Bruno Maranhão, o dirigente do MLST que pertence a uma família de usineiros em Pernambuco, discursa no Congresso depois da invasão do ano passado: "Minha obrigação era acalmar o pessoal"
Conciliação de classes
Filho de usineiros, dirigente do PT e líder de uma organização de sem-terras que invadiu o Congresso, Bruno Maranhão já comandou a ocupação de terras que sua família estava prestes a comprar
Luiz Maklouf Carvalho | Edição 11, Agosto 2007
“Este aqui é o Sílvio, misto de motorista e segurança”, disse Bruno Albuquerque Maranhão, abrindo a porta de um carro bem rodado, numa avenida de Jaboatão, nos arredores do Recife. “Andamos armados porque eu estou ameaçado de morte. Tenho também uma Nissan blindada, que foi presente da família, mas hoje eu não quis usar”. Bruno Maranhão parecia bem disposto naquela manhã do mês passado. Ainda mais porque passara parte da madrugada na festa de aniversário do ex-ministro Humberto Costa, seu companheiro no diretório nacional do PT. “Fui tratado como uma celebridade”, comemorava, com alguma ironia, o líder do Movimento de Libertação dos Sem-Terra, a organização que, há pouco mais de um ano, invadiu a Câmara Federal e teve 200 de seus militantes presos – inclusive Maranhão.
Ele é uma celebridade na esquerda pernambucana não só por ser veterano em subversão, mas também por ter dirigido o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, o PCBR, que teve doze mortos e quatro desaparecidos durante a ditadura militar. Ou porque ficou detido 39 dias no presídio da Papuda, em Brasília, em função da invasão da Câmara. Ele também é famoso porque é a ovelha negra da nobre estirpe dos Albuquerque Maranhão, tradicional família de usineiros de cana-de-açúcar, o setor mais reacionário da burguesia nordestina.
Sílvio nos levou, naquela manhã de julho, a um assentamento do Movimento de Libertação dos Sem-Terra, no Cabo de Santo Agostinho, a 40 quilômetros de Recife. O assentamento, chamado Arariba de Baixo, serviu de berço para o MLST. Ele era uma usina falida, vizinha a uma outra que pertencia aos Albuquerque Maranhão. Em 1992, a família iniciou negociações para comprá-la. Até que Bruno, primogênito de seis irmãos, descobriu, e passou a organizar a invasão da usina. Sua mãe, Gisela, e um dos irmãos, Gustavo, ouviram rumores sobre a invasão eminente. Chamaram-no, e perguntaram se era verdade. “Eu menti para eles”, lembra Bruno Maranhão. “Não podia trair o movimento às vésperas da ocupação”.
Avisada de que Maranhão iria visitá-la, boa parte das 150 famílias do assentamento se reuniu para esperá-lo. Os sem-terra o tratam com afeto e reverência, e ele retribui os abraços com entusiasmo: desculpa-se pela ausência prolongada, lembra os 39 dias de cadeia e repete (ao que parece, pela milésima vez) a história de como enganou a família para conseguir a terra. Na reunião que se segue, ouve cinco assentados se queixarem de que falta quase tudo para aumentar a produção. O produto que tem melhor saída é a cana mesmo – e o seu único comprador é Gustavo Maranhão. Uma das queixas é de que o preço (32 reais a tonelada) pago pela cana é baixo, está abaixo do valor do mercado.
Na sua vez de falar, Bruno ignorou o problema do irmão e da cana. “Estou orgulhoso de vocês”, repetiu várias vezes, antes de ir à escola municipal assistir a uma exibição de capoeira. São cenas de sua revolução particular. “Minha militância toda é uma coerente busca do socialismo”, diz. “Sei que não vou viver para ver este dia, mas esses pequenos passos fazem parte do processo.”
Na noite anterior, antes da festa, tomou um aperitivo e jantou no casarão da mãe, no bairro de Parnamirim. Bebeu quatro doses de uísque, “para relaxar”, conforme explicou. Pediu que a mulher tocasse piano, e a socióloga Suzana, com quem está casado há quarenta anos, aquiesceu. E comeu o mais rápido que pôde um filé mignon mal passado. O dia foi tenso, reclamou. Parte dele passou-o no dentista, debelando uma dor que tentara curar com automedicação. Também esteve no escritório do MLST, no bairro de Casa Amarela, resolvendo demandas administrativas, atendendo militantes, dando e recebendo telefonemas.
