummm (esfrega o polegar com o indicador e o dedo médio), ao ir para boates, hummm, não sei, é como se fossem fazer um programa no shopping center”, disse. “Antes, havia privacidade. Quem quisesse ter amante, ser bicha e passar incólume, fazia ali. Não tinha colunismo social fofoqueiro. Ninguém se preocupava com violência. Ostentar era o máximo. As mulheres usavam as melhores jóias e vestidos”, lembrou. Ele voltou para a mesa, apertou o botão por debaixo do tampo, que é o sinal para que a secretária lhe traga um café. “Não era fútil, sabe?” E acendeu uma cigarrilha Café Creme. “Conversava-se muito. Mas o bom é que tinha muita putaria também.”
Passa um tempo e José Victor volta a se irritar com a vipice contemporânea: “Antigamente, vip era vip pra cacete. Era entrar no Gallery e dar de cara com a mesa do Walter Clark, na outra o Tom Jobim, em outra a Eleonora Mendes Caldeira. E todo mundo pagava. Não tinha essa baixaria de ganhar de graça. Hoje, é você que tem que pagar 30 mil reais para o sujeito aparecer meia hora”. Ele fez uma longa pausa, e continuou: “Olha, a Daniela Cicarelli é uma arquigostosa, supersimpática, mas isso não pode fazer de uma pessoa uma vip, porra. Vip é um puta de um pensador, um puta de um político, um puta de um escritor, ou o Pelé”.
Na Royal, a entrada custa 80 reais para homens e a metade para mulheres. Há uma moça na porta que decide quem entra ou não, com base nas roupas e na lotação do lugar. A moça deve ser especialista em semiótica, pois é a partir da roupa que descobre o saldo da conta bancária do candidato a entrar. Ali, uma garrafa de vodca sai por 360 reais. Nos últimos meses, histórias folclóricas sobre despesas inebriantes correram a cidade. Como a do jovem, filho de um alto executivo do setor de seguros de saúde, que gastou 20 mil reais numa noite, pagos num cartão de crédito de cor preta, o sinal mais evidente de quem é rico.
No dia seguinte à Pacha, à uma da manhã, Julia Petit apareceu na Royal. Estava com o ex-marido, Beto Lee, filho da cantora Rita Lee. “Olha só, não falei que bato ponto aqui também?”, perguntou. O rapaz não cumprimentou ninguém e se acomodou no canto do sofá. Acendeu um cigarro e observou, sem entusiasmo, o movimento. Os destaques eram a modelo Giane Albertoni e a primeira-dama Wanessa Camargo, que dançava, fumava e tomava Veuve Clicquot com um grupo de quatro amigas. A casa começava a bombar.
O sócio de Buaiz, o promoter Cacá Ribeiro, responsável pelas festas PJ mais concorridas da cidade, um calvo de óculos de armação retangular preta e pesada, administrava a chegada da galera e dos vips. Uma modelo se queixou de que o camarote dos sócios estava muito cheio. O gerente da boate fez tantos salamaleques, falou tanto que a modelo, depois de revirar os olhos azuis, resolveu ficar. “Olha, descolado é uma merda. A gente tem que ficar aqui, acalmando egos, lidando com desejos e carências”, disse Ribeiro, bem-humorado.