Segundo Maranhão, o Movimento está estruturado em dez Estados, é integrado por 50 mil famílias e, neste ano, conseguiu 5 milhões de reais do governo Lula para desenvolver “projetos sociais”. Ele acha pouco, sobretudo quando compara a soma à verba recebida pelo MST. Não há parentesco entre as duas organizações. O MST é mais antigo, estruturado e, em que pese o papel preponderante de João Pedro Stédile, tem uma direção de verdade. Já o MLST, apesar de ter 35 dirigentes, não existiria sem Bruno Maranhão. Ambos os movimentos se assemelham nos métodos de luta, como as invasões de terras e de prédios públicos. Em algumas regiões, como Itaíba, em Pernambuco, disputam o mesmo chão. Maranhão arregimenta para o seu grupo dirigentes que foram afastados do MST por alegados problemas éticos, ou comportamento inadequado. “São quadros experimentados”, diz ele.
Maranhão está à frente de outra organização de esquerda, a tendência Brasil Socialista, sexta força interna do PT. Foi a BS que lhe deu os votos para ter um cargo no diretório nacional do partido do presidente Lula. Ele já teve um posto melhor. Estava na executiva, na função de secretário de Movimentos Populares. Perdeu-a quando da invasão do Congresso. O deputado Ricardo Berzoini, presidente do PT, afastou-o do cargo e disse que acionaria a comissão de ética para apurar seu papel na confusão. “Eu disse ao Berzoini que estava me lixando pra comissão de ética”, disse. Segundo Maranhão, até hoje a comissão não foi instalada. “Eu fui ouvido pela executiva, e ficou nisso.”
Maranhão conta que Berzoini foi avisado de que o MLST faria no Congresso uma manifestação “de peso, mas pacífica”, para coroar uma semana de debates. Também estava planejada a entrega de uma pauta de reivindicações ao presidente da Câmara, Aldo Rebelo. “Berzoini apenas me recomendou que não participasse diretamente da ação, para evitar danos à campanha do Lula à reeleição”, disse ele, no saguão de um hotel na praia da Piedade. O assunto o deixa exaltado, a ponto de fazê-lo levantar-se da poltrona, agitar os braços e falar como se estivesse num comício, sem nenhuma preocupação com os hóspedes que passam: “Também avisei ao Aldo Rebelo, uma semana antes”. No dia marcado, com evidente sacrifício, seguiu o conselho de Berzoini. Ele ficou no gabinete do deputado Nelson Pelegrino, enquanto mil integrantes se movimentavam para chegar ao Salão Verde.
“O Bruno só se envolveu por excesso de fidelidade ideológica”, diz o deputado baiano Yulo Oiticica, também do PT, que estava no gabinete. Oiticica conta que, quando o quebra-quebra começou, foi ver de perto o que acontecia. Ao constatar o sururu, ligou do celular para Maranhão, e pediu que ele não se envolvesse. Maranhão refuta a versão: “Fui avisado por dirigentes do movimento, e minha obrigação era correr para lá, evitar mais violência e acalmar o pessoal”. Acabou preso, com centenas de outros militantes, incluindo mulheres e crianças. Foi o maior número de prisões políticas depois da ditadura. “Ainda tentei escapar, primeiro fingindo um ataque cardíaco, depois berrando que a prisão era ilegal, mas os policiais não quiseram saber”, conta. Nos primeiros dias de presídio, ficou numa cela solitária. Maranhão mantém a explicação inicial: houve provocação da segurança do Congresso e “militantes despreparados” a aceitaram.
Bruno Maranhão tem 67 anos e sofre de pressão alta. Fala pelos cotovelos, quase nunca na ordem direta, e amiúde é capaz de, em dez minutos, passar por dez assuntos. Acostumou-se a pintar os cabelos nos tempos em que os perigos da clandestinidade o obrigavam, e nunca mais parou. Tantos anos de militância não atenuaram o porte e o jeitão de usineiro, “por parte de pai e mãe”, como faz questão de ressaltar. “Eu sou do casarão e da lona preta dos acampamentos, essa é a minha contradição.” É um arrogante assumido, característica que lhe serve para comparar-se com o ex-ministro da Casa Civil. “Eu sou arrogante, e acho que é um defeito; o Zé Dirceu também é, e acha que é uma qualidade”, diverte-se. “Bruno é muito teimoso”, diz Suzana, citando um dos três defeitos que vê no marido. Os outros dois são: “impaciente” e “obsessivo com tudo que diga respeito à militância”. São defeitos, ela avalia, que perdem de longe para as qualidades: “amorosíssimo”, “corajoso”, “solidário”.
Depois do jantar na casa da mãe, Maranhão deu um telefonema para Princeton, nos Estados Unidos, onde moram sua filha Alexandra e sua neta de dois anos, Sofia. Alexandra tem 36 anos e é formada em Administração de Empresas. Nasceu em Paris, quando os pais estavam no exílio. É a segunda filha do casal. A primeira, Manuela, nascida em setembro de 1968, tinha microcefalia. “Foi uma porrada muito grande”, contou Suzana. Para que os pais pudessem militar na clandestinidade, a solução, dura para todos, foi deixar Manuela aos cuidados das duas avós. Ela voltou a viver com os pais quando eles voltaram de Paris, e morreu aos vinte anos. O caçula, Mário, dono de lavadoras de carros, também nasceu na França.
O avô viu a neta em duas ocasiões: quando ela nasceu, nos Estados Unidos, e no presídio da Papuda. O combinado era que ele fosse visitá-la, em Princeton, onde Suzana já o esperava, mas a prisão impediu. Sofia é quem veio, então, e foi visitar o avô na cadeia. A matriarca Gisela, de 88 anos, com vinte netos e catorze bisnetos, também foi à Papuda para ver Bruno Maranhão.
Ele conta que foi criado entre o engenho, no interior, e a casa da cidade, onde vivia a maior parte do tempo. “Desde menino, eu convivia com os filhos dos trabalhadores das usinas”, disse. “Não entendia direito porque eles não tinham o que eu podia ter”. Nem por isso deixou de passar por uma fase de playboy “farrista, mulherengo e muito brigão”, segundo diz. Tirou-o desse caminho a influência de um amigo um pouco mais velho, dos tempos do vestibular, cujo apelido era “o comuna”, por ter ligações com o PCB. Maranhão entrou na faculdade de engenharia da Universidade Federal de Pernambuco, à época o centro da efervescência estudantil do Recife, conhecida por Moscouzinho. Entrou de cabeça na militância estudantil e foi recrutado para o Partidão. Quando o partido rachou, depois do golpe de 1964, foi para o PCBR. Integrou o Comitê Central, ao lado de Apolônio de Carvalho, Jacob Gorender e Mário Alves. Tomou um tiro na mão direita ao tentar “expropriar” um táxi e participou de um assalto a banco no qual houve troca de tiros.
Na volta do exílio, em 1979, seu pai acreditou que ele dirigiria uma das usinas da família. Ilusão, pois logo o filho se engajou na dupla militância: dedicou-se simultaneamente à reconstrução do PCBR e à construção do PT. Em outubro de 1986, em pleno governo civil, militantes do PCBR tentaram assaltar uma agência do Banco do Brasil, em Salvador, e foram presos. Maranhão era dirigente do partido. Até hoje ele nega que soubesse da ação.
Petista de primeira hora, e rico, ele era encarregado de recepcionar Lula sempre que o líder sindicalista visitava Pernambuco. Hospedou-o algumas vezes em sua casa na praia da Boa Viagem, hoje alugada. O hoje presidente também já o hospedou, em São Bernardo. Maranhão diz que continuam amigos.
Maranhão fala tanto que, volta e meia, ele mesmo reconhece a tagarelice e pede paciência ao interlocutor. Só há uma pergunta que o faz calar, e até se aborrecer, se houver insistência: como é que você se sustenta? “Aí não”, responde exaltado. “Destesto esse tipo de pergunta. É invasão de privacidade. Passei a vida inteira respondendo à pecha de que sou terrorista e milionário. Já chega!”
O que ele já mostrou publicamente foi o seu apartamento (de 210 metros quadrados), onde marcou uma entrevista coletiva quando saiu da prisão. Há também a casa de Boa Viagem e o carro blindado. O mais, ele não conta. Gustavo, o irmão, acha que dona Gisela “dá uma ajudazinha”. Privilégios de primogênito, talvez.